O Brexit e as esquerdas: as contradições da razão europeísta

islândia

Em 2011, manifestantes diziam “não” em referendo sobre a dívida externa da Islândia

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Por Edemilson Paraná e Hugo Albuquerque.

[Artigo dá sequência às reflexões dos autores apresentadas em “Brexit: o Reino Unido sequestrado pela extrema-direita?”, publicado no Espaço do Leitor do Blog da Boitempo em 02/07/2016]

Desde que o Brexit ocorreu – ainda que sem produzir a imediata hecatombe alardeada por alguns setores – um intenso e profícuo debate vem se aprofundando no interior das esquerdas.

Para além de leituras fatalistas, que tendem a ver na vitória do Leave um mero triunfo da extrema-direita xenofóbica, demonstramos que, contraditoriamente, o resultado da consulta popular, acabou por desafiar, ainda que por linhas tortas, a ordem, neoliberal e burocrática, imposta pela União Europeia sob hegemonia alemã. Em resumo, um grande bode na sala do establishment europeu.

Não chega a espantar a tentativa de simplificação e mistificação do resultado das urnas pela mídia global, o que já estava claro desde as primeiras horas após o resultado. O que nos surpreende, no entanto, é a maneira como as esquerdas dentro e fora do Reino Unido continuam com dificuldades não só de responder ao que aconteceu, como, também, de entender o que se passou – e, ainda pior, de evitar se deixar sequestrar pela narrativa pronta do globalismo neoliberal.

Não foram poucos os intelectuais que lamentaram que a União Europeia, de fato, sofre de um déficit democrático , mas que “a volta ao Estado-nação” não seria a resposta. Gente do porte de Slavoj Zizek, para citar um exemplo, está presa ao dilema de que entre um mau Estado-nação e uma má União Europeia, a segunda opção seria preferível. De outro modo dito: “a Europa do Euro é terrível, mas deixá-la não representa uma solução real”.

Ao advogar pela busca de “soluções para além dos marcos do Estado-nação”, tal posição guarda afinidade com certo universalismo proletário e europeísta. Em que pese a bem-intencionada e sofisticada sustentação filosófica do argumento, observam-se claros déficits, que não podem passar sem problematização, em termos de uma leitura concreta da situação política e econômica da Europa realmente existente. Vejamos.

As questões políticas se encadeiam segundo a ordem do mundo prático, isto é, das necessidades básicas, materiais e inadiáveis. Em que pese o drama no mundo das ideias, a pergunta que fica, antes de mais nada, é: o que esperavam que os britânicos fizessem? Sem uma resposta clara para esta pergunta, o que explicaria essa denúncia da suposta “irresponsabilidade britânica”, só que com sinal trocado?

Desde o começo do neoliberalismo, vemos que em nome de uma razão econômica transcendente, vertida pelo deus mercado, a política é suspensa e a democracia é sancionada apenas quando age conforme seus ditames. A decisão política não é soberana, pois o processo democrático não é válido em si mesmo, mas apenas se adequado às razões do Mercado.  Daí recorrer a medidas autoritárias – vendidas com o eufemismo de “impopulares”,  posar com ditadores –  como Thatcher junto com Pinochet, ou até mesmo dar golpes – como Yelstsin contra a Constituição e o Parlamento da Rússia em 1993.

A triste coincidência da aparência dos discursos em tela mora numa semelhança de procedimento: no lugar da afirmação da razão transcendente de mercado estão certos valores ideais: in casu, a ideia abstrata do europeísmo, aqui desvinculada da realidade material, inclusive dos trabalhadores ou dos povos europeus.

 

Esse internacionalismo assentado no elemento europeu esbarra em pelo menos dois elementos centrais:

(1) a União Europeia tem hoje menos mecanismos democráticos do que qualquer um dos seus Estados-membro em escala “nacional”, o que contradiz o argumento (implícito ou explícito) de que mais europeísmo é (ou pode vir imediatamente a ser) equivalente a mais democracia. Ao menos até o presente, uma restrita democracia foi alcançada em escala nacional graças a intensas lutas populares ao longo da história, coisa que a União Europeia não só não vivenciou, como, ainda, conta com todo um sistema imunológico para evitar que ocorra.

(2) A União Europeia não representa uma ruptura com a forma Estado ou com a ideia de nação, a qual não existe não por ser uma comunidade política confinada “a uma nação” ou espaço-vital, mas sim pela maneira como o poder político é exercido – até mesmo porque muitos Estados-membros são, eles também, plurinacionais; fosse diferente, Bélgica ou Espanha teriam superado a forma Estado ou de nação – ou ambas. Não é o caso.

Assim, se no interior dos Estados-nação as decisões políticas são tensionadas por limitados mecanismos representativos conquistados por meio de séculos de lutas, na Europa realmente existente, um segundo andar decisório é adicionado de modo a esvaziar ainda mais as margens de ação popular existentes no primeiro. Não de modo fortuito: diante de um parlamento europeu figurativo, a Troika –  uma ilha de tecnocratas cercada de financistas e lobistas por todos os lados – é quem passa a dar as cartas da política econômica do continente.

Mas sua autonomia face aos Estados e ao capital na região não é plena, mas relativa. O trabalho sujo e reconhecidamente “político” (a sanção à força das ordens vindas de cima, a repressão direta dos descontentes em todos os níveis, a responsabilidade pela administração local dos desdobramentos catastróficos), esse segue sendo conduzido pelo Estado-nação – o arrecadador central de impostos, o condutor da coerção política e econômica direta, o ativador primário do circuito inter-regional de dívidas.

Trata-se, portanto, de um arranjo absolutamente funcional à reprodução do capital europeu, na forma hegemônica em que assume na atual quadra histórica. Às burocracias estatais nacionais, em parte fortalecidas com o novo arranjo, se sobrepõe uma nova tecnocracia continental, cosmopolita, à serviço da mundialização capitalista – custe o que custar.

A Raison d’être da Europa realmente existente, portanto, é a unificação do território econômico, da coerção monetária e dos mecanismos de gestão do trabalho e da produção, em busca de “competitividade” no capitalismo financeirizado de nosso tempo. Nasce também como resposta moderada ao domínio do dólar-flexível no sistema monetário-financeiro internacional, após o golpe estadunidense de revogação unilateral do sistema de Bretton Woods. Uma busca, em suma, para assentar em bases renovadas a relação atlântica de competição-cooperação econômica e política.

Nesse quadro, aos Estados-nação cabe, sob pena de serem expulsos e exemplarmente punidos com ataques especulativos, executar com vigor renovado tal projeto de unidade europeia. Azar dos descontentes, azar da democracia. Não haverá espaço nesse arranjo, sob pena de ser implodido por dentro, para políticas integradoras e democráticas, de solidariedade entre povos e nações. O que as esquerdas farão diante disso?

Neste ponto, a ideia do mal menor assentado na certeza dos efeitos colaterais benéficos da UE caem, então, por terra: se não apresenta lá muitos benefícios terrenos, o paraíso prometido é uma repetição de mais do mesmo. Portanto, julgar moralmente sociedades desesperadas que renegam, materialmente, a via “europeísta”, em vez de apresentar e construir opções que objetivem de modo alternativo as rupturas que estas demandam, pode representar um erro político grave. Equivale a empurrar toda a massa nas mãos da extrema-direita.

Não é à toa que Lenin, em suas Teses de Abril (1917), assentava sua proposta revolucionária em três pilares: Paz, Pão e Terra. Uma resposta singela, direta e objetiva às demandas materiais que os povos do decadente, quase finado, Império Russo precisavam. Lenin, ao contrário de seus sucessores, jamais esperou que os russos e os outros povos que viviam sob o mando do Czar trocassem a realidade pelo culto a uma ideia. Lenin sabia que não há vazios políticos, existem demandas materiais que se não forem ocupadas pelas esquerdas, serão ocupadas por uma direita que souber, à sua maneira, dar algum alento para as massas, seja pela via do conservadorismo moral ou do desenvolvimento econômico.

Vejamos, a esse respeito, os húngaros que há mais de seis anos apoiam o governo ultraconservador de Viktor Orban. Como e por quê? Orban, ao contrário da centro-esquerda europeísta que governou o país entre 2002 e 2010, simplesmente mandou às favas as políticas econômicas neoliberais, retomando a política de direitos sociais e de gestão mais coletiva da economia. Um governo como o de Orban não é o que desejamos, seja pelo seu autoritarismo ou seu conservadorismo na questão de costumes, mas ele é uma consequência óbvia do fracasso de uma agenda, ao menos, reformista.

O que faremos se os americanos elegerem Trump? Ou se os franceses elegerem Le Pen? Certamente, a resposta para tanto não pode, nem deve, ser moral. Nem deve ser apenas uma “reação”. É preciso evitar isso por meio da autêntica ação política.

Neste particular, vale retomarmos o caso islandês. Depois de arrasado pela crise, o país resolveu dizer “não”. Da melancolia à luta, ao invés de ceder às plataformas racistas, xenofóbicas e regressivas, islandeses e islandesas transformaram seu orgulho nacional em ação transformadora: recusaram as indicações da União Europeia e as medidas de austeridade, recusaram a moeda única, puniram políticos e banqueiros, renegociaram sua dívida, nacionalizaram bancos privados, ampliaram os espaços e mecanismos de participação democrática. Distantes da catástrofe europeia, fazendo o oposto do que essa exige, retomaram o crescimento, derrubaram o desemprego e estão, finalmente, saindo da crise.

As esquerdas latino-americanas igualmente têm algo a nos dizer aqui. Nas décadas de 1980 e 90 enfrentaram com firmeza o neoliberalismo, opondo-se a todos os projetos de integração continental sob esta consigna. Ainda que tenha feito a ousadia de derrubar o projeto da ALCA, sabemos que nem sempre foi vencedora. E se é certo que muitos erros e falhas aconteceram, alguns pelos quais se paga atualmente um alto preço, é igualmente correto que foram obtidos inegáveis avanços na região.

Seguindo este e tantos outros exemplos, de modo a construir um internacionalismo aberto, real e consequente, é preciso suplantar o europeísmo abstrato e ideal (por vezes contaminado de eurocentrismo liberal) por uma real política de solidariedade internacional de povos, comunidades e Estados contra o neoliberalismo.

É esta a resposta que a própria esquerda britânica, hoje, precisa elaborar. Para além da tensão proveniente da extrema-direita no interior do país, a grande questão é responder na prática as demandas sociais e políticas do país, tendo em vista seu futuro fora da União Europeia – mas ainda dentro da internacional do capitalismo financeiro.

Ao invés de lamentarmos o Brexit, nos resignarmos à subjugação da Grécia, façamos da ousadia islandesa – dos sonoros NÃOS ao mainstream proferidos em todas as partes – uma plataforma de mobilização concreta e objetiva de combate à Europa realmente existente. Não há vácuo em política. Se não o fizermos, a extrema-direita o fará.

icesave my ass

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Leia também, sobre o Brexit, “Precisamos entender a esquerda que apoiou o Brexit“, de Slavoj Žižek, “Onde está a Inglaterra: no Brexit ou no brejo?“, na coluna de Flávio Aguiar“Brexit à brasileira: quando a barbárie se instala”, na coluna de Rosane Borges, no Blog da Boitempo, e as entrevistas concedidas pelo britânico China Miéville (um dos fundadores do Left Unity) à Revista Época (“A mistura do radicalismo político e literatura fantástica de China Miéville”) e ao jornal O Globo (‘As coisas estão indo numa direção feia’, diz escritor britânico após Brexit).

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Edemilson Paraná é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), autor do livro A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional (Insular, 2016). Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.

Hugo Albuquerque é jurista, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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