Algumas notas sobre as eleições brasileiras de 2022

Confrontar o fascismo exige atacá-lo não apenas em sua superfície ou em sua face mais caricatural, mas também em suas profundas raízes sociais.

IMAGEM: YANKA ROMÃO/METRÓPOLES

Por Carlos Eduardo Martins

1) Lula obteve uma vantagem de 6,2 milhões de votos e 5,2% dos votos válidos, alcançando 48,4% x 43,2% de Jair Bolsonaro. Sua derrota no segundo turno é altamente improvável, não apenas pela distância e alto nível de rejeição de Jair Bolsonaro, mas ainda porque Simone Tebet, 3º lugar, com 4,1%, praticamente declarou seu apoio a ele. Setores do PT atacam Ciro Gomes, que obteve 3%, por não ter retirado sua candidatura em favor de Lula, mas não se detêm no fato de que a abstenção de 20,95% no primeiro turno só é inferior a das eleições presidenciais de 1998, possuindo um diferencial positivo de 1,6% de eleitores em relação a 2014, de 2,8% em relação a 2010, de 3% em relação a 2006 e de 4,2% em relação a 2002. Tal tendência indica que Lula não conseguiu reverter o desalento crescente de setores expressivos da população em relação à política eleitoral e ao discurso petista;  

2) As eleições parlamentares registraram um grande avanço da direita fascista, que obteve aproximadamente 30% do Senado e 25% da Câmara dos Deputados. A razão para o bom desempenho do fascismo é que Bolsonaro ideologizou as campanhas proporcionais e Lula não o fez por causa de sua aliança estratégica com o liberalismo e as forças regionais, restringindo sua capacidade de transferência de votos. O resultado é que a ultradireita conseguiu se posicionar de forma estratégica na institucionalidade estatal, constituindo-se na principal força de oposição e elevando o risco de obstrução e golpe parlamentar em caso de queda expressiva de popularidade de um futuro governo do petista;

3) Lula fez uma campanha centrada em sua força pessoal, preocupado em monopolizar a liderança das esquerdas para negociar com a direita, sem ser incomodado por críticas, concessões com o agronegócio, o capital financeiro e o monopólio midiático. Sua estratégia foi a de impulsionar um bloco antifascista baseado na aliança com os setores mais internacionalistas e tradicionais do grande capital para isolar Jair Bolsonaro e a burguesia emergente, designados como eixo fascista. A campanha assumiu um nível de desenvolvimento ideológico muito limitado e um tom cristão, liberal e corporativo, relacionado a uma estratégia que não foi a de construir uma frente de esquerda, mas sim, inversamente, a de garantir a hegemonia do PT nas esquerdas para viabilizar uma frágil e superficial coalizão antifascista com a aristocracia do liberalismo, a mesma que liderou a ofensiva ideológica anticorrupção da Operação Lava Jato, o golpe de Estado contra Dilma e a prisão de Lula. O tema central da campanha eleitoral foi o da disputa entre o amor e o perdão, de um lado, e o ódio, de outro. A coalizão incluiu além da aristocracia liberal, forças regionais oligárquicas e conservadoras, o que incluiu evangélicos neopentecostais com fortes suspeitas de ligação com as milícias, como é  o caso do governador do estado do Rio de Janeiro, que implicou no esvaziamento da candidatura de Marcelo Freixo, encorajado a deixar o PSOL e a se lançar pelo PSB ao governo do Estado em nome da unidade das esquerdas, em fórmula casada com seu engajamento na unidade dos partidos de esquerda fluminenses em torno à candidatura de Lula. A ausência de candidaturas de esquerda à Presidência de outros partidos com representação parlamentar, como o PSOL, empobreceu a qualidade dos debates na televisão, que foram monopolizados pela pauta da direita fascista e liberal. Elogios rasgados ao agronegócio e ao neoliberalismo ficaram sem nenhuma resposta e Lula, preocupado com a sensibilidade de seus aliados, apresentou um novo MST, reestruturado, que já teria recebido terras em quantidade suficiente para se dedicar à produção cooperativa e abandonar a ocupação de terras do latifúndio improdutivo;

4) A estratégia de aliança com a velha burguesia tradicional desenvolvimentista possui vários problemas. Trata-se de um segmento economicamente decadente que abandonou o projeto da industrialização pelo da financeirização, o que se manifestou em sua adesão ao Plano Collor, às políticas do Consenso de Washington e a Emenda Constitucional 95, que impôs o teto de gastos para limitar o crescimento econômico e manter altos níveis de desemprego estrutural. Tal trajetória reforça o seu hibridismo político em relação ao fascismo estrutural. Se hoje disputa o controle do Estado com a extrema-direita, foi sua mãe ao liderar o golpe de Estado de 2016. Diante de sua decadência política, expressa no quase desaparecimento de seus partidos tradicionais, do qual o PSDB é a principal referência, não teve outra escolha senão fazer de Lula seu candidato. Para isso rompeu com Moro, os procuradores da Lava Jato e lhe devolveu seus direitos políticos. Esta burguesia, entretanto, dificilmente permitirá que Lula promova um programa neodesenvolvimentista mais substantivo, pois sabe que o aumento do nível de emprego poderá implicará em nova ofensiva dos movimentos sociais, como aconteceu entre 2008-2013, abrindo espaço para uma possível ofensiva de base popular contra a desigualdade no país;

5) A decadência da aristocracia liberal brasileira implicou em resultados frustrantes para o PT em sua aliança eleitoral. Lula tentou, fazendo de Geraldo Alckimin seu vice-presidente, garantir que Fernando Haddad fosse governador de São Paulo e, em 2026, seu provável sucessor. Entretanto, a antiga base eleitoral do PSDB não acompanhou seu movimento e voltou para a extrema-direita apoiando a candidatura de Tarcísio de Freitas, que obteve 42% no primeiro turno, contra os 35% de Haddad. Há um risco muito alto de Haddad não ser eleito e que Lula fique com seu hipotético sucessor, mais uma vez, extremamente fragilizado, principalmente se tomarmos em consideração que Jair Bolsonaro alcançou 47,7% dos votos válidos em São Paulo;

6) O abrigo político da burguesia liberal é relativamente frágil, o que se evidenciou na sua incapacidade de articular o impeachment de Jair Bolsonaro. Um governo Lula comprometido com o neoliberalismo poderia alimentar a frustração social e criar um ambiente favorável para a ofensiva do fascismo, que sai desta eleição com um alto nível de acúmulo político, posições institucionais chaves e uma base social cada vez mais articulada. Este cenário poderia ter algumas semelhanças com o da Alemanha dos anos 1920, remetendo a uma social-democracia comprometida com a aristocracia liberal e ao imperialismo estrangeiro, convalidando a subjugação do Estado nacional em troca de posições e vantagens estatais, o que abriu o caminho para acusações de elitismo e corrupção;

7) No entanto, o fascismo dependente bolsonarista é ultraliberal e subserviente aos Estados Unidos e procura ocultar estas concessões nomeando as esquerdas e os movimentos sociais como o inimigo interno, a quem acusa de corrupção. O combate à corrupção torna-se a questão central de sua agenda e o ódio e a violência um método de exclusão de adversários ou competidores e de ascensão social através do Estado ou paralelamente a ele. O compromisso de Lula com a agenda liberal o torna vulnerável a esta ofensiva, pois o impede de apontar que os grandes problemas do povo brasileiro estão fora da administração do aparato estatal, residindo principalmente na sociedade civil, que se alicerça no controle do Estado para impor desigualdades e opressões. Esse compromisso político deixa Lula sem respostas adequadas às críticas liberais e fascistas que se complementam;

8) Confrontar o fascismo exige atacá-lo não apenas em sua superfície ou em sua face mais caricatural, mas também em suas profundas raízes sociais. O fascismo no Brasil tem dimensões estruturais. Elas estão relacionadas tanto à gênese e dinâmica do capitalismo dependente, baseado na superexploração dos trabalhadores, quanto na posição geopolítica do país na América do Sul. Não é por outra razão que o Brasil é o único país da região sem justiça de transição, tendo deixado impune o terrorismo de Estado do golpe militar do grande capital O imperialismo estadunidense e os liberais preservam os fascistas para ações emergenciais contra a esquerda e não aceitam que o Brasil possa ser forte e soberano o suficiente para avançar na integração latino-americana e ameaçar o protagonismo dos Estados Unidos no Cone Sul. Enfrentar este complexo articulado de poderes requer contemplá-los além de suas contradições pontuais para não transformar movimentos táticos em concessões estratégicas que impliquem em desmontar a ofensiva ideológica para tornar os trabalhadores conscientes de seus interesses, da posição social em que se encontram e das lutas que devem travar e do mundo que querem construir, pois só assim deixarão de ser vulneráveis à ofensiva neofascista que tem nas igrejas neopentecostais e na teologia da prosperidade um de seus principais suportes.

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Carlos Eduardo Martins é professor associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011), coorganizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007).

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