Você não poderá dizer que não sabia

"Costuma-se dizer que, dois anos depois de sua eleição, era praticamente impossível encontrar quem houvesse votado em Collor; no mundo das redes sociais, em que nossas opiniões estão registradas para sempre diante de todos, é mais difícil desaparecer. Por tudo que sabemos, os riscos de arrependimento nesta eleição são potencialmente bem maiores que em 1989. Espero sinceramente que, ganhe quem ganhar, nada de ruim aconteça a você ou a seus entes queridos. Mas se acontecer, é bom estar preparado para viver com as consequências de sua escolha; você não poderá olhar a si mesmo no espelho e dizer que não sabia."

Por Rodrigo Nunes.

Paula Pinheiro Ramos Pessoa Guerra, funcionária pública, espancada num bar em Recife. Julyanna Barbosa, cantora, mulher trans, agredida com uma barra de ferro em Duque de Caxias. Lenilson Bezerra, 24 anos, atacado por dez homens em Teresina. Moa do Katendê, 63 anos, esfaqueado num bar em Salvador. São mais de 50 casos desde o primeiro turno das eleições – tanto que um blog foi criado para coletar estes relatos.

No futuro, talvez você possa dizer que, quando votou em Bolsonaro para presidente, não conhecia seu programa de governo. Afinal, quando teve oportunidade de apresenta-lo, o candidato fugiu ao debate. É assim, talvez, que você terá deixado de saber sobre seu plano de educação à distância, que implica não só baixar ainda mais o nível da educação fundamental, mas um prejuízo enorme às economias familiares ao eliminar as merendas e a oportunidade das mulheres trabalharem.

Afinal, também, sua campanha é construída com base em afirmações que são feitas e desmentidas com tal frequência que faz suspeitar tratar-se de uma técnica deliberada para sinalizar promessas ao mercado financeiro e aos grandes empresários e disfarçá-las para que aqueles que elas prejudicam – muito provavelmente, você – não percebam do que se trata. Este é o caso da alíquota única do imposto de renda proposta por seu guru econômico, que faria os ricos pagarem ainda menos e a classe média pagar bem mais, e da abolição do décimo terceiro salário.

Assim, se as coisas ficarem piores para você e sua família, você talvez possa se olhar no espelho e dizer que não sabia o que esperar.

Em caso de decepção, talvez você possa dizer que até achou meio suspeito que o candidato supostamente antissistema fosse deputado há 27 anos, e que neste período tivesse – tal qual figuras como José Sarney e Renan Calheiros, que você provavelmente despreza ­– posto na política praticamente toda a família, que obteve um aumento de patrimônio notável. Talvez você realmente não tenha percebido que o candidato supostamente contrário às mamatas e aos privilégios votava sistematicamente a favor destes e contra os seus direitos como trabalhador. Ou que o candidato supostamente anticorrupção admitiu publicamente ter utilizado dinheiro de propina da JBS em campanha.

Mas você poderá dizer que não viu os sinais listados no primeiro parágrafo?

Uma coisa é apoiar um programa de governo que depois se demonstra desastroso, ou votar num candidato que trai nossa confiança. Esses episódios, porém, são algo de outra ordem. Trata-se do uso da violência física para resolver diferenças de opinião. São pessoas sendo vítimas de agressões gratuitas por conta das roupas que estão usando, de suas opções políticas, de seu comportamento. Trata-se, em outras palavras, de negar a essas pessoas o direito de se vestir como se vestem, de pensar o que pensam, de fazer o que fazem, de ser quem são.

Isto não põe por terra o argumento de que o histórico de declarações agressivas, machistas, racistas, homofóbicas e de apoio à tortura do seu candidato seriam apenas arroubos de um político que “fala o que todo mundo pensa”? Elas deixam de ser “apenas palavras” quando indivíduos explicitamente as invocam como inspiração para atos de violência e manifestam a expectativa de que estes seriam, se não incentivados, no mínimo tolerados no futuro. Estamos falando de afirmações como “com Bolsonaro presidente, a caça aos ‘veados’ vai ser legalizada”, “essa gente lixo tem que morrer“, “Bolsonaro 17 morte aos negros”, “quando o comandante ganhar a eleição, a imprensa irá morrer”, ou mesmo um jogo de computador em que o candidato mata feministas, sem-teto, gays e negros.

Você pode responder que o deputado não é responsável pelo que fazem seus seguidores. Foi, aliás, o que ele mesmo disse. Mas isto então não põe por terra o outro argumento para relevar estas inúmeras declarações – que ele não teria a pretensão nem as condições de leva-las a cabo chegando ao poder? O que estes episódios apontam é que, independente de ele pessoalmente fazer ou ordenar estas ações, elas já estão acontecendo sem ele sequer ser eleito. São seus “exageros” retóricos que criam o contexto onde alguns indivíduos se sentem autorizados a praticar estes atos, e tudo leva a crer que eles cresceriam num governo Bolsonaro – e com eles, a insegurança pública.

Uma das principais questões com as quais se depara a psicologia de massas desde os primórdios dessa disciplina no século XIX é: como explicar que pessoas absolutamente normais possam fazer coisas absolutamente terríveis em meio a uma grande comoção coletiva? As explicações variam bastante, mas dois traços comuns à maioria delas são: a presença de um líder em torno do qual se cimenta a identidade coletiva do grupo; e o fortalecimento dessa identidade através da projeção de um inimigo externo, de um outro a ser combatido e que se torna, assim, alvo da violência.

Mas só isto não basta para explicar a selvageria da qual até mesmo gente normalmente sensata às vezes acaba participando. Os cérebros humanos evoluíram de tal maneira que somos seres naturalmente dotados da capacidade de se pôr no lugar do outro, de sentir algo do que o outro sente. Para que cheguemos a considerar aceitável a eliminação física de humanos como nós é preciso que consigamos nos convencer de que estes outros não são realmente como nós, que não são realmente humanos. A maneira mais eficaz de desumanizar o outro é através de nosso próprio medo. Assim, por exemplo, os judeus eram apresentados pelos nazistas como vetores da degeneração física e moral da raça ariana. O outro precisa ser destruído porque ele me ameaça; é ele ou eu.

O PT cometeu muitos erros, em três dos quais pelo menos acredito podermos concordar. Primeiro, a má gestão econômica do governo Dilma, que gerou a crise atual. (Não por ser “socialista”, eu diria, antes pelo desenvolvimentismo bronco que deu desonerações e dinheiro grátis para grandes empresários; mas não vamos nos apegar a detalhes.) Segundo, a sofreguidão com que abraçou as práticas de corrupção que criticava, gerando um escândalo que envolve praticamente todos os principais partidos, inclusive aquele no qual até bem pouco estava Bolsonaro. Terceiro, a soberba de seus líderes e militantes, que durante muito tempo agiram como se fosse impossível ter críticas legítimas ao partido – negando, por exemplo, a existência tanto da crise quanto dos casos de corrupção.

Tudo isto justificaria um desprezo democrático ao partido e o desejo de vê-lo derrotado nas urnas. Mas não justifica desumanizar seus apoiadores e eleitores, todos aqueles que se beneficiaram de seus governos, todos os movimentos sociais e todos setores progressistas a ponto de pensar que eles devam sofrer violências por suas opiniões, serem fuzilados ou decapitados.

Qual medo, então, justifica essa desumanização? O medo de uma ditadura comunista? Mas porque o PT, que não tentou nada assim nos 13 anos em que esteve no poder, quando chegou a 80% de aprovação, o faria agora que é fraco demais para sequer tentar? Se tinham pretensões ditatoriais, porque seus líderes foram condenados por ministros do STF que eles mesmos indicaram e acataram estas condenações? Você seria capaz de citar um caso de censura ou um líder oposicionista perseguido durante os três governos e meio do PT? A fim de impedir a ditadura de um partido que em 13 anos não tentou nada do gênero, você está realmente disposto a eleger um candidato que já se manifestou a favor da ditadura, já declarou pretender dobrar o tamanho do STF para indicar a maioria dos ministros, e cujo vice defende a hipótese de “autogolpe” e uma constituinte sem participação popular?

Ou o medo que move a desumanização é da “ideologia de gênero” e dos projetos que ensinam sexo às crianças? Sobre isso, eu recomendaria primeiro que você procurasse se informar por fontes independentes. Mas, segundo, lembraria a você que tudo o que pode ser dito na escola é fichinha perto daquilo que seus filhos podem, hoje, acessar a qualquer momento através do celular. (Por isso mesmo, aliás, a educação sexual é necessária.) E que o mundo em que eles vivem e fazem suas escolhas é muito diferente daquele em que você cresceu; que essas mudanças são muito maiores que as escolas ou mesmo que as fronteiras de um país; e, portanto, que é ingênuo acreditar que se vai pará-las tapando o sol com a peneira. Negar que elas estão acontecendo, ao invés de preparar as crianças para lidar com elas, é tanto inútil quanto perigoso, para elas e para todos.

Porque nenhum adolescente se “cura” de ser gay por ser espancado, nenhuma menina se “cura” de querer direitos iguais por sofrer ameaças de abuso, ninguém se “cura” de defender direitos humanos quando seus direitos humanos lhes são retirados. No máximo, consegue-se levar as pessoas a viver escondidas, a cometer suicídio, a fugir de casa ou do país. E, claro, caso insistam em ser quem são, violentá-las, torturá-las física e psicologicamente, assassiná-las.

Você pode pensar que, no fim, o país ficará melhor assim. Mas então você não poderá dizer mais tarde que não se deu conta para onde as coisas apontavam. Porque o horizonte de uma política baseada em negar às pessoas o direito de pensarem o que pensam e de serem quem são só pode ser, no limite, a eliminação física do outro. É exatamente por isso que a primeira regra da democracia é que todos são obrigados a encontrar uma maneira de conviver com quem é diferente.

Claro, você provavelmente acha que não é para tanto; que, no máximo, é preciso só um “freio de arrumação”, um ajuste temporário para as coisas voltarem a seus lugares. O problema é que não dá para querer apenas uma dose pequena de algo que nem você nem ninguém tem condições – ou intenção – de controlar. Não se abre as janelas a um vendaval e pede-se à chuva que molhe “só um pouquinho”.

Estatisticamente, mesmo em situações excepcionais, o mais comum não é que pessoas normais façam coisas horríveis, mas que pessoas normais não façam nada de horrível, mas também não façam nada enquanto coisas horríveis acontecem à sua volta, e sintam vergonha disso depois. Tudo isto pode parecer distante agora, mas estar muito perto amanhã. Porque este outro que desumanizamos, este inimigo cuja destruição justificamos para nós mesmos dizendo que era ele que nos ameaçava, nunca está realmente “lá fora”.

Uma coisa é aceitar que mulheres ganhem menos que homens, outra coisa será ver sua filha condenada a ganhar menos apesar de suas qualificações. Uma coisa é concordar que mulher na rua depois de certa hora “está pedindo”, outra coisa será ouvir o relato do assédio sofrido por sua sobrinha quando voltava da aula. Uma coisa é tolerar que “petralhas” sejam atacados, outra coisa será ver seu afilhado com o rosto coberto de hematomas após uma discussão. Uma coisa é pensar que a imprensa é toda “esquerdista”, outra coisa será saber que um amigo foi ameaçado por dizer algo na internet. Uma coisa é falar que gays devem apanhar “para virar homem”, outra coisa será olhar nos olhos de sua vizinha cujo filho foi espancado até a morte.

Costuma-se dizer que, dois anos depois de sua eleição, era praticamente impossível encontrar quem houvesse votado em Collor; no mundo das redes sociais, em que nossas opiniões estão registradas para sempre diante de todos, é mais difícil desaparecer. Por tudo que sabemos, os riscos de arrependimento nesta eleição são potencialmente bem maiores que em 1989. Espero sinceramente que, ganhe quem ganhar, nada de ruim aconteça a você ou a seus entes queridos. Mas se acontecer, é bom estar preparado para viver com as consequências de sua escolha; você não poderá olhar a si mesmo no espelho e dizer que não sabia.

Boitempo nas eleições // Na nossa cobertura das eleições 2018 realizamos uma série de ações que buscam contribuir com a reflexão coletiva durante o período, entre as quais a publicação de textos inédito no Blog da Boitempo, vídeos na TV Boitempo e um serviço gratuito de indicações de leituras pelo WhatsApp, com curadoria da equipe editorial. Reflexões de Luis Felipe Miguel, Boaventura de Sousa Santos, Vladimir Safatle, Flávia Biroli, Esther Solano, Ricardo Antunes, Mauro Iasi, Christian Dunker, Rosane Borges, Mouzar Benedito, Dênis de Moraes, Flávio Aguiar, Felipe Brito, entre outros. Clique aqui para conferir.

***

Rodrigo Nunes é professor da PUC-Rio e pesquisador visitante na Brown University, Estados Unidos. Seu novo livro, Beyond the Horizontal. Rethinking the Question of Organisation, será publicado em 2019. Escreve para o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê Eleições 2018.

5 comentários em Você não poderá dizer que não sabia

  1. Excelente texto. Todos os eleitores indecisos e aqueles que pensam em votar em branco ou nulo deveriam ler. A cada pessoa que conheço que votar no monstro, daqui a algum tempo, se confrontará com um grande arrependimento.

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    • Vamos ser lógicos:
      Assim. Eis:
      Sejamos democráticos:
      quem já foi TORTURADO por Bolsonaro vota
      no PT, certo?
      e, por outro lado, quem já foi roubado pelo PT vota no Bolsonaro, certo?..
      Justo, não?
      FAÇAMOS ASSIM ENTÃO, AMANHÃ DIA 28?
      Amor e paz de ambos.

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  2. Republicou isso em luveredas.

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  3. aldisio gomes filgueiras // 28/10/2018 às 5:27 pm // Responder

    Gostaria de ver a cara de quem se olhar no espelho nesta segunda-feira 29, se um nazista declarado for eleito (como aconteceu na Alemanha, mas faz tanto tempo que ninguém lembra?

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  4. Qual o poder constante de sua propaganda ininterrupta? Eis:
    Vive o PT de clichês publicitários bem elaborados por marqueteiros. Nada espontâneo. Mas apenas um frio slogan (tal qual “Danoninho Vale por Um Bifinho”/Ou: “Fiat Touro: Brutalmente Lindo”). Não tem nada a ver com um projeto de Nação. Eis:

    0.
    “Coração Valente”
    1.
    “Fica Querida”
    2.
    “Impeachment Sem Crime é Golpe”
    3.
    “Foi Golpe”
    4.
    “Fora Temer”
    5.
    “Ocupa Tudo”
    6.
    “Lula Livre”
    7.
    “eleição sem Lula é fraude” [kuá!, kuá!, kuá!].
    8.
    “O Brasil Feliz de Novo”
    9.
    “Lula é Haddad Haddad é Lula”
    10.
    “Ele não”.
    11.
    “Haddad agora é verde-amarelo” [rsrsrs].
    12.
    “ÁGUA PARA TODOS” (KKKKK).

    PT é vigarista.
    Vive de ótimos e CALCULADOS mitos publicitários.

    É o tal de: “me engana que eu compro”.

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