#EleNão: as mulheres e a resistência à desconstrução da democracia

“A candidatura de Bolsonaro é descolada da realidade atual das mulheres. O antifeminismo é a tônica na campanha da extrema-direita e o feminismo é, sem dúvida, um componente central ao #EleNão. Mas há mais do que isso em jogo. Eles estão de costas para elas.”

Por Flávia Biroli.

As novidades mais evidentes nas eleições de 2018 são o fato de um candidato de extrema-direita ter chances reais de ser eleito presidente e o fato de que uma linha divisória de gênero se apresenta como clivagem central nas intenções de voto.

O contexto atual não pode ser explicado sem que se remonte a 2014. É algo reconhecido não apenas por analistas, mas por políticos de diferentes matizes, como mostra a entrevista de Tasso Jereissati publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia 13 de setembro de 2018. A série de “erros memoráveis” do PSDB a que se refere o senador tucano se inicia, segundo ele, quando o partido decidiu contestar o resultado das eleições presidenciais de 2014.

Mostraram-se equivocadas as expectativas de que a criminalização do PT deslegitimasse um partido em vez da política, que o apoio à direita nas ruas podia ser instrumentalizado para conduzir tucanos e parte do chamado “centrão”, por atalhos, ao governo federal sem maiores efeitos nas preferências eleitorais e que a Lava Jato poderia ser mobilizada cirurgicamente. O golpe de 2016 – que Jereissati não nomeia – mexeu no equilíbrio político das últimas décadas e atingiu a democracia. Em uma eleição em ampla medida organizada pelo confronto entre lulismo e antipetismo, os tucanos ficaram sem identidade, isto é, não foram capazes de representar o antipetismo. Nem a antipolítica, para a qual contribuíram inconsequentemente. Esse lugar tem sido, até o momento e a apenas dez dias do primeiro turno das eleições, ocupado por Jair Bolsonaro.

O candidato da extrema-direita expõe a parte mais sombria do processo de desconstrução democrática que vivemos desde 2014. Aquilo que parte dos apoiadores do impeachment de Dilma Rousseff procurou manter dentro de certos limites tem agora expressão clara como alternativa eleitoral. Nele, o desprezo pela democracia e a adesão ao neoliberalismo estão atrelados à contestação aberta de direitos fundamentais, da agenda de direitos humanos consolidada ao longo de décadas e de princípios democráticos básicos. Ele traz para a campanha presidencial a voz dos grupos que, nas manifestações pelo impeachment, pediam a volta da ditadura militar. E o faz sem disfarces.

O neoliberalismo que é vocalizado na campanha pelo economista Paulo Guedes é o componente que o aproxima de outras candidaturas. Mas a mistura entre militarização, elogio a torturadores e à ditadura e um estridente machismo, composto do ódio às mulheres e do ódio à população LGBT, é o que o identifica nessas eleições. E não é de agora. Em 30 anos de mandato como deputado federal, sua notoriedade se fez assim, bradando contra os direitos humanos e, especificamente, contra os direitos de mulheres e homossexuais, manifestando-se com violência e legitimando a violência contra esses grupos, defendendo que a insegurança social seja enfrentada na bala. E sobre as políticas sociais… bom, sobre essas ele não fala.

É aqui que entram as mulheres. Peço desculpas se demorei a chegar ao ponto que destaco no título deste texto, mas pareceu-me necessário fazer esse percurso.

Voltemos a 2014. Uma mulher havia sido eleita, a primeira a chegar à presidência da República no país. A campanha contra ela foi sexista e misógina, expôs o caráter masculino da política e a resistência a considerar as mulheres como pares. Como bem se sabe, Bolsonaro deu seus toques pessoais a isso ao homenagear um dos torturadores mais brutais da ditadura de 1964, o coronel Carlos Alberto Ustra, em seu voto pelo impeachment de uma mulher que foi torturada durante a ditadura de 1964.*

E como as mulheres perceberam esse processo?

Há uma pista na pesquisa realizada pelo Datafolha nos dias 29 e 30 de novembro de 2017, que revela que 66% dos homens e 75% das mulheres avaliaram como ruim ou péssimo o desempenho do governo Temer, que completava então um ano e meio. A pesquisa feita pelo Datafolha também investigou como eleitores e eleitoras viam o governo Temer se comparado ao de Rousseff. Nesse caso, a visão crítica delas também foi mais aguda: 56% dos homens e 68% das mulheres responderam que o governo Temer é pior do que o governo Dilma.

E como se posicionam na disputa eleitoral atual?

Na pesquisa Ibope sobre as eleições presidenciais de 2018 divulgada em 24 de setembro, 54% das mulheres disseram que não votariam em Bolsonaro de jeito nenhum, enquanto entre os homens essa rejeição é de 37%. Nenhuma outra candidatura tem índices de rejeição maiores entre as mulheres do que entre os homens. Fernando Haddad, que está em segundo lugar nas pesquisas, apresenta 34% de rejeição entre os homens e 26% entre as mulheres. Ciro Gomes tem 20% de rejeição entre eles e 15% entre elas.

Liguei brevemente os pontos a 2014, falei da trajetória de manifestações machistas do candidato de extrema-direita. Mas faltou falar de um aspecto que considero importante: a candidatura de Bolsonaro é descolada da realidade atual das mulheres.

Enquanto elas colocam em ação o movimento de maior expressão pública nessas eleições, o #EleNão, que conta com mais de três milhões de mulheres em sua página no Facebook e tem convocado manifestações em todo o Brasil para o dia 29 de setembro, o candidato de extrema-direita não as reconhece como sujeitos sociais ou sujeitos políticos. Sim, há ódio. Mas há também desprezo, ausência de compreensão típica de quem nunca foi capaz de ouvir por estar fechado em uma visão autoritária das relações sociais que é praticamente aguda no tocante às hierarquias de gênero.

Nas 81 páginas do programa de governo do candidato do PSL, as mulheres aparecem apenas como vítimas de estupro. Enquanto 11,6 milhões de famílias são, segundo dados de IBGE de 2015, formadas por mulheres sem cônjuges com filhos, o candidato a vice-presidente de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, afirmou que as casas em que mães e avós criam sozinhas seus filhos e netos são “fábricas de desajustados”. O antifeminismo é a tônica na campanha da extrema-direita e o feminismo é, sem dúvida, um componente central ao #EleNão. Mas há mais do que isso em jogo. Eles estão de costas para elas.

No Brasil, as mulheres têm nível educacional maior do que o dos homens, mas seus salários são em média 24% menores do que os deles nas mesmas ocupações. O desemprego as atinge em maior percentual, apesar da escolaridade ser, em tese, uma vantagem. E elas dedicam em média 18,1 horas semanais aos trabalhos domésticos e de cuidado, enquanto eles dedicam 10,5 horas. O que eles têm a dizer sobre isso no programa de governo? Nada. E durante a campanha? Que quem é competente é reconhecida.

Os dados disponíveis indicam que as mulheres que rejeitam a candidatura de Bolsonaro em percentuais mais altos são justamente aquelas que se encontram em maior desvantagem nesse balanço entre emprego, renda e responsabilidade pelo trabalho doméstico. São aquelas que dependem de creches para poder trabalhar, que não podem contratar outras mulheres para dar conta da sobrecarga do trabalho doméstico ou são, elas mesmas, trabalhadoras domésticas. Segundo os dados divulgados pelo Datafolha na Folha de S. Paulo em 20 de setembro, enquanto 14% das mulheres com renda familiar mensal de até dois salários mínimos declararam voto em Bolsonaro, esse percentual se eleva para 32% entre aquelas que ganham mais do que cinco salários mínimos. Já na votação em Haddad, a diferenciação dos segmentos de renda praticamente inexiste entre as mulheres – 18% das que pertencem ao segmento de menor renda e 17% das que integram o de maior renda declararam voto no candidato. A explicação pode não estar no gênero isoladamente, mas em como gênero, classe e raça definem expectativas distintas em relação ao papel do Estado para aquelas que vivenciam, em seu cotidiano, a falácia do discurso do mérito individual.

Bolsonaro é nossa mais genuína representação da desconstrução democrática em curso também em outras partes do mundo. Conjuga militarismo, neoliberalismo e machismo. Em suas posições, o papel do Estado não vai além da repressão, as desigualdades não são vistas como um problema político e uma questão para ser enfrentada no âmbito estatal, as mulheres não são reconhecidas como sujeitos. A resposta delas é clara. Não o reconhecem como candidato que mereça seu voto. #EleNão.

* São muitos os casos de mulheres brutalmente torturadas durante a ditadura de 1964. Ver o site do Memorial da Ditadura.

MULHERES CONTRA BOLSONARO | Sábado, dia 29/09, em dezenas de cidades brasileiras.
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Boitempo nas eleições // Na nossa cobertura das eleições 2018 realizamos uma série de ações que buscam contribuir com a reflexão coletiva durante o período, entre as quais a publicação de textos inédito no Blog da Boitempo, vídeos na TV Boitempo e um serviço gratuito de indicações de leituras pelo WhatsApp, com curadoria da equipe editorial. Reflexões de Luis Felipe Miguel, Boaventura de Sousa Santos, Vladimir Safatle, Flávia Biroli, Esther Solano, Ricardo Antunes, Mauro Iasi, Christian Dunker, Rosane Borges, Mouzar Benedito, Dênis de Moraes, Flávio Aguiar, Felipe Brito, entre outros. Clique aqui para conferir.

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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas.

12 comentários em #EleNão: as mulheres e a resistência à desconstrução da democracia

  1. jose fernando junqueira // 27/09/2018 às 1:06 pm // Responder

    As mulheres são 51% da pop.brasieira : feminismo , genero e desigualdades sociais são temas candentes , nestas eleições . Como querem estes projetos antisociais ignora-las ? O futuro destas eleições passa pelos nordestinos e as mulheres .

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  2. Maria Clara // 27/09/2018 às 4:34 pm // Responder

    Por onde andam as pessoas interessantes?
    No PT é que não é…
    Com toda certeza!

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  3. Excelente análise. A desigualdade de gênero em nosso país é flagrante. Não adianta bradar por desenvolvimento econômico sem considerar a redução da desigualdade social e salarial entre homens e mulheres, considerando as minorias. O Estado tem papel fundamental nisso. É esse crescimento que importa.

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  4. Antonio Elias Sobrinho // 28/09/2018 às 2:31 pm // Responder

    Essa moça, além de bonita e inteligente, é uma das mais competentes que conheço, sobretudo nessa área. A análise que faz, baseada nas pesquisas é perfeita e aponta para uma saída: derrota dessa besta fera, que foi chocada no período da ditadurjetóriaa, tendo as mulheres como protagonistas importante nessa tarefa. É claro que, quando se olha para a eleição e a formação de 1 governo mais democrático é assustador perante uma realidade tão dura e tão conservadora. De qualquer maneira, vamos barrar a trada fera e depois vamos tentar construir algo melhor.

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    • Marcos Ferreira // 29/09/2018 às 7:49 am // Responder

      “As Velas Ardem Até ao Fim” – do escritor HÚNGARO: Sándor Márai

      Descrição do livro:
      Um pequeno castelo de caça na Hungria, onde outrora se celebravam elegantes saraus e cujos salões decorados ao estilo francês se enchiam da música de Chopin — entre outras instrumentais –, mudou radicalmente de aspecto.

      O esplendor de então já não existe, tudo anuncia o final de uma época.

      Dois homens, amigos inseparáveis na juventude, sentam-se a jantar depois de quarenta anos sem se verem.

      Um passou muito tempo no RICO E EFERVESCENTE Extremo Oriente,

      o outro, ao contrário, permaneceu na sua propriedade e todo fim de semana ia a sede do PT (ou seja: era militante do Petismo por 30 anos. Só isso. De manhã e de tarde. Quando não estava na sede; estava na USP falando de PeTê).

      Mas ambos viveram à espera deste momento, pois entre eles interpõe-se um segredo de uma força singular.

      Bom…, poderia ser possível um papo de alta-cultura entre esse aí e aqueloutro que passou a vida viajando pelo extremo oriente, aprendendo 3 idiomas diferentes e sofisticando seu gôsto particular pela riquíssima cultura oriental?

      Qual será o bate-papo? Será proveitoso? [rsrs].

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  5. Paulo C. G. Müller // 30/09/2018 às 9:46 am // Responder

    Bom dia. Posso usar a sua imagem “#elenão” em meu facebook? Obrigado.

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    • Claro que pode. Vc tbm pode usar vestidinho, salto alto, passar batom, falar e andar com trejeitos de viadinho! E ninguém vai te bater, te matar, nem te jogar na prisão por causa disso! Afinal de contas, aqui não é Cuba, muito menos a Coréia do Norte! Satisfeito?

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  6. Na verdade essas eleições é a pior de todos os tempos, onde se transformou em uma vedadeira guerra e os projetos ficaram para atraz. Adorei a sua analise e acredito que devemos berrar para ter um pais melhor, e que precisamos de crescimento, acabar com a desigualdade social e principalmente as mulheres ter os mesmo direitos dos homens e não só deveres.
    Um pais desse com tanta riqueza, este desse geito é uma lastima !

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  7. Essa cretina ganha mais de R$ 20 mil por mês (remunerada com dinheiro dos impostos da população) pra não produzir nada mais do que ideologia de gênero! A mamata pra vocês vai acabar, vagabundas e vagabundos!! Eu JAMAIS votaria no Bolsonaro, mas a escrotice e canalhice de vocês me impele a esta obrigação! Parasitas nojentos, depravados, doentes mentais!

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  8. Consultem no portal da transparência os vencimentos da Sra. Biroli e vejam como ela é mal remunerada! Ô coitadinha! Equanto essa MULHER cínica e histérica ganha 20 mil pratas por mês (dinheiro dos impostos de toda a população), um HOMEM na construção civil pesada, trabalhando de sol a sol, não ganha a vigésima parte disso. Um policial que arrisca a vida pra enfrentar bandidos não ganha 1/5 dessa grana toda! Um motorista de ônibus coletivo, idem! Essa mulher é a própria elite, mas não para de tagarelar como se fosse a maior coitadinha do Brasil e do mundo. Até quando vai ter gente pra acreditar nessa histeria? Vai trabalhar, mulher, e justifique a grana preta que você ganha do erário!

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  9. Luiz Augusto Ribeiro Andrade // 09/10/2018 às 9:40 pm // Responder

    Alguém pode me dizer de quem é a arte da capa? Gostaria de usar em um movimento de resistência de artistas aqui em Manaus, se não houver problemas…

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