Racismo, crise, golpe: quando o futuro bate à porta

É preciso pensar em crise, golpe e racismo como um tripé incontornável para, quem sabe, a partir das reivindicações e propostas da população negra se aviste um novo pensamento e uma nova prática capaz de refundar o país.

rosane borges ponte para o futuro

Por Rosane Borges.

“Na condição de protagonistas da proposição de outra forma de ver e intervir no mundo, sintetizada nos fundamentos do Bem Viver,[1]oferecemos ao Estado brasileiro nossas experiências historicamente acumuladas como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica política. Pelo que se viu, essa outra dinâmica é impossível sem a superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis por subtrair a humanidade de mulheres e homens negros. Postulamos que a construção desse processo deve ser iniciada aqui e agora.(…).”
– FRAGMENTO DO DOCUMENTO DA MARCHA DAS MULHERES NEGRAS, REALIZADA EM NOVEMBRO DE 2015, EM BRASÍLIA

O futuro não é mais o que era antigamente1

Seja quais forem as perspectivas que se contemple, não há como negar que a ponte para o futuro do governo interino-ilegítimo-golpista de Michel Temer está sendo dinamitada, dia após dia, antes que chegue “lá”. As informações em fluxo contínuo veiculadas pelo noticiário político-policial embasam maciçamente esse diagnóstico: o ex-diretor da Transpetro, Sergio Machado, converteu-se no homem-bomba da vez com poder de fogo para alcançar Temer, o núcleo duro de sua equipe, os políticos do PMDB e de outros partidos associados ao presidente em exercício como as duas metades de um velcro.

Nesse ambiente tóxico amalgama-se, em nome do futuro, uma política marcadamente neoliberal, de Estado mínimo, com cortes severos nas políticas sociais e nos recursos da Educação e da Saúde (está em marcha a PEC 87, que desobriga o Governo a gastar parte de suas despesas obrigatórias nessas áreas, garantidas pela Constituição)2 e reformas trabalhistas e previdenciárias, reabilitadas para evitar que o país vá à bancarrota, segundo o discurso oficial (especialistas na questão vêm afirmando que tanto uma quanto outra irão piorar drasticamente a vida do trabalhador). Em suma: o governo de plantão nos impõe um presente sem bossa que cheira a pretérito, fazendo do porvir algo a ser redefinido no aqui e agora por perspectivas que não incidem no espectro político do momento.

Reverberam aqui e ali análises que costumam ver em 2016 pedaços das décadas de 80 e 90 do século passado. Marcos Nobre, professor da Unicamp, explica por que “o colapso atual vem acompanhado de certa sensação de volta no tempo, de volta aos anos 1980”. Entre os paralelos possíveis, Nobre entende que o plano Temer-Meirelles ensaia o Plano Collor, de 1990: “são guinadas de direção que parecem radicais, mas que não fazem realmente avançar, pelo contrário”, avalia o professor.

Convenhamos que são medidas e escolhas que não sinalizam para a ideia de futuro, pelo menos para a que foi decantada pela tradição filosófica, pois se liga a um passado do qual queremos definitivamente nos apartar. Já sabemos que as medidas ortodoxas em curso não conseguirão a tal almejada estabilidade econômica; as projeções desautorizam uma recuperação milagrosa num intervalo de tempo curto, como quer nos fazer acreditar Temer. As oscilantes previsões decretaram um 2017 difícil e projetam a volta de um crescimento pífio somente em 2018.

O passado que não passa

Talvez a prova inequívoca daquilo que persiste e insiste, da volta ao passado sem as mediações das conquistas parciais, porém significativas, do tempo presente (principalmente no campo das políticas de costumes e dos direitos civis, da agenda feminista e negra) seja a composição ministerial do governo ilegítimo. Não bastasse ser povoado por homens, brancos, de gerações próximas (adultocêntrica), pertencentes às “famílias tradicionais” brasileiras, o arco de alianças do comandante em chefe espessa uma atmosfera em que convivem “pessoas de bem” que se dizem contra o casamento homoafetivo, autênticos portadores da gramática patriarcal, apegados a práticas racistas e sexistas. Sem exageros retóricos, esse futuro ao qual o governo Temer pretende nos conectar não flerta apenas com um passado próximo, o da década perdida, como foram considerados os anos 1980, mas se liga a camadas profundas de um tempo ainda mais distante de extração colonial, escravocrata, sexista, homofóbico, patriarcal, em que forças alinhadas a essas ideologias, responsáveis pelas históricas opressões, ganham, no presente, lugar de destaque no espaço público.

Exemplos temos de sobra: o recém-nomeado secretário nacional de Juventude, Bruno Moreira Santos, foi acusado de agressão, ameaça e assédio sexual por duas mulheres, ratificando que a cultura do estupro, por assim ser denominada, é prática comum nos processos de dominação com fundamento de gênero e orientação sexual. O ex-senador Manoel Alencar Neto do PSB de Tocantins, um dos partidos da base de Temer, também conhecido como Nezinho Alencar, foi preso em janeiro deste ano pela Polícia Federal sob a acusação de ter abusado sexualmente de duas meninas menores, uma de seis e outra de oito anos, conforme relata Elio Gaspari em sua coluna na Folha de S.Paulo:

“discutindo-se a agenda do [século] 21 esquecem-se os restos a pagar do [século] 19. No 19, os patriarcas escondiam-se na escravidão para viver naquilo que Gilberto Freyre chamou de “intoxicação sexual”. No 21, essa figura do oligarca, senhor de seus domínios, perdeu espaço, mas ainda vai bem obrigado.No governo Temer o PSB de Nezinho continua aninhado no Planalto e o pernambucano Fernando Coelho Filho ganhou o Ministério da Integração Nacional. Seu pai é o senador Fernando Coelho, que por sua vez é sobrinho do ex-governador Nilo Coelho, filho do coronel Quelê, o patriarca dos Coelho de Petrolina (PE).”

Pode-se, com razão, objetar que o consórcio com as oligarquias e a adoção do receituário neoliberal não é assinatura inimitável de Michel Temer, posto que é prática que atravessa governos de diferentes latitudes. Temos conhecimento de que a reforma da previdência nos moldes em que está sendo desenhada teve seu primeiro impulso nas mãos da presidente Dilma Rousseff, numa tentativa de agradar o “mercado”. Reconhecer que práticas neoliberais habitam até programas de governos onde o papel do Estado é mais abrangente (a exemplo da experiência petista), não significa dizer que Temer é o papel carbono de outros presidentes e vice-versa. É preciso estabelecer diferenças que repousam nas escolhas de rotas por onde um país caminha, comprometidas ou não com princípios democráticos e republicanos, a despeito das semelhanças no que diz respeito ao conluio Estado versus capitalismo.

A famosa frase “o estilo é o próprio homem”, do filósofo naturalista George-Louis Leclerc, conde de Buffon, ilumina a questão: para Buffon, carregamos uma marca e sintoma pessoal, expressamos o indivíduo criador que há em cada um(a) de nós, não nos descolamos de uma idiossincrasia específica e intrasmissível. A marca registrada de Temer, aquilo que ele carrega e carregará como um traço peculiar seu é a crença de que pode realinhar o país com medidas austeras, sem o reconhecimento de que pensar a superação da crise (gerada, em parte, por ele e sua turma) e construir pontes para o futuro do país requerem a adoção de uma plataforma em que o racismo, o sexismo e formas correlatas de discriminação ganhem centralidade nas pautas que ordenam o fazer político, em que direitos, numa sociedade que teve uma Constituição cidadã tardia, não podem ser ceifados em nome de um receituário puramente econômico. Ao considerar que os destinos do país devem ser pensados por homens brancos sob um prisma reduzido, o presidente interino nos reenvia para um tempo em que os que mandavam e os que obedeciam tinham posições racial e de gênero demarcadas pelos privilégios de uma sociedade racista, sexista e misógina, placidamente aceitas e sancionadas pelas normas vigentes.

Lugar comum, sabemos que a aliança entre passado e presente, responsável por desenhar o tempo do futuro, mostra-se indissolúvel. Num paralelo entre o 13 de maio de 2016 (que se avizinhou da posse de Michel Temer) e o 13 de maio de 1888, a professora de sociologia da USP, Angela Alonso, lembra que os abolicionistas eram signatários de uma agenda em que constavam “liberdade civil, educação, direitos sociais e concessão de terras a libertos, em nome do direito, da compaixão, do progresso”; já os escravistas reagiam a essa pauta, contra-argumentando que “a abolição, mesmo que ideia nobre e civilizada, desarranjaria a ordem social, as instituições políticas e as contas nacionais”. Qualquer semelhança com os tempos que correm não é mera coincidência:

“Contra o humanismo, o realismo. Contra a solidariedade, a racionalidade econômica. Os abolicionistas organizaram manifestações no espaço público, lançaram publicações, atraíram artistas. Tomaram as ruas com bandeiras, palavras de ordem, e, à falta dos bottons (ainda por inventar), levavam flores na lapela. Ante instituições políticas refratárias, avançaram para a desobediência civil. Tudo muito análogo ao que corre ultimamente.”

Talvez se possa extrair desse jogo de temporalidades (passado, presente e futuro) algumas lições para o desenho de uma nova práxis política, um novo pensamento e novas formas de organização capazes de reconduzir a mudança do país. Ao manto do silêncio tecido nesses últimos dias por camadas da população que meses atrás iam às ruas pela deposição da presidenta Dilma Rousseff, contrapõe-se vozes e ideias que vêm ganhando corpo com o enunciado de propósitos à procura de caminhos ainda não trilhados. O movimento negro brasileiro, especialmente as mulheres negras, vem ao longo de sua trajetória emitindo sinais de que sem uma radicalização do processo de redemocratização, que tome o racismo e o sexismo como um nexo prioritário para a superação das desigualdades, todo o projeto político-institucional ruirá. É preciso, assim, pensar em crise, golpe e racismo como um tripé incontornável para, quem sabe, a partir das reivindicações e propostas da população negra se aviste um novo pensamento e uma nova prática capaz de refundar o país. Na condição de subalternizadas pelo racismo e pelo sexismo apontamos sistematicamente como as faíscas do passado (servil, escravocrata, patriarcal, excludente) podem ser identificadas nas malhas do presente, desenterrando as raízes de uma crise estrutural que perdura há muito tempo e que põe constantemente em xeque a democracia e a república. Esse trabalho de subsolo não pode ser menosprezado nesse momento.   

Crise, golpe e racismo: o presente aqui e agora

Dos oceanos de tinta que a reflexão contemporânea verteu para pensar a crise e o golpe, algumas gotas, excetuando as anotações de extratos da intelectualidade e militância negras, se dedicaram para avaliar o tripé crise, golpe e racismo. O professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), Silvio de Almeida, é um das poucas vozes que vem apontando a importância dessa tríade para se pensar o tempo presente com vistas à construção de um futuro possível. Almeida lembra que os golpes são gestados nas crises do capitalismo e que estas afetam primordialmente os grupos historicamente vulneráveis (a crise brasileira é, fundamentalmente, uma crise do capitalismo que vem atingindo todo o planeta).

Para Almeida sempre que a crise se instala, irradiada dos grandes centros para as periferias, a dimensão racial aparece de maneira inescapável. A primeira crise do capitalismo no século XIX, também conhecida como a Grande Depressão, forjou a busca de mercados consumidores externos à Europa, como a Ásia e a África, dando início ao neocolonialismo europeu (a partilha do continente asiático e africano pelas grandes potências industriais). Estava dada a largada para a exploração capitalista, a espoliação dos trabalhadores e dos recursos ambientais mundiais, cujos alvos principais foram as populações não brancas. A abolição da escravidão aqui no Brasil, como se sabe, teve relação direta com a Grande Depressão. A outra grande crise, a de 1929, que antecedeu o Estado Novo, teve um efeito direto no rearranjo sociorracial brasileiro, com a ascensão da ideologia da democracia racial, selada com Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre. A crise de 1970 caracterizou-se pela formação do estado neoliberal, das políticas de liberalização comercial e a desregulamentação financeira, vulnerabilizando negros, mulheres e imigrantes.

A título de ilustração, o professor Silvio Almeida menciona o problema da carga tributária no Brasil, que pende de maneira desigual sobre os mais pobres, especialmente as mulheres negras, uma vez que os tributos são pagos sobre trabalho e consumo, resguardando o capital. No chamado pacote de maldades do governo Temer, a desvinculação de recursos da saúde e educação, as reformas previdenciária e trabalhista, como já mencionado, também terão um desdobramento perverso nos segmentos desfavorecidos, com as mulheres negras à frente.

Uma proposta de futuro

Ora, se o que estamos a testemunhar é uma crise do capitalismo que ganha conotações específicas no território brasileiro, como criar uma nova forma de pensamento, estimular novas formas de organização político-institucional, num cenário em que o Executivo perdeu o tônus para liderar um projeto de país, o Legislativo, preocupado em manter seus próprios privilégios, se desconectou dos interesses do governo, o Judiciário se instalou no vazio deixado pelos dois poderes e passou a protagonizar tristemente os destinos políticos do país e em que a polarização ideológica se acentua nas diversas camadas sociais?

A crise é estrutural (a tal crise econômica é apenas a ponta do iceberg) e toda tentativa de solucioná-la premidos(as) pelas exigências do presente imediato é um convite ao fracasso. O esgotamento do modelo político-institucional que foi consolidado na redemocratização solicita a paciência dos conceitos, a construção de um projeto experimental em que possamos adotar novas bússolas para conduzir um presente em que as coisas parecem confusas e difusas. Ao adotarem como orientação política o paradigma do Bem Viver,3 as mulheres negras brasileiras se instituem como atrizes importantes de um processo onde não serão as delações premiadas, tampouco o protagonismo do judiciário, que restabelecerão as bases da normalidade institucional e política:

“Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha inspiradas em nossa ancestralidade que nos fez portadoras de um legado capaz de ofertar concepções que inspirem a construção e consolidação de um novo pacto civilizatório. Buscamos fundamentos em paradigmas que se orientam por outra gramática política, responsável por uma reordenação sociorracial equilibrada, capaz de acolher saberes, práticas e experiências até então ignorados pelas dominantes configurações do político. Não temos dúvida de que a adoção desse paradigma instaura, a uma só vez, a reconstrução de utopias onde as diferenças são compreendidas como um valor humano.”
(Documento da Marcha das Mulheres Negras, 2015).

Ao assim principiarem o documento da Marcha, realizada em Brasília, as mulheres negras brasileiras reinstauram uma outra noção de futuro que se delineia na aventura concreta do aqui e agora da luta política, fazendo do passado um repositório de onde se extrai as antecedências que nos emancipam e por onde se interditam as heranças carcomidas, mas renitentes, que teimam em adiar o futuro – entendido aqui como a aurora das coisas que não existem ainda. Sabedoras que o Tempo é um Orixá, as 50 mil mulheres que marcharam na Esplanada dos Ministérios souberam enfrentar a assertividade do presente e lançar as sementes de um projeto, por ora utópico, em que todas e todos possamos experimentar realmente um novo tempo, apesar dos perigos contemporâneos.

PS: O Brexit e a permanência de Donald Trump nas eleições americanas são a prova de que não é somente o Brasil, mas o mundo, que está reclamando por um novo pacto civilizatório. Certamente a crise é planetária.

Notas

1 Frase célebre cunhada pelo poeta e pensador Paul Valéry em 1920.
2
 
A proposta de Temer enfraquece a vinculação, pois o gasto mínimo não será mais definido pela arrecadação, e sim pela despesa do ano anterior corrigida pela inflação.

3 Bem Viver assenta-se em concepções milenares das populações indígenas e africanas que fundam e constituem as formas do social e do político a partir de princípios plurais que englobam novas concepções de gestão do coletivo e do individual, da natureza (política ambiental) e da cultura, enfim das formas que dão sentido e valor à nossa existência, calcada em uma visão utópica de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os), divorciada de práticas opressivas e exploratórias.

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Rosane Borges é mestra e doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutoranda pela mesma Universidade, professora do curso de especialização do Celacc (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), autora e organizadora de diversos livros, entre eles, Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (Imprensa Oficial, 2004), Mídia e racismo (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.

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