Quais os caminhos para a reconstrução do Brasil?

Juliana Paula Magalhães apresenta o livro “Brasil sob escombros”, novo título da coleção Tinta vermelha: “Forjado no calor dos acontecimentos por uma plêiade de autores e autoras, trata-se de uma arma de crítica e de luta, imprescindível para a compreensão e para a transformação de nosso tempo."

FOTO: WILLIAM MARTINS

Publicamos abaixo o prefácio do livro Brasil sob escombros, escrito por Juliana Paula Magalhães. Veja abaixo o vídeo do primeiro episódio da série especial sobre o livro na TV Boitempo.

Por Juliana Paula Magalhães

Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país é fruto de um trabalho coletivo diante dos desafios e embates de nosso tempo. A eleição de Jair Messias Bolsonaro à Presidência da República, em 2018, foi uma nefasta decorrência do golpe de 2016 e resultou num dos mais sombrios períodos da história brasileira. Foram quatro anos capitaneados por uma plataforma reacionária e neoliberal que gerou intenso sofrimento para enorme parcela da população, sob o beneplácito do grande capital. A pandemia de covid-19 agravou o quadro dantesco, no qual o presidente zombava da doença e da morte de milhares de pessoas, menosprezando qualquer recomendação científica para a prevenção da doença.

A fome e a insegurança alimentar atingiram níveis alarmantes, em um cenário de acentuada crise econômica. Educação, saúde, serviços públicos, direitos trabalhistas e previdenciários foram duramente atacados. A degradação ambiental foi absurda, com contínuos recordes de desmatamento da floresta Amazônica, enquanto o então ministro do Meio Ambiente fazia “passar a boiada” de medidas ainda mais deletérias para o país. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, tomados desdenhosamente pelo então presidente da República como meros aventureiros imprudentes, foi um dos episódios mais trágicos dessa dura e triste realidade.

A população indígena, vitimada pelo garimpo ilegal em suas reservas e pelo descaso do poder público, teve muitos de seus integrantes acometidos por doenças e pela impossibilidade de acesso ao mínimo existencial. Enquanto isso, Bolsonaro repetia falas racistas em face de indígenas e de negros – estes últimos assassinados e torturados nas periferias do país, constantemente atacados pelos próprios agentes estatais. Também a misoginia e a LGBTQIA+fobia eram constantes em seus pronunciamentos.

Para além disso, havia a sanha golpista. Multidões reunidas e mobilizadas, em célebres datas nacionais, clamavam por intervenção militar. O general Walter Souza Braga Netto, ex-ministro de Estado da Defesa, apresentou nota laudatória formal ao golpe de 1964, denominando-o “movimento de 31 de março de 1964” e alardeando suas pretendidas virtudes.

Bolsonaro sempre tomou para si a condição de uma espécie de herdeiro da ditadura militar, mormente, de seus porões. Isso já havia se evidenciado, por exemplo, na fala dele durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, ao invocar a execrável figura de Carlos Alberto Brilhante Ustra. E esse é um dos indicativos de que, em alguma medida, o embate entre ditadura e democracia ainda apresenta fortes ecos. Tal fantasma ditatorial, nem sequer o movimento Diretas Já e a Constituição Federal de 1988 foram capazes de sepultar. Bolsonaro e suas milícias digitais fizeram questão de reavivá-lo, inclusive.

O atrito institucional, com constantes ataques por parte de Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal, foi perene. No mais, os pleitos do ex-presidente por voto impresso foram reiterados e, muitas vezes, serviram de cortina de fumaça para descalabros por ele cometidos. Em paralelo, os apoios parlamentares de sua base e do chamado “centrão” garantiram a manutenção dessa figura no poder, com a conivência, inclusive, de amplos setores da burguesia.

Nesse quadro de horrores, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva representou uma lufada de esperança para os sofridos corações brasileiros. O retorno de um homem que já ocupara por duas vezes a Presidência e que, depois de vencer a perseguição lavajatista, sagrou-se vitorioso teve ares quase sebastianistas para a maioria do eleitorado pátrio. A subida apoteótica da rampa do Palácio do Planalto, em uma histórica cerimônia organizada por Janja Lula da Silva, na qual o presidente foi acompanhado por representantes de diversos segmentos da população, emocionou a todos. Sem falar na inusitada presença da cadela Resistência, que antes estivera presente na “Vigília Lula livre”. Diante da recusa de Bolsonaro em participar do evento, a faixa presidencial foi entregue a Lula por Aline Sousa, mulher negra e catadora de recicláveis, em um dos momentos mais emblemáticos da história de nosso país.

Exatamente uma semana depois, a depredação violenta das sedes dos três poderes em Brasília por bolsonaristas golpistas representou um choque de realidade. A extrema direita não fora derrotada por completo e mostrou sua força no dia 8 de janeiro de 2023. E a democracia burguesa, confirmando a crítica marxista, mostrou-se frouxa para conter os arroubos protofascistas.

A margem de votos que deu a vitória a Lula foi apertada, e ficou mais que provado que a mobilização bolsonarista persiste, com expressividade. Foi essa mobilização, inclusive, que insuflou as teorias conspiratórias de fraude eleitoral, alimentadas por toda sorte de fake news, constantemente disparadas pela extrema direita.

O novo governo iniciou com medidas que demonstram profunda diferença em relação ao antecessor. A criação do Ministério dos Povos Indígenas, em pasta ocupada por Sônia Guajajara, bem como a nomeação de Anielle Franco para o Ministério da Igualdade Racial e de Silvio Luiz de Almeida para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, revela a preocupação com a diversidade e com a inclusão. A busca em garantir o Bolsa Família para os mais necessitados, bem como a visita de Lula, ainda em janeiro, aos ianomâmi, mobilizando esforços conjuntos em auxílio a esse povo que se encontra ameaçado diante das condições degradantes que enfrenta, exemplifica o abismo entre a gestão passada e a atual. Lula é um estadista capaz de, até mesmo no plano do discurso, deixar de lado personalismos em prol de uma fala à coletividade, atenta aos problemas enfrentados pela maior parte da população.

Não obstante suas inegáveis virtudes, o terceiro governo Lula ainda se apresenta como prisioneiro da ideologia jurídica: falta-lhe uma plataforma estruturalmente crítica e transformadora. Os desafios postos são imensos não só pela herança caótica deixada pelo governo anterior, mas também por questões de governabilidade, tendo em vista o predomínio conservador no Legislativo. Além disso, a crise econômica mundial do pós-fordismo – que impacta diretamente o Brasil, país de capitalismo dependente e sujeito aos desmandos do imperialismo estadunidense – deixa a conjuntura ainda mais difícil.

Nesse contexto alarmante, surgiu este livro. Entre a barbárie do governo Bolsonaro e a esperança que representa a ascensão de Lula, também se faz necessário apontar os caminhos da crítica e da luta para o presente e os anos vindouros.

É passado o tempo de as esquerdas do mundo se limitarem às lutas no campo institucional. Marx já ensinava sobre a necessidade de ultrapassar “o estreito horizonte jurídico burguês”1. Ou seja, mais que uma crítica direcionada a indivíduos e agentes públicos, urge uma crítica de caráter estrutural. O neoliberalismo e o próprio capitalismo precisam ser postos em xeque. Por sua vez, o jurista bolchevique Evguiéni Pachukanis já anunciava a imbricação da forma da subjetividade jurídica e da forma política estatal ao capitalismo2, apontando para os limites da democracia liberal. Em Fascismo, por exemplo, Pachukanis tece contundentes críticas à social-democracia alemã, que terminou por abrir caminho ao fascismo diante dos freios que impôs aos movimentos revolucionários socialistas no país3. Aqui, mais que apontar as mazelas do governo Bolsonaro, é preciso compreender as condições que o gestaram e que, em alguma medida, ainda se fazem presentes em nossa sociedade, sendo capazes reavivar o antigo “mito” ou forjar uma nova liderança da extrema direita.

A vitória de Lula é um feito notável. Todavia, os desafios persistem e são imensos, tanto no governo quanto para além dele. A Constituição Federal do Brasil assevera que “todo o poder emana do povo”4, mas, em uma sociedade cindida entre exploradores e explorados e presidida pela lógica do capital, esse poder tem limites estreitos, pela própria constrição da forma jurídica. Apenas uma sociedade verdadeiramente emancipada dos grilhões das formas sociais capitalistas poderá, de fato, ter o povo presidindo seu destino. Esse é o caminho para a construção do Brasil que almejamos. Enquanto houver capitalismo, haverá golpes, exploração e dominações. Daí a importância de Brasil sob escombros – forjada, no calor dos acontecimentos, por uma plêiade de autores e autoras – que tive a honra de organizar em parceria com Luiz Felipe Osório. Trata-se de uma arma de crítica e de luta, imprescindível para a compreensão e para a transformação de nosso tempo.

Notas
1 Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2012), p. 31-2.
2 Evguiéni Pachukanis, Teoria geral do direito e marxismo (trad. Paula Vaz de Almeida, São Paulo, Boitempo, 2017).
3 Idem, Fascismo (trad. Paula Vaz de Almeida, São Paulo, Boitempo, 2020).
4 Ver art. 1o, parágrafo único.


Desinformação, militarismo, genocídio, pandemia e Judiciário são alguns dos temas tratados na obra Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país. Novo volume da coleção Tinta Vermelha – dedicada à intervenção sobre acontecimentos atuais e vendida a preço de custo –, a obra faz um balanço dos anos do governo Bolsonaro e do processo eleitoral e traz perspectivas sobre o terceiro governo do presidente Lula.


Confira a nova série da TV Boitempo, que buscará analisar a encruzilhada política, econômica e social que atravessamos com base no último lançamento da coleção Tinta Vermelha: Brasil sob escombros, organizado por Juliana Paula Magalhães e Luiz Felipe Osório:

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Juliana Paula Magalhães é doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP (Largo São Francisco). Autora de artigos sobre Filosofia do Direito, Marxismo e Política e dos livros Crítica à subjetividade jurídica: reflexões a partir de Michel Villey (Contracorrente) e Marxismo, humanismo e direito: Althusser e Garaudy (Ideias & Letras). Autora do texto de orelha da obra Fascismo, de Evguiéni Pachukanis (Boitempo). Professora do curso “Introdução a Pachukanis: crítica marxista do direito”, na Classe Esquerda.

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