Para além da democracia direta

É preciso ir além do modelo plebiscitário, que nos oferece um simulacro de participação direta e deixa intocados os problemas de fundo, e buscar formas de democratizar a representação.

Por Luis Felipe Miguel.

O desânimo com a representação política não vem de hoje. Desde as últimas décadas do século passado, pesquisas mostram que uma parcela majoritária de cidadãos se sente descrente da possibilidade de que os representantes eleitos de fato respondam a seus interesses. O divórcio entre vontade popular e decisão política torna-se aparente quando, em nome de uma pretensa racionalidade econômica, os governos se dispõem a sacrificar as maiorias (trabalhadores e desempregados, aposentados e pensionistas, usuários de serviços públicos) para ampliar os lucros de poucos ou salvar especuladores das consequências de suas próprias jogadas erradas. O aprofundamento da crise global do capitalismo, nos últimos dez anos, fez com que até o menor esforço de esconder o caráter de classe do Estado fosse considerado um luxo dispensável, aprofundando o fenômeno que vem sendo chamado de “desdemocratização”.

No Brasil, o golpe de 2016 escancarou esta situação. De quebra, causou um baque sério nas apostas que eram feitas em espaços paralelos de representação, as chamadas “arenas participativas” – sobretudo conselhos e conferências de políticas públicas, em que a participação popular era via de regra mediada por representantes autoinstituídos, isto é, que não passavam por nenhum mecanismo de autorização por parte dos representados.* Os limites destes espaços como instrumentos de democratização efetiva e de educação política ampliada ficaram expostos com o golpe. Não por acaso, no momento uma boa parte do discurso progressista se volta para propostas de “democracia direta”, em que as decisões dos representantes seriam substituídas pela consulta ao conjunto da população, por meio de plebiscitos e referendos.

Sedutora à primeira vista, a ideia parece menos atraente quando analisada com mais cuidado. O resultado de alguns referendos recentes mostra que eles não são garantia de decisão iluminada, nem estão imunes à influência de grupos poderosos – o desarmamento no Brasil, o Brexit no Reino Unido, o acordo de paz na Colômbia. De fato, o chamamento à participação direta na decisão não significa necessariamente a ampliação da educação política. Centrar as esperanças de democratização nesse tipo de instrumento indica uma visão limitada da representação política.

A representação política tem uma face mais visível, a delegação de poder decisório, mas não se esgota nela. Delegamos também nossa capacidade de intervir na produção da agenda pública e de participar no debate sobre os assuntos políticos – embora todos tenhamos o direito de falar, poucos têm de fato condições de interferir de forma efetiva, quer na formação da agenda, quer nas discussões públicas. Este segundo tipo de delegação se dá não apenas de maneira formal, com a escolha de representantes nas eleições, mas também de modo informal, com a adesão a algum dos porta-vozes das diferentes posições que estão presentes na esfera pública. E o processo representativo não está completo sem levar em conta as trocas, entre os representados e entre eles e o representante, que os levam a definir que entendimento têm de seus próprios interesses.

Muitas propostas de reforma da representação política focam apenas no momento da delegação pelo voto – mudanças no sistema eleitoral ou nas regras de financiamento de campanha, por exemplo, ou então o renascido ideal de democracia plebiscitário. Sem serem irrelevantes, tais medidas têm impacto limitado. Referendos e plebiscito revogam a delegação do poder decisório a representantes, mas não mexem nas outras dimensões da representação. Quem vai definir quais são as questões que serão submetidas à decisão popular? Quem vai elencar as opções à disposição do eleitorado? Quem vai ter voz no debate público? Afinal, mesmo com as novas tecnologias, ainda que todos possam falar, a atenção pública vai se concentrar em uns poucos. Eles serão, assim, representantes de muitas outras vozes.

Parece que o desafio lançado à democracia pela exigência de representação não se resolve de maneira tão fácil. Em vez de ilusoriamente dispensar a mediação da representação, mantendo, no entanto, o voto como única forma de expressão da maioria, como na utopia plebiscitária, torna-se necessário ampliar a capacidade de interlocução entre representados e representantes. Em vez de dispensar a representação, aumentar a capacidade de supervisão dos representados sobre seus representantes. Isso exige educação política contínua.

Para tanto, há que se apontar para uma democracia participativa cotidiana, que gere espaços de decisão popular direta no dia a dia (nas empresas, nas escolas, nas famílias, nas vizinhanças). Este projeto exige o enfrentamento com estruturas que são centrais na sociedade: a empresa capitalista, a família patriarcal, o funcionamento burocrático e autoritário do Estado. Cidadãos e cidadãs treinados em processos decisórios concretos em suas vidas cotidianas estarão melhor preparados para dialogar com aqueles que os representam em decisões de maior amplitude. Mas ninguém está dizendo que este seja um projeto fácil de ser implementado.

Outro tipo de ação é menos ambicioso, mas mais factível no curto prazo. Já estão em curso experiências para reformar os mecanismos representativos dentro do sistema atual. Há iniciativas de mandato coletivo, tanto na apresentação das candidaturas (um nome é formalmente indicado à eleição, mas desde a campanha se designa um grupo sem hierarquia interna que responderia como representante) quanto no exercício do mandato (como na “gabinetona” de Belo Horizonte, em que duas vereadoras eleitas pelo PSOL fundiram seus mandatos). São esforços interessantes, que combatem sobretudo o personalismo que é um dos combustíveis da despossessão política das maiorias.

Alguns representantes adotam também a prática do diálogo permanente com grupos do eleitorado. Trata-se de romper com a dinâmica predominante, em que a comunicação entre representante e representados tende a ocorrer de maneira unidirecional, na forma de propaganda, ou então por meio da apresentação de demandas de eleitores individuais ao detentor de mandato. Reuniões em que o mandato possa ser discutido não apenas aproximam o eleitor comum da dinâmica da política parlamentar, aumentando sua capacidade de interlocução com o representante, como reforçam as trocas horizontais entre os constituintes, o que é fundamental para ampliar a qualidade democrática da representação.

É possível até definir como lei que essas trocas tenham que ocorrer. Uma determinação de que todos os detentores de cargos legislativos componham comitês de eleitores (por exemplo, em todos os municípios em que obtiveram mais de determinado percentual de sua votação), com os quais tenham que manter reuniões periódicas, a cada três ou quatro meses, para prestar contas e discutir o mandato. Alguns certamente tentarão burlar a regra, instituindo comitês fajutos e restringindo a discussão. Mas, difundida, a prática tem potencial para gerar uma nova dinâmica de exercício do mandato e arrastar até os recalcitrantes.

A questão, afinal, é ampliar o potencial da democracia realizar a promessa de governo do povo. A representação política carrega em si mesma um rebaixamento desse ideal, dividindo esse povo em quem de fato toma decisão e quem não toma. Como ela não se restringe ao voto, porém, não existe nenhum atalho que nos permita descartá-la. É preciso ir além do modelo plebiscitário, que nos oferece um simulacro de participação direta e deixa intocados os problemas de fundo, e buscar formas de democratizar a representação.

NOTA

* Critiquei as teorias da representação autoinstituída em diversos trabalhos. Ver os capítulos “Da autorização à advocacy”, em Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014); “Desigualdade e representação”, em Consenso e conflito na democracia contemporânea (Editora Unesp, 2016); e “A participação política”, em Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018).

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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

6 comentários em Para além da democracia direta

  1. ”e buscar formas de democratizar a representação.” There is no such thing as ‘representative democracy.’ Democracy is either direct or it is nor democracy at all.

    ” Quem vai definir quais são as questões que serão submetidas à decisão popular? Quem vai elencar as opções à disposição do eleitorado?” Well, of course the people themselves, chosen by lot. As Aristotle pointed out in his “Politics’ long ago, it is mistaken to define democracy as the rule of the majority; rather it is the rule of the poor or unpropertied, who normally constitute the majority. The mark of a democracy is a government selected by lot; the mark of its opposite, oligarchy, the rule of the rich, is election by ballot, which the rich will always win thanks to their wealth. It is time for Luis Felipe to catch up with Aristotle!

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    • Aristotle to fix 21st Century political issues? I think you are not aware enough of the differences between Greek democracy and modern regimes. Maybe, studying some of the political theory of the last two thousand years do not hurt!

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      • If this is the best response Pedro can come up with, why bother? Democracy is a concept 2,500 years old. Aristotle offers its best analysis. He points out it is quite inadequate to define democracy as the rule of the majority; rather it is the rule of the poor or the unpropertied. But now its meaning has been perverted to mean its opposite, oligarchy. Do you deny that Brazil is an oligarchy? The fact that on occasion the capitalist state allows the people the right to exercise their vote should not be conflated with the exercise of power. I am always open to suggestions on political theory. Here is a political question for you. What is the significance of the body of police in ancient Athens consisting of slaves? Even Aristotle does not address this issue. But with your study of 2000 years of political theory you surely can answer it.

        When I introduced the theory of democracy to my students, a majority of whom consisted of young women, I would begin with asking them how many tall, handsome men they knew. Naturally this question puzzled them and they were keen to know its connection with democracy. Answer is in Aristotle, but I have given you enough clues above.

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        • Well, I get bored with people who want to display erudition saying that dead old Greek men have already given all the answers. Citizenship restricted to a few and inclusive citizenship (in an iniquitous society) are too different to you put them in the same bag. But I don’t want to extend this private controversy. I suggest you read Ellen Wood, Pateman, Bourdieu, the author of the blog article (if you read Portuguese), Rancière or even Marx.

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  2. ”saying that dead old Greek men have already given all the answers.” Of course I say nothing of the sort. Your comment reminds me of those who assert the same of Marx, ”a dead old German!” Evidently you do not know that Aristotle did not invent or even recommend democracy; he analysed it. I suggest that much can be learned from his analysis that would be useful to Marxists today. In fact Marx held the same opinion as regards Aristotle. You recommend that I read Marx. Well, your own reading has evidently not progressed as far as Volume 1 of Capital or you would have recalled Marx’s very favourable estimate of Aristotle’s analysis of value. It is dangerous, not to mention arrogant, to treat a mighty thinker like Aristotle as ‘a dead dog.’ You would readily appreciate this were you to read ”A Forma Elementar Das Trocas em Aristoteles e Marx” ( Alice Foz 2018). There is a quotation therein that you ought to take to heart, ”Mas fato mesmo e que nao ha fato que repugne mais a inteligencia do que supor decidido o que e preciso decider ainda” ( P319).

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  3. As for Luis Felipe Miguel in ”A democratia na encruzilhada” ( his contribution to ”Por que gritamos Golpe?”) he writes ”O golpe de 2016 marca uma fratura irremediável no experimento democrático iniciado no Brasil em 1985.” So who conducted this experiment and who were the conducted? And ”o voto popular como meio necessario para a obtencao do poder politico e o imperio da lei.” Clearly this is untrue as he himself affirms:’o system em vigor em Pais nao pode receber o titulo de democratia’ and he well analyses why this is so at some length, speaking of ‘a democratia limitada’ or elsewhere of its being ‘claudicante.’ This is all very well and good, but he can also suggest ‘Parecera que a democratia foi restaurada.” Note the use of the passive voice permits the elision of the agent of this ‘restaurada.’Those who introduce democracy can just as easily abolish it. It is they who hold the power and they constitute an oligarchy, which is what Brazil is and always has been. Were It a democracy the courts would have no judges, corrupt or otherwise, but only very large juries chosen by lot from ordinary citizens, in political cases 1000 members, so more difficult to bribe and blackmail. Really what Luis Felipe needs is to employ the concept of limited oligarchy instead of limited democracy, which would lend his arguments greater cogency.

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