O dilema dos 10%

O psicanalista Christian Dunker apresenta uma interessante parábola ética para ajudar a pensar alguns dos dilemas morais envolvidos nas eleições presidenciais que se avizinham.

Por Christian Ingo Lenz Dunker.

Para Mathias, o matemático.

Imagine que você foi convidado para sair com uma turma de amigos. Entre eles há alguns colegas e outros desconhecidos. Eles decidem ir a um determinado bar para o qual você tem um cupom especial que lhe dá direito a 10% de desconto no consumo. Terminado o programa você percebe que a sua parte na conta corresponde exatamente aos 10% do montante geral, de tal maneira que basta apresentar o seu cupom e a sua noitada saiu por custo zero. Neste momento um de seus colegas levanta-se e argumenta que você não está agindo eticamente, pois na verdade está se aproveitando do gasto de todos para aplicar o seu desconto apenas para si. Ele reivindica que cupom deve ser aplicado ao conjunto da conta, reduzindo-a em 10% no geral e beneficiando um pouco cada um dos participantes.

Olhando de perto a denúncia ela baseia-se no fato de que você está “aproveitando” de seus companheiros, mas você não insistiu em ir a este bar em particular e a conta deles seria a mesma se você não fosse. O que a acusação está dizendo é que você não foi ético porque não foi altruísta o suficiente para distribuir suas vantagens com os demais. Você não quis compartilhar seu privilégio, o que não é uma atitude muito simpática, mas seria mesmo contrária à ética?

Outro colega, adepto do critério da transparência argumenta que o problema está no fato de você não ter mencionado que tinha o cupom, de tal forma que suas motivações para sair com a turma, ir a este bar e até mesmo suas escolhas de consumo, estavam sobredeterminadas por uma agenda oculta, que deixava os outros no escuro e estava orientada pelo acesso ao desconto.

Neste ponto você responde que suas intenções não eram premeditadas. Você não emitiu opinião na escolha do local e poderia ter pagado a conta com o seu cupom sem fazer saber aos outros que você o possuía. Na verdade, você está perfeitamente disposto a dividir os seus 10% com os outros da mesa. Mas o fato de ter sido acusado de egoísmo e de falta moral agora prejudica que esse ato seja de fato ético e não apenas o cumprimento defensivo de uma demanda do outro. Percebemos também que as relações entre ética e direito são mais complexas do que costumamos pensar. Você obviamente tem direito de usar seu cupom como bem entender, afinal ele é seu e o regulamento de sua utilização permite que você aplique o desconto a si ou o divida com os membros do grupo, mas isso não impede que hajam dilemas éticos.

Surge então a circunstância pragmática de que 10% divididos pelo grupo todo representariam um valor pouco significativo para cada um, ao passo que para você fez a diferença decisiva. Quando chegou ao bar, percebeu que ele era caro, seria melhor não ficar. Foi precisamente neste instante que você lembrou-se do cupom salvador. Logo, a transparência é um princípio ótimo, mas ela afeta, diferencialmente, ricos e pobres. Para os ricos ela expõe opulência e excesso, para os pobres convoca suas limitações. De fato, você sentiu vergonha de expor sua situação, principalmente pela presença de desconhecidos, e ao final se viu justamente questionado em sua moralidade por um deles. Além disso, ninguém deve ser “forçado a ser altruísta” e aquele que indiretamente evoca este tipo de culpa está agindo no litoral entre ética e imoralidade.

Vamos percebendo então que o problema ético não está apenas em quem pratica o ato, mas em quem levanta a pergunta. Quem fala o quê quando? Se você tivesse dito antes, se ele tivesse perguntado em vez de afirmado. O problema jurídico é abstrato e nele a ordem dos fatores importa pouco, mas quando olhamos as coisas do ponto de vista da ética o momento da fala é essencial e as circunstâncias individuais contam muito.

Denunciar pode ser um ato de coragem, mas também de covardia. No caso em questão é importante perceber a infiltração imoral da denúncia, apenas de seu efeito retórico purificador. Aquele que se levanta e acusa alguém de levar vantagem sobre o grupo pode estar simplesmente reagindo com ódio e vingança ao gozo excessivo que ele supõe no outro. Ele conta com a conivência de todos para a impressão de que o aproveitador está tirando de nós 10% e que não está sendo altruísta. Como se ele mesmo, o que acusa, estivesse agindo de forma desinteressada no momento em que faz a denúncia. Portanto, o verdadeiro egoísta, neste caso, é o denunciador e não o denunciado. Ainda que sem saber, e justamente porque ele não se importou em saber, você acabou humilhado e sua miséria foi exposta e tornada agora imoral. Por outro lado, você deveria ter feito sua própria autocrítica, ponderado sobre sua covardia em expor a situação e compartilhado o problema com aqueles que você confia.

Altruísmo e egoísmo são noções facilmente convocadas pela prática moral ordinária, como se fossem de manejo óbvio, quando, no fundo, são muito menos consistentes do que parecem. Quando cuidamos de um filho estamos sendo altruístas porque ele é outra pessoa ou egoístas porque ele representa e carrega as propriedades e traços de você mesmo?

As eleições se aproximam e dilemas morais como este parecem se avivar nas discussões domésticas e logo mais nos debates entre candidatos. Muitos deles estão ávidos por explorar a retórica da denúncia baseados justamente na hipótese de que tem gente se aproveitando de nós: esses que distribuíram cupons de alimentação, bolsas de assistência social, programas de auxílio a cultura, mas que na verdade perpetravam a mais opaca corrupção, tomando de nós aquilo que nos pertence, raptando os nossos 10% que foram estabelecidos por direito divino. Seriam esses os mesmos 10% que se tornaram metáfora do casamento obsceno entre Estado e empresa no Brasil?

A resposta mais simples e naturalmente equivocada consiste em inverter os sinais mas permanecer na retórica da denúncia sem que dela emerja uma verdadeira crítica transformadora. Nesta linha esperamos ver no debate eleitoral a contra-denúncia de que mais errado do que aproveitar-se do cupom é usar a denúncia do erro para apossar-se da fábrica de cupons. A partir de então, os cupons são feitos e distribuídos aos amigos, contando com o golpe de colocar a culpa nos outros e de criar o efeito de culpa coletiva para os que pensam como A ou como não-A.

Quando a lei é invocada mais além de suas forças e de sua jurisdição inicia-se um processo em cascata e redundância, de confusão entre ética e direito. O fato de que o candidato mais forte e em primeiro lugar nas pesquisas ainda seja Lula é um índice desse processo. Ele é culpado legalmente mas permanece para a maioria do eleitorado inocente eticamente. Isso reforça a indignação e pode ser uma potente arma discursiva para o argumento naturalista de que isso apenas comprova que a maior parte dos brasileiros é corrupta e leniente com seus atos ilícitos. Logo, precisamos de uma horda de cavaleiros seletos, do “grupo de operações especiais dos que só não estupram quem não merece” para colocar ordem na casa. Ordem seria justamente esse casamento perfeito entre ética e direito.

Existem atos éticos que vão contra a lei, assim como existem atos legais que vão contra a ética. Isso acontece porque a lei olha para o passado e a ética para o futuro, ao passo que nossa ação só pode ser dividida porque ela se dá no presente. A lei jurídica é formada pelo depósito de decisões, de normas e de consensos sobre o que já aconteceu. Ela é como um dicionário que especifica os significados das palavras tal qual tem sido seu uso até hoje. A ética, ao contrário, é o campo onde se formam novas palavras (neologismos), onde se recuperam usos prescritos e onde se criam novas demandas e problemas, que um dia serão integrados à lei.

Mas entre os candidatos legalmente disponíveis qual deles representará a nova forma de vida que o Brasil precisa?

Vamos supor que nessa mesa de jantar 30% são seus amigos, sabem dos seus perrengues e estão bravos porque você foi acusado. Outros 30% são desconhecidos, que nunca sentariam numa mesa se soubessem quem você é: um miserável aproveitador que esconde cupons. Outros 30% decidiram que nunca mais vão sair com essa gente que fica brigando entre si. A situação para eles ficou tão complicada, cheia de idas e vindas, que seria melhor deixar o problema para lá. Tratam-se dos votos nulos e brancos, que refletem um pouco de cada uma das atitudes, mas de forma mitigada. Alguns gritam, meio desesperadamente, que nunca mais vão sair para jantar, nem para beber, e querem suspender essa história de necessidade de alimentar-se para viver. Outros são contra comer em grupo: cada qual com sua junk food vegana na sua própria casa! Outros, ainda mais sagazes, proclamam: vamos abolir o pagamento das contas. Não falamos mais no assunto e assim ele estará resolvido! O mesmo para a previdência, para a política científica e cultural, para a reforma tributária e política: tudo permanecer como sempre foi nos jantares de domingo lá em casa. Corruptos e honestos convivendo lado a lado em eterna suspeita e incerteza.

Restam 10%… e tudo dependerá de como eles serão distribuídos entre a turma da miséria envergonhada e a turma da denúncia vingativa.

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

6 comentários em O dilema dos 10%

  1. Muito bom como sempre, Christian Dunker.

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  2. Excelente reflexão!

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  3. Ceci Constant Lohmann // 08/08/2018 às 8:55 am // Responder

    Precisamos que reflexoes tao claras e lúcidas pudessem alcançar nossa populaçao….se tornem mais conscientes

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    • Sabe, Ceci, nao sei se devemos levar consciencia `a populacao ou se devemos levar consciencia aos ricos. Na Unicamp, em 1983, aprendia que deviamos levar consciencia aos pobres pra que lutassem por uma vida digna. Hoje penso diferente penso em ensinar os ricos a conviver em sociedade.

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  4. Excelente análise. Não havia pensado dessa forma sobre egoísmo, altruísmo, moral, ética e direito.

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  5. Gostei da analise justica e etica, passado e futuro, e nossos atos divididos acontecendo no presente e nunca bem analisados nem pela etica nem pela justica. No momento em que lia o texto pensava que voce nao daria uma forma correta e vingativa sobre como agir e atuar nesses casos porque a Psicanalise nao faz isso. A Psicanalise sempre aposta em cada um e nas possibilidades de cada sujeito no momento de sua atuacao. Sabe, Dunker, quando eu consigo prever que alguem vai puxar o tapete eu armo pra cima desse alguem ou do grupo. Eu nao vou matar nem agredir mas vou puxar o tapete antes e deixar todo mundo na mao. LULA ja disse: “Vinganca eh um prato que se come frio” e eu digo: “Vinganca eh um prato que eu como congelado”.

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