A ideologia racista como mito fundante da sociedade brasileira

Não é absurdo afirmar que o Estado de exceção não se estabelece apenas em 2016. O Estado de exceção no Brasil é uma realidade social e política, se reinventando e reestruturando há séculos.

Manifestante em vigília pela liberdade de Rafael Braga Vieira realizada na Avenida Paulista em São Paulo, abril de 2017. Hoje, dia 8 de agosto de 2017, seu habeas corpus foi negado e ele continua encarcerado. Foto: Jorge Ferreira / Mídia NINJA

Por Juliana Borges.

A conjuntura atual no país nos faz vocalizar a todo o momento que estamos vivendo “um retrocesso”, “um retorno ao passado”.

O governo ilegítimo de Michel Temer se instaura apostando na crise de representação e participação e aprofundando-a. Com isso, avança uma agenda regressiva e de reformas neoliberais. Nesse bojo, são apresentadas as reformas trabalhista e da previdência, se avança na grilagem sobre terras indígenas e quilombolas intensificando o genocídio no campo. Avança o corte de recursos da ciência, tecnologia e produção de conhecimento, numa ofensiva contra pensamento crítico. Com o desmonte e paralisação de atividades de instituições federais de ensino, amplia-se a militarização de territórios e comunidades, se acentua o encarceramento em massa e o sistema punitivista ganha destaque e centralidade.

Mas isto não está, em absoluto, descolado do cenário global, no qual o neoliberalismo avança no sequestro do Estado, restringindo a democracia, desmontando e desorganizando a estrutura estatal, impondo o conservadorismo pelo discurso do medo. Na linguagem de Boaventura de Sousa Santos, estamos vivendo cada vez mais em sociedades “politicamente democráticas e socialmente fascistas”. Ou seja, sob um verniz e discurso democráticos, o que temos visto são práticas cada vez mais restritivas da democracia, nas quais o capital especulativo e a lógica financeirizada imperam. O ser humano se torna commodity. Nesta sociedade em que tudo é consumível, vendável e descartável, temos o caminho aberto para a selvageria generalizada.

Contudo, seria uma novidade seres humanos mercantilizados em nosso país? A selvageria e violência são novidades ou constituidoras da sociedade brasileira? Há uma regressão ou um reordenamento para sistemas e características fundantes da sociedade brasileira, de modo a garantir e aprofundar o pleno funcionamento das desigualdades e do sistema de castas sócio-raciais?

Manifestantes em ato pela liberdade de Rafael Braga no dia 7 de agosto de 2017, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Vendemos ao mundo – e acreditamos veementemente nisso – que somos um povo pacífico, amistoso, receptivo, bem humorado e amável, entre outras características de passividade e pacifismo. Ou seja, de modo geral nos enxergamos pacíficos. Afirmamos, ironicamente, estas características, ao passo que as estatísticas contradizem veementemente estas que de condições passam a crendices. Por ano, são assassinados 30 mil jovens no país, fruto da violência urbana. Desconstruindo a crendice da democracia racial, este dado expõe que 23 mil deles são jovens negros.

Segundo a filósofa e professora Marilena Chauí, “um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo” (“O mito fundador do Brasil”, FSP). Neste sentido, e diante do cenário, é possível afirmar que democracia racial e pacifismo formam o arcabouço do “mito fundador” do nosso país. Ou seja, o racismo é uma ideologia que atravessa o tempo e acompanha o desenvolvimento e transformações históricas da sociedade brasileira.

A primeira mercadoria do colonialismo, e seu posterior desenvolvimento capitalista no país, foi o corpo negro escravizado. Este foi um processo que não se fixou apenas na esfera física da opressão, mas estruturou o funcionamento e a organização social e política do país. Sendo assim, as dinâmicas das relações sociais são totalmente atravessadas por esta hierarquização racial. Se, no processo de construção de ideia de descobrimento, o racismo se colocou explicitamente pela instituição da escravidão, ele seguiu pela hierarquização e teorias raciais no transcorrer dos séculos XIX e XX, e foi se refazendo e se reapresentando em outras configurações neste percurso histórico, permanecendo sempre ali, latente nas relações sociais e pela estrutura e instituições do Estado.

A “fundação” de nosso país acontece tendo a escravidão baseada na hierarquização racial como pilar. O racismo é uma das ideologias fundadoras da sociedade brasileira, assim como a violência. Um exemplo objetivo sobre isso é que diversos manuais e livros de história apontam que, no início da invasão portuguesa, estimava-se uma população de indígenas em torno de 2 milhões de pessoas nestas terras. Em 1819, a estimativa cai para cerca de 800.000 indígenas. O tráfico de africanos sequestrados teve início em 1549. Estima-se que, até a proibição do tráfico transatlântico, cerca de 5 milhões de africanos foram sequestrados e escravizados no Brasil. Algo tão fundamental no processo de formação do país, não some em um estalar de olhos pela simples destituição da monarquia, estabelecimento do republicanismo e por pretensões modernizantes.

Aliás, a pretensa modernização do país, seja em sua independência, ao permanecermos sob o poderio da mesma família colonizadora, seja nos ventos republicanos, tem na constituição de suas instituições mecanismos de manutenção das estruturas de opressão e da garantia de poder e capital nas mãos de elites que disputam entre si os espólios deste processo.

Neste sentido, as modificações que vivemos hoje têm, mais uma vez, sob o verniz de um discurso modernizante, as ferramentas que garantem o sistema de castas socio-raciais. Em um cenário de crise sistêmica, em um país de elites sem projeto nacional, o golpe de 2016 vai mostrando, cada vez mais, seus reais objetivos.

Não é absurdo afirmar, por exemplo, que o Estado de exceção não se estabelece apenas em 2016. O Estado de exceção no Brasil é uma realidade social e política, se reinventando e reestruturando há séculos. Mesmo após a “repactuação” com a Constituição de 1988, vemos que dispositivos fundamentais, que moveriam as estruturas de desigualdades no país, jamais foram regulamentados e praticados. Ou seja, há, a todo o momento, uma remodelação na estrutura das instituições de modo a “mudar sem transformar nada”.

Manifestantes em ato pela liberdade de Rafael Braga no dia 7 de agosto de 2017, na Avenida Paulista, em São Paulo.

Um exemplo é o Sistema de Justiça Criminal, entendendo-o aqui como todo um aparato que envolve diversas instituições e organismos. O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por esta estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial. A primeira Lei Criminal do país data de 1830 e já estabelecia regime diferenciado de penalização entre brancos e negros (inclusos os libertos). Sendo o corpo negro escravizado visto como um bem e mercadoria, além do cumprimento de penas nos porões das carceragens, havia a punição na esfera privada exercida pelos senhores de escravos. Sem qualquer regulação ou determinação e ingerência do Estado sobre este bem, a barbárie se instaurava. Ainda vivemos resquícios deste entendimento de que em corpos e comunidades negras, tudo de mais bárbaro pode ser praticado. O corpo negro segue no imaginário como um território em que todo tipo de estímulo e repressão podem ser exercidos. O poder sobre o corpo negro segue no senso comum social.

Além disso, há diversos documentos históricos que comprovam penalidades maiores aos negros, escravizados ou libertos, além de uma série de códigos e leis que vão agudizando esta seletividade, inclusive na primeira República. Apesar de acharmos que leis e normas abertamente segregacionistas só ocorreram nos Estados Unidos, nós tivemos no país, no século XIX, a determinação de que negros só circulassem em posse de “passes” que “garantiriam” seu direito de ir e vir, mesmo sendo libertos! Com a Primeira República e reformas nas leis criminais, tivemos a criminalização da população negra atingindo novos níveis com a “lei da vadiagem”, que continuou sendo aplicada, fundamentalmente contra negros e pobres, até pouco mais de 7 anos no país. Afinal, quem define o que é crime e quem é criminoso?

O sistema de justiça criminal é pouco discutido mesmo entre ativistas que lutam por justiça e igualdade social. Com isto, este tema arenoso e difícil de ser tratado na sociedade, mas de fundamental importância sistêmica na reprodução de injustiças e desigualdades étnico-raciais, econômicas, sociais e política, acaba por ser deixado de lado mesmo entre uma produção e construção de lutas progressistas na sociedade. Um sistema que tem entre presos 67% de negros, enquanto tem entre juízes e desembargadores 84,5% de brancos não pode ser pensado sem esse elemento estruturador que é o racismo como mito fundante do país. Como explicar tamanha disparidade?

A crise sistêmica e o golpe no Brasil podem parecer distantes desta realidade criminal, mas são aparatos e estruturas absolutamente interseccionados e indissociáveis para a manutenção da dominação e da reprodução de diferenças como desigualdades. Nossas respostas precisam aprofundar-se no mesmo refinamento com que estas estruturas e aparatos ideológicos operam no funcionamento de nossa sociedade.

***

Juliana Borges é feminista negra e antiproibicionista. Pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política, onde cursa Sociologia e Política, é Secretária de Mulheres do Diretório Municipal do PT de São Paulo. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013). Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quintas-feiras.

5 comentários em A ideologia racista como mito fundante da sociedade brasileira

  1. Deve-se ressaltar que países politicamente democráticos e socialmente fascistas não são prerrogativas de regimes de direita. A esquerda(comunismo) também nos causa a mesma impressão. Ou seja, regimes ditos socialistas sob o eterno mantra da luta contra o imperialismo colocam no poder verdadeiros ditadores que subjugam os menos favorecidos. Sou incrédulo quanto a uma relação capital/trabalho tal qual preconizada por Marx. Já dizia Thomas Hobbes: “O homem é lobo do próprio homem”. A única civilização verdadeiramente comunista(ser comum ao outro) que conheci foi os índios Yanomamis do Alto Rio Negro no Amazonas. Lá sim, presenciei o verdadeiro comunismo preconizado por Karl Marx. Todos os regimes tendem a escravizar os menos favorecidos. Seja socialmente e/ou racialmente. A Revolução dos Bichos de George Orwell é outra obra que ilustra muito bem esta relação de politicamente democrático em uma esquerda desvirtuada de seus princípios.

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  2. Breno Leite // 10/08/2017 às 8:14 pm // Responder

    Estive nas manifestações de 2013 na cinelândia, Ocupa Cabral, e outras aqui no Rio de janeiro. Foi público e notório o quanto a esquerda (PT, PC do B, PSTU) , a intelectualidade das universidades, e a burguesia “pinto mole” hoje fora temer, se omitiram em uma defesa agressiva do governo Dilma e do PMDB do Rio de Janeiro. O que mais se ouvia destes segmentos, era o questionamento da baderna e que as manifestações eram violentas demais (sic). Muitos foram presos, na sua maioria ligados aos movimentos anarquistas, sem rabo preso com o Estado, o que sempre sai caro, e sofreram perseguição por isso. O Rafael Braga não tinha nada a ver com nada. A cor negra, foi o que contou,

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  3. Maria Avila // 12/08/2017 às 3:10 am // Responder

    O sistema capitalista não favorece nenhuma possibilidade de mudança para esse quadro . Somente um sistema socialista , que iguale todas as crianças e limite as fortunas será capaz de apagar o passado formador .

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  4. Republicou isso em tyrsoreblog.

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  5. Angelus Pietro // 12/12/2017 às 10:57 am // Responder

    A diferença entre socialismo e capitalismo é que no capitalismo o ser humano explora um outro ser humano, no socialismo é o contrário. Não existe sistema politico bom e sim pessoas que amam outras pessoas e quer o bem estar delas e não usar a fragilidade social de determinados grupos para fazer apologia e conquistar espaço na política para benefício próprio. Governar bem e para o povo, não significa olhar somente para o povo de “hoje”, mas também para o “povo” do futuro, e aí as vezes o bom governante tem que tomar medidas amargas para o povo do passado e do presente.
    Quanto ao racismo, acredito que é necessário ampliar o debate e não ficar circunscrito na questão do tema que o encarceramento é racista. A questão é: “As pessoas estão sendo presas somente pelo motivo da sua cor e/ou por serem pobres, ou porque uma condição do meio que vivem e de influência em sua conduta, ou por desvio de caráter as levaram para cometer atos criminosos?
    Minha pele é branca e minha avó materna era negra. Tenho parentes de cor negra. Assim como boa parte dos brasileiros, minha família, tanto por lado de pai como da minha mãe, não nos enquadramos na classe rica, mas fomos criados dentro de respeito aos valores sociais e humanos. Sou do tempo que o padeiro e o leiteiro deixava seus produtos na porta do bar fechado, e ninguém, ninguém, roubava o pão e o litro (era de vidro) de leite deixado na calçada. Brincávamos todos juntos. Não havia separação por cor da pele e desrespeito aos valores humanos.
    O que aconteceu com nossa sociedade, onde é que nos separamos como pessoas e como seres humanos? Cabe aqui o debate e criar soluções.

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