Asad Haider oxigenou um debate dominado pelo identitarismo
Asad Haider na Flipei 2019, ao lado de Debora Baldin e Jones Manoel. Imagem: Facebook da Editora Veneta / divulgação
Por Douglas Barros
A morte precoce de Asad Haider, crítico e ensaísta norte-americano de origem paquistanesa, deixa um vazio enorme no campo teórico-crítico. Seu livro Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje, lançado em 2019 pela editora Veneta, redefiniu os horizontes dos debates brasileiros, abrindo espaço para uma crítica que até então estava impedida de ser feita.
Na ocasião do lançamento, a esfera dos debates havia sido dominada por um aspecto quase religioso em torno da identidade. Era como se o pertencimento a uma identidade nos impedisse de partilhar dos sofrimentos de outra. Era como se pairasse uma essência sobre a identidade (fosse ela racial ou de gênero) que não pudéssemos compartilhar.
Os impactos dessa noção, que então dominava o Brasil, traduziam-se politicamente em uma competição entre identidades e em uma mística do sofrimento, na qual se disputava quem era a maior vítima e quem tinha mais “lugar de fala”.
À época, não eram poucos os que viam no identitarismo um regresso dos horizontes políticos; entretanto, salvo por poucas vozes isoladas, a maioria se contentava em denunciá-lo em seus clubes particulares. Sem dúvida, uma posição covarde que deixava o debate ser arrastado para o lamaçal do essencialismo.
Asad Haider, porém, foi um dos primeiros a denunciar o beco sem saída do identitarismo, correndo o risco de ver sua crítica relegada ao silenciamento. Sua festejada vinda ao Brasil em 2019, no Festival Literário das Editoras Independentes (Flipei), por exemplo, não ocultou hostilidades por parte de um amplo setor progressista, que lia Asad Haider como branco — como se, aliás, isso fosse motivo para inviabilizar sua crítica.
Desembarcando no país quando o “lugar de fala” havia se tornado uma espécie de defesa das essências imutáveis dos racializados, Asad Haider reconstituiu um debate profundo que, além de denunciar a armadilha do identitarismo, consolidava uma crítica capaz de abrir caminhos à solidariedade.
Para Haider, a identidade sempre foi fundamental ao sujeito, porque dá sentido à organização de um horizonte individual partilhado de maneira coletiva. O problema passa a existir quando ela se torna um fim em si mesma: uma política que, para ser organizada, precisa torná-la fechada e determinada por grupos de afinidade.
Baseada em uma narrativa fragmentada e em um subjetivismo atravessado pelo relato individual, a armadilha da identidade é a instauração de uma visão governada por fronteiras imaginadas que o próprio mundo objetivo, organizado pela exclusão, pela desigualdade e pela violência, produziu. Aí reside todo o perigo.
O paradigma do identitarismo à esquerda é o da resistência, e não o da transformação, ao passo que, à direita, é o da reativação de raízes que fecham fronteiras entre grupos, que assim precisam eliminar os demais. Mergulhado na gramática da vida liberal, ele age colonizando o imaginário político baseado na máxima “não há alternativa!”.
Foi Haider um dos primeiros a mostrar os problemas profundos que teríamos que enfrentar ao denunciar essa forma de gestão contemporânea. Por isso mesmo sofreu o preço do achincalhe e da adjetivação vinda dos setores “ditos” progressistas. Esses ataques, porém, nunca conseguiram atingir sua crítica nem silenciar o que seu livro denunciava: a perda de horizontes políticos e o recuo ao messianismo identitário.
Exatamente por isso, a perda precoce de Asad Haider é a perda de uma potente voz que oxigenava um debate carcomido pelo voluntarismo epistêmico, dominado pelo horizonte de competição no interior da forma de gestão atual. É a perda de um crítico que sabia que militância sem uma teoria profunda é só uma forma de consolidação de rebanho em torno de um pastor ou de uma ideia romanesca de limpeza étnica.
E, sobretudo, é a perda de uma voz corajosa que, diante da violência que avança no mundo atual, não tinha tempo para ter medo. É nesse espírito que me despeço dele com uma inscrição, ainda hoje visível, deixada por um resistente em uma cela da Gestapo em Roma: La morte è brutta per chi la teme! (A morte é horrível para quem a teme.)
Descanse em paz, companheiro de armas!
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Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós-graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política. Pela Boitempo, publicou O que é identitarismo? (2024). Escritor com três romances publicados, também é autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra) e Hegel e o sentido do político (lavrapalavra).
O que é identitarismo?, de Douglas Barros
Na última década, um termo tem se proliferado de maneira espantosa no discurso político. Moralmente carregado e lançado a torto e a direito em disputas de internet, mesas de bar, espaços acadêmicos e palanques políticos. Mas, afinal, o que é identitarismo? Na interpretação original do psicanalista Douglas Barros, o termo nomeia sobretudo uma forma de gestão da vida social contemporânea que engole esquerda e direita. Com um olhar da periferia do capitalismo sobre a colonização, Douglas revisita, pelo prisma da identidade, o surgimento e desmonte do sujeito, do Estado e do capitalismo modernos para jogar luz sobre os impasses da política contemporânea.
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