O desejo de ser outro

Christian Dunker reflete sobre o novo livro de Maria Rita Kehl, "Bovarismo brasileiro", que mobiliza literatura, psicanálise e teoria crítica para pensar a brasilidade.

Por Christian Ingo Lenz Dunker.

O livro de Maria Rita Kehl, Bovarismo brasileiro (Boitempo, 2018), retoma e generaliza a fórmula do agora clássico Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, no qual a literatura é empregada pela pensar a feminilidade, mas agora focada no debate sobre a brasilidade. Partindo da observação de que Lacan havia considerado Aimée, a paciente discutida em sua tese de doutorado de 1932, simultaneamente um caso de paranoia de autopunição e de bovarismo, a autora investiga nossa propensão a nos sentirmos outros. Segundo a descrição de Jules Gaultier (1892), o bovarismo implica uma espécie de excesso de livre-arbítrio que leva alguém a iludir-se com relação à autodeterminação de sua própria vida, uma crônica propensão ao apaixonamento e uma tendência a considerar-se genial do ponto de vista do conhecimento. Ele pode aparecer nas figuras do autodidata ambicioso ou da solteirona provinciana que se entendem cronicamente sub-reconhecidos e humilhados no plano ético. Como teria dito Aimée aos seus psiquiatras: “O que vocês esperam de mim? Que diga frases grandiosas?”.

De certa maneira o bovarismo é a normalopatia generalizada da modernidade, definida por uma subjetividade liberta de seu destino, errante face ao seu lugar de origem, insubmissa diante da autoridade natural ou familiar. Ser bovarista é acreditar que é possível ser outro, mas acreditar tão exageradamente nisso que passamos a já nos entendermos outros antes mesmo da realização do processo transformativo que nos levaria a tal. Poder ser outro é diferente de ser outro sem que os outros não tenham se apercebido disso. A diferença é radical pois no primeiro caso nos engajamos em uma luta por reconhecimento e no segundo nos fixamos em uma reinvindicação de reconhecimento. No primeiro caso o destino pode nos sorrir ao final da jornada, no segundo ele injustamente nos contraria.

Machado de Assis e Lima Barreto foram os primeiros a detectar o bovarismo nacional, do qual Sérgio Buarque de Holanda forneceu a fórmula conceitual ao apontar que o Brasil já se sentia moderno apenas pelo fato de que assim desejava tornar-se, ainda que então fosse apenas um império atrasado em seu republicanismo.

O livro de Maria Rita adquire um sentido inesperado no contexto do debate promovido por Jessé de Souza e sua crítica ao pensamento uspiano, que supostamente teria minorizado o impacto da colonização e da escravidão no entendimento do Brasil. A par da discutível relação entre o autor de Raízes do Brasil e a obra de Antonio Candido, bem como da influência de Raimundo Faoro sobre o pensamento, por exemplo, de um Roberto Schwarz, o debate parece opor, de um lado, a lógica do reconhecimento e da reprodução do capital cultural e, de outro, a lógica da economia de classes e a forma estética de outro.

“Se a forma predominante do bovarismo brasileiro consiste em nos tomarmos sempre por não brasileiros (portugueses no século XVIII, ingleses ou franceses no século XIX, norte-americanos no XX), nossa melhor literatura também tem seu personagem bovarista: é Rubião, personagem do romance Quincas Borba, de Machado de Assis.”
Maria Rita Kehl, Bovarismo brasileiro, p. 31.

Lembremos que Rubião é esse herdeiro de uma fortuna, que por sua vez foi herdada pelo filósofo bovarista Quincas Borba, que a destinou a Rubião tendo em vista o cuidado que este deveria ter com seu cachorro homônimo. O humanitismo é essa filosofia nacional, que será logo mais reconhecida pelo mundo afora, capaz de justificar a exploração do trabalho, manter o ponto de vista dos vencedores e conservar o familisimo patrimonialista brasileiro. Lévi-Strauss descreveu formas reais desse tipo de extrapolação “autodidática” do pensamento entre nossos primeiros professores uspianos, que imitavam fórmulas europeias como se fossem grandes descobertas, apenas para iludir incautos provincianos (ver: Tristes Trópicos, Lisboa: Edições 70, 1955). Rubião, essa espécie de Olavo de Carvalho do século XIX, sai de Barbacena para realizar seu glorioso destino no Rio de Janeiro: gasta seu dinheiro tolamente para ser reconhecido pelos “figurões”, usa e é usado pela imprensa sensacionalista para tornar-se um político, vive como um novo-rico à sombra de ser descoberto praticando a farsa da farsa.

O melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão”, máxima humanitista que antecipa e prepara a mais conhecida “Ao vencedor as batatas!” – ou seja, obtenha o poder, imponha-se pelo chicote, que a história será contada para justificar seu poder e sua glória. Esse descompasso entre a libertação tardia dos escravos e as ideias ultra-progressistas, essa contradição improdutiva entre o discurso liberal e a prática autoritária, como dizia Marilena Chaui, essa crença mágica nas ideias fora do lugar encontra sua reedição mais recente do bovarismo nacional na convicção que nossas crianças já estudam nos “States”, basta torná-las bilíngues; que nossos adolescentes já foram feitos para Harvard ou Yale, basta consagrar seu destino; afinal de contas, já somos como os europeus, porque nosso lugar é Miami ou ainda o redivivo Portugal. Oscilamos ainda entre o cinismo diante de uma história mal escrita e a paródia involuntária de nós mesmos.

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O livro de Maria Rita trás dois exemplos contundentes de anti-bovarismo. Primeiro a arqueologia do samba, mostrando de forma circunstanciada o que era a pequena África no Rio de Janeiro pós-libertação institucional dos escravos. Explorando o problema formal da síncope e a posição do malandro como uma forma de vida entre o público e a intimidade (Bovarismo brasileiro, p. 68), orientado para a criação de um mundo sem culpa (p. 70), disputando a prerrogativa para tornar-se autor individual de um samba cuja criação seria coletiva, ela  nos lembra que a separação entre público e privado quer dizer coisas muito diferentes quando se pensa do lado do rico ou do pobre (p. 84). Para o rico, ela significa civilização, discriminação entre interesses da pessoa e da coisa pública e redução do Estado. Para o pobre, significa descaso e demissão do Estado, reinstaurando um estado de escravidão. Maria Rita tenta deslocar esta falsa oposição tematizando a elite da pobreza negra e o decaimento da riqueza branca na análise da origem do samba. Desdobrando a figura do malandro para experiências contemporâneas como o manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi ou o rap dos Racionais MC’s e Mano Brown, passando pela ópera do malando de Chico Buarque, ela lembra que para os pobres a “rua já está dentro da casa” e queo público invade o privado não pelo excesso, mas pela falta” (p. 88). Disso ela extrai uma crítica do individualismo de ocasião, do institucionalismo instrumental, cuja descendência, que ela não menciona porque os textos são anteriores a isso, uma retórica da anticorrupção. Contra essas reencarnações do bovarismo ela retoma a imago do malandro como revalorização da amizade (p. 96), da lealdade e do afeto. Com isso ela distancia-se da crítica legalista que vê o processo de segregação racial, de gênero e de classe apenas como uma luta pelo apossamento do Estado e pela consecução de mais e de melhores leis. Aparentemente a concentração do capital cultural, social e financeiro não será resolvida pela via da denúncia e do ressentimento, mas pela valorização do comum como experiência de compartilhamento. A lógica do condomínio não será desfeita apenas pela derrubada dos muros.

O segundo dispositivo bovarista trazido pelo livro é a experiência clínica de Maria Rita ao atender integrantes do Movimento Sem Terra, no contexto da escola Florestan Fernandes em Guararema, São Paulo. Mostrando como a psicanálise não é incompatível com o espaço público, e que acolher o sofrimento não implica em aderir às identificações de massa, nem em tornar a psicanálise uma teoria da militância política ela traz um caso paradigmático de um trabalhador sem terra, analfabeto, migrante perdido de sua família, alcoólatra e assediado por pesadelos com seu passado. Neste sentido Maria Rita é uma pioneira indiscutível de iniciativas, hoje em curso, como os consultórios de rua, levada a cabo pelo grupo liderado por Tales Ab’Saber, da iniciativa do Margens Clínicas, do Sedes Sapientae em São Paulo, do Catavento em Porto Alegre, que atendem sobreviventes da violência de Estado, e de experiências como a que participamos junto aos refugiados da construção da barragem de Belo Monte, no Pará. Temos aqui um caso clínico paradigmático, uma prova real de como a psicanálise pode e deve ser empregada como prática social concreta para mitigar o sofrimento das populações vulneráveis no Brasil, mas também de como ela pode ser usada para desativar o dispositivo bovarista.

Ao fim e ao cabo o livro e a obra de Maria Rita Kehl inauguram um modo de pensar e de fazer a psicanálise no Brasil, menos colonialista, menos provinciano, menos bovarista. Ela nos mostra como boa clínica é crítica social feita por outros meios. Meios que não são a militância de massa, mas a escuta pessoal de cada um, meios que não se reduzem a oposições genéricas em torno do monopólio da crítica.

 

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

2 comentários em O desejo de ser outro

  1. Conclui que tenho que ler o livro da Maria Rita pra saber o que ela defini como bovarismo e brasileiro. Dunker na sua apresentacao do livro da Maria Rita nao contou muito e tudo ficou no ar. Pensei agora que o livro da Maria Rita pode ser legal pra gente analisar os fatos atuais tendo como base eventos antigos e a nossa cultura; literatura e musica. Particularmente considero a Psicanalise uma zona de militancia desde os primeiros anos de analise ja me avisavam que eu me tornaria uma militante e pra isso citavam a Ana O. que se tornou uma militante feminista apos a alta da analise. Eu acho que o Zizek faz da psicanalise a mesma coisa que eu, explicando, a Psicanalise eh mais uma ciencia que nos ajuda a transformar o mundo.

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  2. Quanto ao desejo de ser outro senti esse sentimento na minha infancia, na idade adulta e final da adolescencia, sentia muito a “inveja” do outro porque era consciente que era impossivel ser o outro. Aos 22 anos eu tive uma crise grave e comecei a tomar medicamentos minha vida mudou totalmente de uma hora pra outra e perdi o horario de sono, a fome, a disciplina, foi horrivel e eu me sentia muito mal, com muita ansiedade. Lembro que quando via as pessoas rirem, acordar cedo, comer e conviver sentia a minha impossibilidade de levar uma vida normal e o quanto era caro ser comum.

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