A força social da graça, ou: como se avalia o poder popular?

A esquerda atual não sente necessidade de pensar os meios de reprodução social da militância. A questão da luta de classes não defronta a esquerda, ela começa dentro da nossa própria forma de organizar.

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Por Gabriel Tupinambá.

Sósia: Senhor, essa é a simples verdade: esse eu estava em sua casa antes de mim, e, eu juro, eu estava lá antes de eu chegasse.
Amphitryon: Mas que insensatez é essa? Um sonho? Bebida? Devaneio? Ou uma piada de mal-gosto?
[…]
Sósia: Eu mesmo não acreditei nisso facilmente: pensei estar perdendo a cabeça quando eu me descobri dois e, por um tempo, tratei o outro eu como um impostor; mas ele me compeliu a reconhecer que era eu. Então eu vi que era eu, sem truque nenhum: da cabeça aos pés ele era bonitão como eu, com um ar nobre, forte, charmoso; nem duas ervilhas conseguem ser mais parecidas; se a mão dele não fosse tão pesada, teria ficado tudo bem por mim.
[…]
Amphitryon: Você apanhou?
Sósia: Sim
Amphitryon: E de quem?
Sósia: De mim.
Amphitryon: Você apanhou de você mesmo?
Sósia: Sim: não de mim, mas do eu que estava na casa, e que bate com força.” (Molière, O Anfitrião, Ato II)

Em meu comentário ao artigo “As três dimensões da tragédia da esquerda no início do Século XXI“, de Edemilson Paraná, sugeri que deveríamos mudar o gênero dramático do debate: ao invés de pensarmos a tragédia de uma esquerda desunida perante seus enormes desafios, argumentei que talvez fosse mais produtivo entender nosso predicamento do ponto de vista da comédia de uma esquerda que está paradoxalmente unida nessa lamentação comum. Em sua generosa resposta ao meu texto, Paraná reconheceu a necessidade de expandir a análise das diferentes formas de existência da esquerda para incluir aí também a dinâmica através da qual cada parte se “alimenta” dos limites das demais e buscou re-inserir essa elaboração num panorama mais amplo – o problema do poder – a luz do qual esse aspecto “cômico” da dinâmica da esquerda qualificaria uma das faces do drama “tragicômico” em que nos encontramos.

No entanto, apesar de concordar com o autor que a nossa situação política é desesperadora, gostaria de usar a oportunidade de responder às críticas de Paraná para insistir um pouco mais nos efeitos dessa mudança de perspectiva dramática que propus em meu comentário anterior, retificando alguns pontos que ficaram confusos e expandindo minha crítica à visão trágica do nosso predicamento para incluir aí também o problema do poder.

De que serve uma pitada de tragédiana análise de conjuntura?

Não é meu intuito – como sei que também não é o de Edemilson – perder tempo com uma discussão acadêmica sobre qual o tipo de drama que melhor caracterizaria os tempos atuais. Acontece que o debate sobre as diferentes formas de narrar a ação dramática esbarra, por diversos motivos, na questão da ação política. Os gêneros dramáticos nos oferecem diferentes maneiras de enquadrar o horizonte da ação transformadora, de pensar a relação entre quem atua e as consequências de seus atos. É por conta dessa transitividade que me sinto justificado em, mais uma vez, elaborar a referência original ao drama trágico, para extrair daí alguns elementos sobre a orientação mais geral desta resposta, em que pretendo defender que é preciso levar a comédia da esquerda mais a sério, principalmente se quisermos pensar a organização política do ponto de vista estratégico.

Paraná começa “A esquerda diante do poder: do trágico ao cômico para o tragicômico” com uma epígrafe retirada da peça Anfitrião, de Plauto, que justificaria esse novo passo na metáfora do drama. Trata-se de um fragmento do prólogo, em que o deus Mercúrio conta que está ali a mando de Júpiter, que arquitetou um plano para deitar-se com a esposa de Amphitryon, um general tebano. Como Alcmena, a esposa, está muito apaixonada por seu marido, a única maneira de Júpiter seduzi-la é tomando a forma de seu amado. Para isso, Júpiter recruta a ajuda de Mercúrio, que tomará o lugar de Sósia, escravo de Amphitryon, e guardará a porta da casa de Alcmena enquanto Júpiter estiver lá dentro na ausência do verdadeiro Amphitryon. Relatando o plano de seu pai Júpiter, Mercúrio revela então que narrará “uma comédia com uma pitada de trágico” pois não acha “que seja justo fazer uma comédia de fio a pavio, quando nela intervêm reis e deuses […] já que há nela , também, um papel de escravo” – o de Sósia. Decide-se então por narrar uma “tragicomédia”.

Paraná interpreta essa prudência estilística de Mercúrio, citada em sua epígrafe, como um lembrete de que precisamos situar toda a análise da esquerda à luz de nosso objetivo principal, a transformação social. Nosso objetivo é o “acúmulo de força social” em vistas de uma transformação radical da sociedade e é do ponto de vista desse grande desafio que devemos avaliar a situação da esquerda brasileira e mundial. Ele escreve:

“Para retomar Plauto, não há como caracterizarmos impunemente como comédia uma peça que inclui esferas ou personagens tão distintos quanto “reis e deuses” e “escravos” (aqui, o povo, as esquerdas, a luta de classes, etc.). Daí que a análise não possa ficar presa à comédia da esquerda: terá de chegar a tragicomédia do (problema do) poder. […] Veremos, ademais, que considerado o acúmulo de força social como o objetivo em tela, não estamos diante de um problema (da unidade das esquerdas) “resolvido”, como nos é sugerido, antes o contrário.”

O efeito de “retificação” do debate que o texto de Paraná propõe depende, me parece, de como interpretamos a ressalva de Mercúrio em narrar uma comédia quando a estória mistura deuses e escravos. Mas o curioso é que Anfitrião não é apenas um drama em que “figurões” e “meros mortais” se encontram, mas antes uma peça em que os deuses e os escravos se confundem a ponto de se identificar. Como mencionei no início, a preocupação do narrador do prólogo com o modo como vai narrar a ação subsequente não decorre do fato que deuses e humanos competem pelo amor de uma mulher, mas antes do fato que Mercúrio – não por acaso o deus do comérciovai se passar por Sósia, um escravo. O gênero da “tragicomédia” é inventado – e a citação de Plauto é a primeira que conhecemos desse termo – para preservar a diferença entre os deuses e os escravos: a graça da peça vem da suspensão de qualquer traço distintivo entre o que é colocado acima e abaixo dos homens e é contra os efeitos dessa indistinção que a tragédia é re-introduzida por Plauto.

E é justamente por dramatizar nosso predicamento sem oferecer à esquerda o privilégio de um sofrimento “sublime”, que atestaria a nossa conexão com um “outro mundo” mesmo em nossos fracassos, que eu estou insistindo na importância da comédia como uma forma narrativa para a ação política. Foi por isso que, em meu primeiro comentário à proposta de Paraná, enalteci o potencial de uma investigação que aplique à compreensão da esquerda as mesmas categorias que aplicamos ao resto da sociedade – ou seja, justamente uma perspectiva que se permita apagar qualquer traço distintivo a priori entre a esquerda e mundo. A proposta de referenciar os diferentes modelos ideológicos, epistemológicos e políticos da esquerda nas diferentes lógicas de determinação social imbricadas numa formação social – Capital, Estado e Cultura – é apenas um desenvolvimento desse mesmo princípio. Assim como a sugestão de avaliarmos algumas das formas de interação entre esses modelos, correlacionando a estabilidade desse “sistema complexo” com a estabilidade do complexo social em geral. Em comparação com a justificativa de Plauto para o tragicômico, me parece evidente que esse modelo de análise de conjuntura seria cômico “de fio a pavio”.

Quem vê a gente até acha graça

Em sua tréplica, Paraná fez algumas críticas a minha proposta, principalmente a minha formulação mais polêmica, a saber, de que a esquerda não pode resolver o problema de sua unidade porque, na verdade, ela já está unida: por baixo das tensões entre a esquerda “parlamentar”, “tradicional” e “fragmentária” defendi que existe uma interdependência constitutiva, de modo que cada uma dessas diferentes dimensões só se apresenta como um “atrator social” autônomo, com sua própria ideologia e forma de organização, por se orientar pelas limitações das demais. Ou seja, ao mesmo tempo em que fracassamos em atingir a unidade idealizada entre cada um desses pólos, uma unidade real – mas um tanto desajeitada e ineficiente – se sustentaria à nossa revelia.

Vou deixar de lado algumas das precisões feitas pelo autor ao modelo de interconexão das esquerdas que propus – pois concordo prontamente com seus apontamentos – e vou focar ao invés na questão do poder e da organização. Como mencionei acima, Paraná defende que é difícil sustentar que a esquerda “já resolveu” o problema de sua organização quando consideramos qual é a finalidade dessa unidade, que é o “acúmulo de força social” para efetuar uma transformação social de amplo espectro. Ou seja, estaríamos tratando como “fim” em si mesmo algo que é na verdade um “meio” de tomada de poder, e é só por conta dessa confusão que poderíamos nos permitir de chamar essa situação de uma “solução”.

No entanto, me parece que, ao expandir o debate para incluir aí a dimensão estratégica, o comentário crítico de Edemilson nos convida a retomar o modelo de análise anterior – com seu matiz trágico – e a avaliar o valor dessa unidade efetiva a partir de uma nova idealização. Isto é, avaliar o acúmulo de força social da luta emancipatória por sua capacidade de “movimentar todo o espectro social e político para uma certa direção, deslocando ou reinstaurando o campo de combate, os conflitos e as contradições sociais em outro patamar”.

Concordo plenamente com Paraná quando sugere que devemos avaliar a situação concreta a partir do problema da força social capaz de ser mobilizada rumo a um dado objetivo estratégico. O que me parece problemático é fazer essa avaliação, mais uma vez, a partir de um “mais além” da própria esquerda. Caberia aqui, ao invés, aplicar novamente o método de olhar menos para onde o dedo aponta, e mais para a ponta do dedo, e investigar, seguindo a intuição original do próprio Edemilson, como que o poder já existe hoje na esquerda. Que tipo de relação com a “monstruosidade do poder” é dramatizada dentro das esquerdas hoje? Como que as esquerdas governam a si mesmas em seus diferentes veículos midiáticos, instrumentos políticos, projetos sociais, no trato com o dinheiro, com o tempo e o trabalho das pessoas? Comparada às empresas, ao Estado, ao tráfico, às congregações religiosas – que sempre soubemos analisar a partir da tangibilidade do poder e de suas estruturas organizacionais – como nós nos saímos?

Da maneira que Paraná apresentou a questão, haveria hoje uma esquerda desorientada, desconectada de si mesma e da sociedade, e portanto tragicamente impotente e incapaz de efetuar transformações estratégicas no mundo. Ou como ele coloca: estaríamos enfrentando “uma espécie de travamento operacional, sem horizonte, e sem visão de futuro, presos à administração resignada do presente e à celebração ansiosa de nós mesmos”. Mas da perspectiva que estou defendendo, o mesmo problema se coloca de outra forma: trata-se antes de uma esquerda cuja organização é tão perfeitamente compatível com o mundo que vivemos que está à vista de todos que não há nada ali que convoque ou demande alguma “adesão” especial. Enquanto nós nos enxergamos do ponto de vista trágico, aparecendo para nós mesmos de maneira “antigônica” (risos) ao mundo, enterrados vivos com a cabeça cheia de ideais, para qualquer outra pessoa não há aí tragédia nenhuma, mas antes um circo que dedica suas forças “realmente existentes” à preservação de um índice distinção social e à manutenção de uma certa dinâmica de poder bastante tangível e que simplesmente não carrega nenhuma grande novidade. Nós somos antes como o pobre do Sósia, que pena para convencer os outros de que serve à honra de Tebas e não à malandragem dos deuses.

Mas seria mesmo possível afirmar que a esquerda já tem algum poder hoje? Certamente não, se partirmos daquilo que a esquerda almeja: em comparação com nossos ideais de transformação, destaca-se mesmo nossa pequenez, impotência, etc. Mas de um ponto de vista menos compromissado com a esse horizonte ideal, a resposta não é tão simples assim, pois é evidente que, por mais diversos que sejam os partidos, movimentos, coletivos, pautas, representantes parlamentares, líderes comunitários, jornais e discursos, o fato é que, quando observados enquanto um grupo social qualquer, nós certamente não aparecemos para os outros como uma fração da sociedade absolutamente sem meios econômicos, ideológicos e ou políticos. É uma situação paradoxal: se assumimos os ideais de esquerda, então vamos acabar concluindo que “não existe esquerda”, pois do ponto de vista desses ideais a dispersão e desorientação das correntes de esquerda atuais é aterradora, mas se não analisamos a situação do ponto de vista desse compromisso com a transformação social por vir, então existe uma esquerda, pois o que ganha relevo são antes as invariâncias sociais subjacentes a esse desespero político.

Assim, para piorar a polêmica, além de sugerir que o pior obstáculo no caminho de uma organização mais eficaz da esquerda é o fato de que, a despeito do que dizemos, nós já estamos organizados, estou propondo também que, talvez, nossa visão do que significa “disputar a sociedade” esteja igualmente distorcida, e pelas mesmas razões. É o que estamos fazendo enquanto discutimos o que fazer que não convence muito os outros – e não porque não representa um projeto de futuro interessante, mas porque o nosso trato atual com o poder dentro da esquerda é um índice bem mais convincente do que é que faríamos caso mais pessoas aderissem ao nosso campo político. A esquerda não está diante do poder: está sentada em cima dele.

Vale notar que essa mudança de perspectiva na verdade nos dá mais recursos para lidar com as duas perguntas fundamentais de Paraná:

“como conceber, então, uma força política capaz de suportar a realidade tragicômica de nossa relação com o poder, e ainda assim puxar com radicalidade as cordas da transformação social? Como pensá-la dentro e fora de sua composição social, num processo que é também um processo de meta-transformação (as esquerdas mudam com a mudança social)?”

Me parece que a junção dessas duas questões leva diretamente a minha proposta: dado que a esquerda quer mudar a sociedade à qual pertence, então o melhor índice de seu acúmulo de força é sua capacidade de mudar aquilo que, na própria esquerda, marca sua inserção social. Como mencionei em “Da tragédia à comédia“, trata-se de uma proposta que não é apenas mais rigorosa teoricamente – experimentando em condições artificiais aquilo que quer em seguida difundir – mas é também, talvez contra-intuitivamente, uma proposta mais realista do ponto de vista da disputa política e da reorganização estratégica. Vou agora focar nesse segundo aspecto.

A crítica da economia políticada militância

A questão realmente espinhosa de “A esquerda diante do poder” é o problema da direção – e por consequência, da “bússola” da esquerda e do futuro – pois uma coisa é defender, mesmo a contragosto, que há uma unidade de esquerda e que a esquerda não convence hoje não por conta de sua impotência, mas por causa do que faz com o (pouco) poder que já tem, outra bem diferente é discutir o que se faz com isso.

As críticas de Paraná tocam quase sempre nesse ponto: meu argumento de que os problemas atuais da esquerda têm a forma de uma solução – queremos unidade na diferença, mas é isso o que somos, debatemos como vamos governar os outros, enquanto governamos a nós mesmos, etc – periga fechar por completo nosso horizonte estratégico e tático. Se nós realmente somos divididos entre o que achamos que queremos e o que efetivamente fazemos, como que poderíamos dirigir um processo de transformação social? Uma proposta analítica que visa reformular nossas próprias contradições seria útil “apenas se a produção desses “novos problemas e contradições” de que se fala for direcionada por alguma força, e para alguma direção, já que não parece crível conceber que um acúmulo de forças dessa monta, mesmo no interior desta tragicomédia, se dê por acidente”.

A questão da direção eu acho que poderia ser classicamente dividida em três partes: a questão de quem dirige, a de quem é dirigido e a de para onde vamos. Minha resposta de bate-pronto seria a de que as três questões são a mesma – e que só é possível perceber isso adicionando um pouco de comédia ao nosso horizonte desesperado.

Em “Da tragédia à comédia” eu concluí meus comentários apresentando uma hipótese – que até me surpreendeu por não ter causado mais polêmica com Paraná – a respeito da “loucura” da esquerda. O que eu defendi é que talvez a razão pela qual a organização atual da esquerda sirva como um ponto de equilíbrio desse sistema complexo é que essa forma de estruturar as lutas em diferentes registros de determinação social permite que os diferentes extratos da militância desloquem “para os outros a causa de um sofrimento que, afinal de contas, fomos nós que inventamos”, isto é, não se responsabilizem pela loucura que é a escolha pela militância. Uma esquerda que se articula de maneira negativa, com cada corrente – parlamentar, revolucionária ou fragmentária – entendendo a si mesma como uma agência de transformação social que é atrapalhada pelo pacto silencioso que as outras frentes de luta tem com a reprodução do mundo capitalista, é uma estrutura que ao mesmo tempo admite e ignora a divisão subjetiva do militante. Ou seja, dentro desse modo de articulação entre as esquerdas, todo militante tem direito de entender a si mesmo como alguém absolutamente determinado pela luta contra o capitalismo ao mesmo tempo em que admitimos que os outros militantes são pelo menos parcialmente determinados pelos constrangimentos sociais e as formas de reprodução social capitalistas.

A partir dessa hipótese, conclui que é preciso reconhecer que, a despeito da miragem produzida por essa forma particular de interdependência, na verdade essa contradição subjetiva essencial do sujeito político moderno divide cada um de nós. Não existe de um lado o militante honrado e do outro a personificação do deus do comércio: cada um de nós é um duplo de si mesmo, determinado ao mesmo tempo nesses dois registros, sem meios estáveis de distinguí-los. Mas qual a importância dessa teoria do sujeito para o problema da direção política? Bem, para começo de conversa, essa teoria colapsa a diferença entre dirigentes e dirigidos, pelo menos nos termos em que costumamos pensar o problema.

O famoso enigma de “por que eles não se juntam a nós?” se esclarece bruscamente quando abordado por essa perspectiva. Quando um militante distribui panfletos na saída do metrô na hora do “rush“, por que eles não se juntam a nós, nós que dizemos coisas tão importantes em nosso material de propaganda? Do ponto de vista da teoria da “desósiação”, pensando o militante tanto como ator de transformação quanto de reprodução social, a resposta é clara: porque só quem tem tempo livre, recursos financeiros ou pelo menos uma satisfação na renúncia de seu próprio tempo e dinheiro poderia estar voluntariamente distribuindo panfletos na porta do metrô, ao invés de subindo as escadas como todo mundo. Ao mesmo tempo em que o panfleto enuncia uma igualdade, sua posição de enunciação é sustentada por uma diferença – tão mais notável quanto mais o militante parece ignorá-la. Quando tomamos as ruas num protesto, por que eles não se juntam a nós, nós que estamos dispostos a apanhar da polícia para fazer ouvir nossa indignação política? Porque nós lutamos contra o aumento da passagem sem considerar o preço da passagem até a manifestação, não consideramos o efeito adicional de humilhação que o protesto contra a terceirização pode colocar sobre quem aceita o trabalho em condições já humilhantes, não coordenamos a ação tática para que os corpos dos pretos e pobres não fiquem na linha de frente da polícia – não escutamos que “ir para a rua” não se opõe apenas a “ficar em casa”, mas também a “descer do morro”. Essa ignorância não é despolitizante porque não “sabe falar com a classe trabalhadora”, mas porque fala em alto e bom som que a esquerda atual não sente necessidade de pensar os meios de reprodução social da militância. Como argumentei acima, a questão da luta de classes não defronta a esquerda, ela começa dentro da nossa forma de organizar, dividir trabalho, utilizar o tempo dos militantes, no nosso silêncio sobre o dinheiro, sobre a logística, sobre a loucura que é querer complicar ainda mais a vida medindo o valor de cada escolha e conquista à luz de um impossível.

Da miséria neurótica à infelicidade comum

Isso nos traz de volta à questão da direção. Não quero entrar em detalhes no debate sobre interpelação e ideologia – ainda que seja uma “isca” que eu adoraria que o Paraná mordesse – mas me parece que chegamos aqui num ponto essencial a respeito da hegemonia e da identificação política. O conceito de “sujeito” foi denunciado por muitos marxistas, o mais importante deles sendo certamente Louis Althusser, que entendiam a subjetivação como uma operação ideológica que produz uma “relação imaginária” entre os indivíduos concretos e suas condições reais de existência. Em suma, a mesma operação que nos permite olhar para nós mesmos como “sujeitos” consistentes – seres autônomos, auto-suficientes, atomizados – também faz desaparecer a tensão entre nós mesmos e as relações de produção capitalistas. No entanto, a definição de subjetividade que estou propondo aqui vai na contramão dessa concepção – pois se trata justamente de reconhecer que o engajamento com as organizações de esquerda exacerba a tensão entre o mundo que nos determina e o mundo que queremos determinar, entre o que é preciso fazer para sobreviver no mundo em que vivemos e os critérios pelos quais julgamos o que é uma boa vida.

É importante perceber isso por conta do seguinte: se a gente pensa a militância apenas a partir de suas ambições de transformação social, então não só não temos recursos teóricos para entender nossos próprios impasses, como também transformamos a esquerda num outro “aparelho ideológico”, dado que ser subjetivado pela esquerda significa criar uma relação imaginária com a realidade da vida e da sobrevivência no capitalismo – tão mais potente quanto mais reconhece no imaginário, ou seja, no que tange os outros, aquilo que denega em si mesma. Um aparelho que inclusive tem se mostrado cada vez mais necessário para que certos grupos sociais possam reproduzir as relações de produção capitalistas sem morrer de vergonha – asserção polêmica, mas que esclarece como um certo tipo de adesão à esquerda pode ser entendida como uma forma de compatibilizar os sonhos de realização pessoal autorizados pelo ciclo lulista e a dura realidade econômica que acompanhou e solapou essa autorização no campo das expectativas. Ser “de esquerda” muitas vezes permite que novas gerações sobrevivam à dupla humilhação de ter que levar uma vida parecida com a de seus pais ao mesmo tempo em que já não partilham das mesmas estratégias de defesa contra a humilhação das gerações passadas.

No entanto, eu boto muita fé no adágio que diz que “a ferida só pode ser curada com a lâmina que a infligiu”, e é por isso que defendo que a concepção mais “cômica” da subjetividade política que estou expondo aqui – e que sem dúvida alguma é desesperadora – carrega uma chave muito importante para nos ajudar a sair desse impasse. Isso porque, se a esquerda funciona como um aparelho ideológico quando produz a imagem de que a militância resolve, ao invés de piorar, a contradição entre reprodução e transformação social, por outro lado a assunção imediata dessa tensão faz do militante uma prova concreta de que outra relação com a realidade é possível.

O que pareceu para o Paraná como uma “rua sem saída” em minha proposta é, nesse sentido, o lugar onde eu acho que o próximo passo precisa ser dado. A assunção explícita de que a militância é, antes de mais nada, uma forma de sofrer – tal como Sósia, sua identidade dilacerada, com um pé firmemente preso abaixo e outro acima da humanidade – acarretaria uma inversão no vetor da interpelação: a esquerda não se dissemina socialmente quando seus ideais circulam na mídia, mas quando sua posição de enunciação se torna cada vez mais comum. E isso não acontece quando os outros passam a assumir a nossa postura, mas quando nossas organizações, sistema de valores, enquadres teóricos, etc, são marcadas de cabo a rabo pela problemática da reprodução concreta da vida, que é o ponto de inserção da militância no mundo.

Trata-se de uma mudança de perspectiva que, ao mesmo tempo, absorve e supera o problema do “lugar de fala”: sim, a posição de enunciação tem efeitos diretos sobre a eficácia do que se diz, mas existem posições que não apontam para o que cada um tem de diferente, mas para desafios incontornáveis da vida social. É claro que algumas pessoas individualmente podem ter mais recursos e facilidades para militar, se deslocar no território, com tempo livre, etc, e nesse caso seu “lugar de fala” de classe é outro – mas a questão não é essa: trata-se antes da posição de enunciação da própria organização. Uma organização composta por trabalhadores precarizados pode muito bem “trair” seu lugar de fala de trabalhadores, caso seu modo de funcionamento dependa de um voluntarismo heróico, sustentado à base de uma satisfação que só quem sente que está se sacrificando por um ideal tem acesso, assim como uma organização que pode contar com os recursos financeiros de seus membros pode se posicionar de maneira mais eficaz caso ali seja tematizada a preocupação com a alimentação, transporte, cansaço do dia de trabalho, inibição das pessoas, suas mesquinharias, etc. Fazer as coisas com cuidado é um sinal de que quem está falando não ignora na prática a base material daquilo que enuncia – e isso é o que é a compaixão: não tanto minha capacidade de padecer pelo sofrimento do outro, mas a incorporação em um modo de sofrer em comum. Por isso, vale a pena enfatizar: ao contrário do que se pensa, sofrer é uma atividade institucional – a história das formas de sofrer é a história das formas de organização coletiva.

Seria preciso então que toda a esquerda fosse realizar “trabalho de base”, se “misturar com o povo”? Não é isso que estou dizendo – ainda que a antiga concepção de trabalho de base tivesse o mérito de tornar quase impossível denegar a tensão interna entre panfletar e pagar as contas, já que dava mais trabalho ir até o mundo do trabalho. No entanto, quando um militante decide “ir” até a sociedade, está implicado aí que ele não se entende como parte da sociedade – e que ele renuncia a alguma coisa para ir “se juntar” aos outros. Abandonar esse traço distintivo, que carrega uma certa satisfação trágica, é um dos maiores desafios organizacionais da esquerda hoje – não pensamos, afinal, que seria possível colocar o problema da reprodução social no centro das preocupações da esquerda sem acarretar uma transformação massiva em nossa organizações, partidos e movimentos sociais, certo?

Mas não estaríamos ainda mais à deriva se nos voltássemos para nós mesmos dessa forma, focando nos problemas materiais – e, à primeira vista, apolíticos – da administração, logística e convivência nas organizações e ações da esquerda? É aqui que eu acho que colapsa também a terceira parte da questão da direção: não só os únicos dirigentes são aqueles que são dirigidos, como a direção para onde temos que ir é a de disseminar os meios materiais – recursos objetivos, mas também subjetivos – de sustentação dessa divisão interna.

Mais uma vez, não se trata de disseminar um discurso – “eu sou igual a você” é algo que só algumas pessoas podem dizer, aquelas que têm meios de se fazer escutar – mas de reformular os problemas de organização da esquerda do ponto de vista dos problemas de qualquer um. A esquerda tem o potencial de ser um modelo artificial de toda a sociedade, um palco em que a tragédia social pode ser encenada em outra chave, quem sabe achando alguma graça no desígnio auto-imposto de sermos pessoas ordinárias desejando algo de extraordinário. Mas se a gente não confia que a força social de uma organização se mede pela sua capacidade de acolher a fraqueza individual, nem que essa força de transformar a “miséria neurótica em infelicidade comum” é uma orientação capaz de produzir entusiasmo nas pessoas, então acho que não vamos ver graça nem mesmo no comunismo.

A comédia é um gênero que não tem lugar para a esperança nem para a redenção, é verdade, mas eu não consigo esquecer as palavras de Freud quando diz que “um novo chiste age quase como um acontecimento de interesse universal: passa de uma a outra pessoa como se fora a notícia da vitória mais recente”.

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Gabriel Tupinambá é psicanalista, pesquisador no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (www.ideiaeideologia.com). Autor do livro Hegel, Lacan, Žižek (Atropos Press, 2013), de contribuições nos livros editados Slavoj Žižek and Dialectical Materialism (Palgrave, 2016), Repeating Žižek (Duke Press, 2015) e Althusser and Theology (Brill, 2016) – além de autor da orelha da edição brasileira, publicada pela Boitempo, do livro O sujeito incomodo: o centro ausente da ontologia política, de Slavoj Žižek.

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