O reino da cozinha: Minha estreia na churrasqueira

15 04 02 Flávio Aguiar Reino da cozinha SalchichasPor Flávio Aguiar.

A verdadeira pátria do gaúcho é a churrasqueira. Nômade, ele a leva consigo, sob a forma de uma trempe (grelha, para os demais brasileiros), que arma em qualquer lugar. Um pouco de sal, um naco de carne, um trago de canha, um gole de vinho, um punhado de farinha e a pátria está feita. Nada a ver com isto de rodízios e espetos corridos, mais uma miríade de sushis, massas estapafúrdias, garçons de gravata borboleta e caipirinhas que custam os olhos da cara, além do preço dos vinhos.

No meu tempo de criança, além da trempe, havia a churrasqueira de tijolos. Improvisada em qualquer canto, num recanto de praia ou fundo de quintal, ela já era uma prova de uma cultura sedentária. Os tijolos eram alguma sobre da casa, do galpão, onde o velho gaúcho andejo, ou o imigrante recém chegado se fixavam. E o naco de carne mal passada era o sinal das tropelias de índios perseguidos, partidas perseguidoras, guerras civis sem trincheiras mas cheias de cavalhadas e de remanescentes de rebanhos selvagens, estrepolias nas fronteiras mal demarcadas, não só entre portugas e castelhanos, imperiais e farroupilhas, maragatos e pica-paus, mas também entre a barbárie e a civilização, onde não raro – como hoje – aquela não está alhures, ou no outro, mas no coração desta e do sujeito que se acha melhor e mais completo.

Churrasqueira de alvenaria, com telhado e chaminé, era coisa de rico. Churrascaria era espaço de estrangeiro (brasileiro) visitante, ou então coisa fina que se via no Rio de Janeiro (em São Paulo eram raras, ecos ainda das tropelias e ressentimentos de 32). Comia-se churrasco bebendo cerveja, porque ele era um prato de verão. Inverno e churrasco eram inimigos, pelo frio, pela chuva e pelo vento, que demoravam o assado ou ressecavam a carne. Enfim, o churrasco e a churrasqueira eram os contrafortes de uma pátria – como se vê na foto do meu avô, em anexo, com cicatrizes do tempo.

Mas churrasco e churrasqueira tinham esta peculiaridade: ser um espaço masculino, onde e quando a cozinha era um reino feminino. Neste mundo e neste tempo, churrasquear era uma prova de ingresso na maturidade. A gente podia começar a falar grosso, ou a usar com convicção a voz que engrossava, junto com o buço que começava a coçar com seus pelos intempestivos e ousados.

Como sinal de prosperidade, meu pai construiu uma churrasqueira de alvenaria, nos fundos do quintal de nossa casa, em Porto Alegre. Era imponente, a seu modo: uma mudança de era, como fora a introdução do fogão a gás na cozinha e do chuveiro elétrico no banheiro, desbancando o fogão a lenha e o boiler de água quente que o acompanhava. E eu sonhava com minha estreia naquela churrasqueira, cercada de pompa e circunstância, espetando carnes, salgando-as com o sal grosso, tomando canha e cerveja como gente grande. E ela ainda não fora usada, quando se deu a minha estreia.

Bom, canha e cerveja eu comecei a tomar, com os colegas de colégio. E a minha iniciação na churrasqueira veio, mas não do modo como eu pensara.

Em abril de 1964 aconteceu o golpe. Derrubado o governo de Goulart, começando os desmandos e as perseguições, coisas imperiosas se impuseram. Entre elas, o seguinte: na Faculdade de Medicina, onde meu irmão mais velho estudava, tornou-se necessário destruir – apagar da história – uma edição do jornal do Centro Acadêmico. O presidente do Centro estivera em Cuba um mês antes, e a edição trazia, em letras garrafais, com sua foto enorme, a manchete na capa: “Nosso homem em Havana”. Eram 2 mil exemplares.

Uma noite, meu irmão os trouxe para casa. Em segredo para ninguém ver. E nos dois dias seguintes eu queimei aquela jornalhada toda, exemplar após exemplar, na churrasqueira de meu pai. Foi um trabalho insano, em todos os sentidos, rimando com uma época insana. Uma estreia e tanto. Naquilo que eu queria que fosse a minha pátria.

Hoje, morando em Berlim, visito a Bebelplatz de quando em quando, onde se deu em 10 de maio de 1933 a grande queima dos livros do Terceiro Reich. É claro que os sentidos entre uma coisa e outra eram muito diferentes. Mas fico pensando sempre que queimar livros e jornais, ou outros documentos, é uma sina maldita.

Talvez por isso aquela churrasqueira tão desejada, que meu pai mandou construir, não veio a ser usada como tal. Na verdade, virou uma oficina com trastes de marcenaria, depois um depósito de tralhas e cadeiras velhas.

Até hoje eu penso que isto tem a ver com a maldição da minha e da sua estreia.

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Foto do avo do autor, com adereços de gaucho, assentado ao lado de sua patria.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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