O reino da cozinha: E as saladas?

flávio aguiar e as saladasPor Flávio Aguiar.

Meu pai não comia saladas. Ou melhor comia uma única salada – a de batatas com maionese, nos dias de churrasco.

Havia atenuantes. 

Naquele Brasil sulino dos anos 50, vivia-se muito mais sazonalmente, isto é, de acordo com as estações, e também com as latitudes. No auge do verão e nas profundas do inverno, por exemplo, as folhas verdes das saladas sofriam, queimavam com o calor ou com a geada. Mesmo na primavera, havia o risco das chuvas de pedra, quando não só as alfaces (era quase só o que havia) eram destruídas, como também tomateiros e os legumes, que eram poucos.

Frutas? Era igual. Bergamotas e laranjas, com os cáquis (no Rio Grande se diz assim), eram coisas de outono. As maçãs eram importadas da Argentina, e eram ruins, esfarinhadas. Melancias, só no verão. Papaias eram desconhecidas. Mamões e melões eram meio amargos, precisavam de açúcar para serem comíveis. Também os abacaxis precisavam ser adoçados, porque eram ácidos demais. Mangas, só fui conhecer ao me mudar para São Paulo, ao fim dos anos sessenta.

Enfim, comer era muito mais limitado.

Ao envelhecer, meu pai, depois de muita insistência por parte de minha mãe, deu de comer saladas. Traduzindo: em dias de churrasco, ele continuava a comer a salada de batatas antes do salsichão e das carnes, mas punha no prato uma – uma – folha de alface e uma – uma – rodela de tomate. E era só. Em tempo: naquelas gerações, “envelhecer” começava logo depois dos cinquenta anos. Ou era repentino. Um dia meu pai, no fim dos anos 50, foi cortar o cabelo no barbeiro (não havia cabeleireiro unissex – bom, agora que vivo na moderníssima Berlim, corto os cabelos num barbeiro turco, só para homens, coisa que também vi às pencas em Portugal). Depois do corte, ele, que era moreno, voltou com a cabeça completamente branca. Assim, de repente, tomado pelo envelhecer

Isto quer dizer que eu adentrei mesmo o mundo das saladas, pois em matéria de comidas meu pai era meu ídolo, quando me mudei para São Paulo e comecei a desenvolver hábitos próprios à mesa.

Namorar foi uma coisa importante para adquirir o hábito de comer salada. Porque havia uma identificação sutil entre mulher e salada. Até hoje, na verdade, considero a salada, sobretudo a verde, algo feminina.

Depois, com as filhas que foram nascendo, vieram os legumes, as sopas, e mais e mais saladas. A “vida verde” virou assunto e foi tomando conta do espaço político-alimentar.

Hoje sou um comedor contumaz de saladas. De vez em quando como saladas de batata, quando me lembro de meu pai. Mas apenas com maioneses feitas em casa, ou artesanalmente, jamais as envidradas de supermercado.

Adoro várias, de tomate com cebola, tomate e palmito, mistas, e prefiro os temperos simples, com azeite de oliva, vinagre, balsâmico ou limão e um pouco de sal. Mesmo depois de ter sido declarado hipertenso, não dispenso um salzinho na salada, com moderada falta de moderação.

Mas a quintessência da salada, para mim, é a verde pura, de alface. Não sei o porquê, mas é algo de fundo sagrado, embora de caráter pagão e profano. Acho que deriva do fato de eu considerar a salada – a alface em particular – ligada ao lado feminino da vida. Talvez por aquela insistência de minha mãe para que meu pai comesse saladas.

Também há o respeito pela coisa viva. Um tomate é uma fruta, bem como, de certo modo, um pepino, ou um sabugo de milho. Mas um pé de alface é algo inteiro, é um ser total, totalizado e totalizante.

E ninguém venha me dizer que plantas, vegetais, “não sentem nada”. Uma ova. Sentem sim, e como! As plantas falam – com o ajuda do vento talvez. Mas ficam tristes, ou vivazes e alegres, refugiam-se em suas raízes em momentos difíceis, depois explodem de alegria ao florescer. 

Assim, ao tomar um pé de alface, tenho a consciência de que vou temperar e mastigar um ser vivo,m enquanto ele está vivo. É quase um ato de canibalismo, sem ser antropofagia. A alface, assim como o sangue ouro vinho, pode ser algo inebriante. Há os que se afogam em vinho, ou mais infelizmente, em sangue, e até os que afogam os outros em sangue, nas guerras e, por exemplo, nas degolas que marcaram os meus pagos de antanho, durante as estrepolias sangrentas e sanguinárias das lutas intestinas ou contra índios e castelhanos. Eu, mais modestamente, me afogo em alfaces.

Tenho consciência, portanto, que ao tomar um pé de alface para transforma-lo em salada, estou penetrando um círculo sagrado, estou tomando eu mesmo um pedaço de vida para transforma-lo em parte de mim. Não estou comprando um pedaço de carne de um ser que foi abatido longe, em algum matadouro distante, esquartejado e transportado em postas gigantescas para os frigoríficos e depois partido em pequenos pedaços para os churrascos e bifes da vida.

Não, sou eu mesmo que vou processar o rito da deglutição universal, transformando aquele ser vivo e inteiro, embora de raízes já decepadas, na comestível salada. 

Assim me aproximo do pé de alface tomado por um sentimento solene da sacralidade do gesto, consciente de que estou tomando nas mãos uma parte viva e inteira do Mistério da Natureza, da Criação, e que vou, quase hereticamente, recria-lo em mim, como parte de minhas entranhas, de meus átomos, de meus átimos de prazer. Se a alface se afigura para mim como uma Deusa, eu me sinto diante dela com algo do Divino, do poder de alguma coisa externa fazer outra em mim, de partejá-la em mim, o que me faz, portanto, compartilhar, ainda que simbolicamente, da natureza feminina da procriação, logo eu, o macho de bigodes que adora churrascos e piadas de gaúcho.

Assim, com esta consciência nas mãos e já nos dentes, tomo da alface. É impossível comê-la inteira. É portanto necessário esquartejar as folhas, podando-as uma a uma do talo que deve sentir o desmembramento doloroso como um ser humano que, em ritual antigo, perdesse seus dedos ou até seus membros. Então me vem a vontade de degustar da alface em pedaços menores, pequenos, para melhor saborear o seu gosto e a sua consistência. 

Mas me arrepia, me dá calafrios, fazer uso da faca para tanto. Isto me lembra a barbárie das degolas guerreiras de antanho que ensanguentavam os pampas, que ensanguentaram Canudos.

Deixo assim que meu lado feminino me tome por inteiro: como uma bacante de Eurípedes a despedaço em êxtase com as próprias mãos, e assim ela está pronta para o tempero e a degustação, quando ela se transubstancia em mim e me transmite os poderes de sua feminilidade fértil.

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Na série O reino da cozinha, Flávio Aguiar fala de vida, política e outros conflitos comestíveis. Para mais churrasco, petisque as crônicas “Minha estreia na churrasqueira” e “A carreira acadêmica na churrasqueira“.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o mais novo A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em O reino da cozinha: E as saladas?

  1. Mouzar Benedito // 04/09/2015 às 2:34 pm // Responder

    Prezado Flávio,
    Existe um livro chamado “A vida secreta das plantas”, escrito por Peter Tompkins e Christopher Bird, em que eles falam de experiências com aparelhos muito sensíveis, e elas revelam que as plantas “choram”, gemem, quando são cortadas. Sentem dor, sim. Ah, e quanto aos hábitos alimentares, só vim conhecer um monte de comidas em São Paulo. Algumas eu sabia da existência (camarão, peixes marítimos etc.) e outras nem tinha ouvido falar: lasanha, ravióli, presunto etc. Na minha terra, a comida era só a mineira e a árabe. E mesmo a mineira era muito regional: não tínhamos farinha de mandioca, só de milho; feijão preto não existia ali, até as raras feijoadas eram com feijão comum; frango só ensopado – para viagens havia o “frango cheio”, assado; macarrão, só o tradicional espaguete com molho de tomate (“macarronada”), o macarrão branco (como “mistura” para o arroz com feijão) e a sopa de feijão com macarrão. Minha primeira lasanha foi no “Gato que Ri”, no Largo do Arouche, em São Paulo: fiquei surpreso de saber que existia aquilo. Bueno (como dizem os gaúchos)… se eu for escrever o que me foi apresentado depois que saí de Minas, vai dar um artigo maior que o seu.
    Abraços.
    Mouzar.

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  2. Grande Mouzar!
    Saudades. De você e d’O Gato que Ri. Adorei teu comentário e suas revelações. Do meu lado, eu só fui me dar conta de que abacaxi eram uma coisa inteiramente doce em Alagoas… Os do Rio Grande do Sul eram ácidos, compridos, e eram chamados de “ananás”. Uma coincidência: minha primeira feijoada paulistana também foi no Largo do Arouche, mas não no Gato. Foi num outro restaurante, que não existe mais, que ficava quase na esquina com a Rego Freitas. Fui comê-la para festejar meu primeiro salário em S. Paulo, como professor do hoje finado Gepe II (ele continua existindo, acho, mas não é mais na ex-fábrica da Troll na Pompeia, e mudou completamente de caráter). Voltando à feijoada, quando ela me foi servida, o garçom botou ao lado um copinho com um produto vermelho, e eu pensei, “ué, aqui em S. Paulo servem feijoada com molho de tomate, deve ser legal”. E encharquei minha feijoada com aquilo, que era, na verdade, pimenta malagueta… E eu não tinha dinheiro para pedir outra. Comi assim mesmo. Sem piscar nem chorar. Afinal, na hora da batalha gaúcho macho não pisca nem chora. Mesmo que a batalha seja com uma feijoada.
    Abraços, Flavio.

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