O reajuste do ajuste brasileiro

15.01.21_Osvaldo Coggiola_O reajuste do ajuste brasileiro[Dilma Rousseff, na cerimônia de posse de seu segundo mandato na Presidência da República; Brasília, 1.1.2015]

Por Osvaldo Coggiola.

O quarto mandato presidencial do PT começou sob o signo: a) da crise econômica e política; b) da tentativa de orquestrar um ataque estrutural contra as conquistas trabalhistas e as condições de vida dos assalariados brasileiros, com vistas ao “equilíbrio fiscal” e ao rebaixamento do “custo Brasil” (recuperação da taxa de lucros), supostamente para gerar uma nova corrente de investimentos externos e internos. As condições para enfrentar as primeiras e desferir o segundo estão fortemente condicionadas pelo processo e os resultados eleitorais de 2014.

No ano passado, as previsões oficiais de crescimento econômico (1% do PIB) não ocultaram as previsões mais realistas do “mercado”, que anteciparam certeiramente um retrocesso econômico (queda do PIB per capita, com 0,1% de crescimento). As exportações de manufaturados (base principal da produção industrial) se situaram em 2014 em US$ 6 bilhões abaixo de 2008, um retrocesso absoluto de 17%. A balança comercial teve um déficit de US$ 3,93 bilhões, o primeiro em 14 anos. O déficit comercial em bens industriais (importações/exportações de bens manufaturados) subiu 150% em cinco anos de suposta “não crise” (só Arábia Saudita fez pior na economia mundial – graças à sua monstruosa renda petroleira, se ne frega, por enquanto).

Nas condições de crise mundial, a reprimarização da economia brasileira está cobrando seu preço. Como apontou um economista da Consultoria LCA, “as cotações recentes do real, das ações na Bolsa e dos títulos públicos de longo prazo já são negociadas como se o Brasil não fosse mais um país com grau de investimento” (um “título” habilitante para investimentos externos, que os órgãos financeiros internacionais lhe conferiram em 2008). O capital mundial lhe está baixando o polegar ao país, o movimento típico prévio à fuga maciça de capitais, e ao consequente default.

Entre black bloc e Black Rock

Os indicadores industriais de produção, faturamento, uso da capacidade instalada, etc., embicaram para baixo. A ausência de investimentos (estatais ou privados) levou à crise os dois setores básicos da sobrevivência social: água e energia. Já estão sendo realizados rodízios em ambos os setores, em previsão de um apagão. Brasil desperdiça 37% de sua água tratada (na Europa, esse índice se situa entre 7% e 10%). Quanto à energia, o novo ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, literalmente encomendou-se a Deus (que seria, como se sabe, brasileiro). As distribuidoras de energia (setor privatizado pelo “neoliberalismo” tucano, o PT se limitou a “regula-lo”, com os resultados que agora se constatam) estão em situação falimentar. Para evitar cortes imediatos de fornecimento, o governo teve de entrar com empréstimos diretos (70% do auxílio às empresas geradoras e distribuidoras de energia foi realizado através de bancos públicos) e também como fiador de empréstimos em bancos privados. Nacionalizar todo o setor (“produtores” e distribuidores), que está saqueando a população e afundando o país, nem pensar.

O episódio eleitoral de 2014 ficou marcado inicialmente pela inesperada ascensão eleitoral de Marina Silva, cuja única “proposta concreta” era a de um governo “técnico”, isto é, um “governo com as melhores cabeças do país”, qualquer que fosse sua origem político-partidária ou não partidária. Que semelhante engendro (um não partido + uma não proposta) chegasse a encabeçar as sondagens eleitorais foi um índice da falência do sistema político brasileiro, isto é, da crise da chamada “transição política”. A tendência quase foi encampada pelo PT, que chegou a cogitar em propor Lula como chefe da Casa Civil (transformado numa espécie de primeiro ministro), como garante do poder e governo de fato, transformando Dilma numa rainha de Inglaterra com data de validade, uma “aventura” híbrida de presidencialismo parlamentarista (ou parlamentarismo presidencialista). Não foi necessário, pois, carente de solidez política, sem mais recursos políticos que alguns despautérios reacionários primários dirigidos à sua base eleitoral evangélica, a candidatura de Marina acabou caindo, considerada como uma aventura política por boa parte do empresariado.

Em um contexto de inflação crescente, para “salvar a economia” até as eleições gerais o governo petista apelou novamente para a receita da catástrofe: afrouxamento das regras financeiras (encaixes e depósitos compulsórios dos bancos) para incrementar ainda mais o crédito ao consumo, em condições de default potencial no consumo privado (63% das famílias estão endividadas, uma percentagem que é bem maior nas grandes cidades, com um 20% do total das famílias, ou 33% dos endividados, em situação de atraso ou inadimplência).

Em agosto de 2014, o Banco Central reduziu em R$ 15 bilhões o capital mínimo exigido para as operações bancárias, o que se somou ao corte de R$ 10 bilhões realizado em julho: com isso, os bancos puderam adicionar ao sistema de empréstimos a bela soma de R$ 225 bilhões, nove vezes o valor subtraído do capital mínimo exigido pelas normas de “regulação” financeira, uma verdadeira “fuga para frente” que não resolve nenhum problema estrutural. No balanço econômico dos primeiros quatro anos de Dilma, o crescimento acumulado do PIB caiu de 19,6% para 7,4% (uma redução de 60% em relação a Lula I e II); a taxa de inflação acumulada aumentou de 22% para 27% (aumento de 20%); o déficit acumulado em conta corrente pulou de 98,2 bilhões de dólares para 268 bilhões da mesma moeda, um aumento de 170%. A política capitalista está levando o Brasil para um buraco fundo de sua história econômica.

No entanto, na ausência de um ativismo popular independente, as eleições foram confinadas a uma disputa entre os setores dominantes. O empresariado fez mais doações à campanha pela reeleição de Dilma Rousseff (R$ 300 milhões) do que à do governador mineiro Aécio Neves. Esse fator foi decisivo: os votos derivados do “Bolsa Família” são considerados estáveis (27 milhões, aproximadamente) e perfazem só metade do eleitorado que deu a vitória ao PT. Além da estabilidade política, a grande patronal levou em conta que, em matéria de repressão (militarização e prisões, “lei antiterrorista” em andamento parlamentar) o governo petista superou todos seus predecessores, com a vantagem adicional de que o partido controla a principal central sindical (a CUT) e tem laços com os movimentos populares, ou seja, um poder de cooptação de lideranças bem superior ao dos tucanos.

Dilma Rousseff, além disso, anunciou com significativa antecedência que abriria mão, em um segundo mandato, da equipe econômica precedente. Buscou, desse modo, absorver a pressão dos “mercados”, cuja principal preocupação era que o Banco Central tivesse a capacidade de honrar o pagamento da dívida externa e aumentar os “incentivos” para que o capital especulativo não escapasse do país. Entre os “incentivos” não figuram somente o congelamento de salários e a redução dos gastos sociais. Um lugar importante é ocupado pela liberalização do comércio exterior e a mudança da política para o petróleo. Os esforços do governo para assinar um acordo de livre comércio com a União Europeia, para debilitar o Mercosul e assim “liberar” a política brasileira daquela da argentina, foram até agora bloqueados pelo governo platino da Kirchner, oposto a essa política (como também o é o governo do Uruguai).

Na questão do petróleo, o governo Dilma enfrentou a pressão para que a Petrobras atendesse os interesses de seus acionistas privados (aumento do preço da gasolina e uma política de maiores lucros e distribuição de dividendos) e desse mais espaço para as empresas petrolíferas internacionais na exploração da plataforma marítima (pré-sal). A ascensão eleitoral inesperada da oposição do PSDB (candidatura de Aécio), na última fase da campanha, respondeu a essa tendência capitalista frente à crise brasileira. A oposição tucana está contra o regime de partilha na exploração do petróleo e contra a legislação que obriga a presença da estatal em todos os poços em exploração, na intenção de abrir mais a exploração ao capital estrangeiro. A redução dos investimentos da petroleira liberaria também mais capital para a distribuição de dividendos aos acionistas privados externos da Petrobrás, nucleados basicamente nos fundos de pensão norte-americanos e no fundo de investimentos Black Rock.

Nessas condições, os projetados vinte anos de governo petista, que alguns sociólogos chegaram a qualificar como “lulismo”, reedição “modernizada” e “democrática” dos vinte anos varguistas, ameaçaram afundar. O governo petista, diante disso, se pronunciou rapidamente em favor de atender as reivindicações petroleiras do grande capital, e mandou às favas as promessas feitas logo depois da explosão social de junho-julho de 2013.

Eleição e petrolão

O resultado eleitoral de outubro, por isso, não expressou a rebelião popular de 2013. Ficaram nos primeiros lugares os agentes políticos principais das classes dominantes. Abriu-se, nessas condições, uma nova transição política e um período de crise. No primeiro turno, a proximidade dos votos das candidaturas da situação e a da oposição, 41,5% para Dilma (quase 47% em 2010) contra 33,6% do PSDB (32,6% há quatro anos), com Marina Silva indo de 19,3% para 21,3%, expressou uma derrota política do governo. Embora vencendo nos estados de Minas Gerais e de Bahia, ele foi severamente derrotado em São Paulo e Rio Grande do Sul, este último um marco da ascensão eleitoral do PT nas últimas décadas do século passado. Dilma Rousseff obteve a menor proporção de votos majoritários desde que Lula ganhou a presidência em 2003.

As eleições não traduziram a revolta popular de 2013 contra os aumentos das tarifas de transporte e o colapso dos serviços públicos essenciais. Os partidos e coligações se beneficiaram desproporcionalmente das contradições do movimento popular, em cujo seio opera a burocracia sindical, em especial a governista CUT; o oportunismo eleitoral de um setor da esquerda, que tem somente olhos para o carreirismo parlamentar; a debilidade dos setores classistas nos sindicatos e na juventude. Sob estas condições, as eleições funcionaram como um espelho distorcido da realidade. As sondagens eleitorais privadas e os meios de comunicação, mais uma vez, mostraram seu caráter manipulador, rebaixando e levantando as chances de cada candidato, de acordo com as circunstâncias e conveniências das classes dominantes. A volatilidade pré-eleitoral foi um forte sinal da enorme desconfiança do eleitorado diante das opções apresentadas.

Confirmaram assim sua hegemonia política as forças responsáveis pela recessão – especialmente as demissões e suspensões na indústria automobilística – a inflação e o aumento do desemprego industrial. Dilma Rousseff começou seu segundo mandato depois de vencer o 2º turno com 51,6% dos votos. Nas eleições presidenciais anteriores, Lula havia obtido 61,3% e 60,8% (2002 e 2006) e a própria Dilma, 56% (2010) dos votos, no segundo turno. No berço histórico do PT, o ABC paulista, Dilma foi derrotada. Depois da vitória eleitoral, sua primeira medida foi aumentar as taxas de juros, para “acalmar os mercados”, isto é, aumentar a dívida pública. O capital financeiro já tem uma taxa de lucro entre 40% e 50% maior que a média dos lucros do país. A segunda foi oferecer o ministério da Fazenda ao presidente do Bradesco, que rechaçou a oferta.

A hegemonia política reacionária se encontra em total contradição com a situação econômica do país. A dívida pública do Brasil supera 60% do PIB; pior ainda é a situação da dívida privada, que está perto de 100% do PIB. Em que pesem os superávits primários que totalizaram, entre 2002 e 2013 e em valores correntes, R$ 1,082 trilhão, a dívida interna pulou para quase três trilhões de reais (US$ 1,2 trilhão). Nesse quadro, a entrada de capital especulativo para aproveitar a diferença das taxas de juros brasileiras com as dos mercados internacionais tem sido extraordinária nos últimos anos, mas agora enfrenta uma reversão de tendência. A fuga de capitais já resultou em uma desvalorização do real muito significativa, da ordem de 30%.

O medo da fuga de capitais exerce uma enorme pressão sobre a taxa de juros no Brasil, que por sua vez tem um impacto negativo sobre o financiamento da indústria e sobre o crédito ao consumo, que se encontra em níveis muito altos. A propalada “ascensão social para a classe média” é uma consequência do endividamento sem precedentes das famílias de todas as classes sociais. O Brasil pós-eleitoral será e já é, portanto, o do ajuste mais ajustado e o da acentuação do conflito social. A filiação petista da presidente esconde o verdadeiro caráter do seu governo, que é, em primeiro lugar, uma aliança do PT com o PMDB, o partido eleitoralmente mais importante do país, criado sob a ditadura militar, e, por outro lado, com a direita evangélica, o que impõe à coalizão oficial uma agenda clerical e confessional. Os votos obtidos pela situação foram expressão dessa coalizão. O chamado “governo do PT” é um eufemismo, que ajuda a ornamentar essa coalizão com enfeites progressistas. Os acontecimentos mais marcantes de corrupção durante a administração petista estão relacionados com a necessidade de manter uma frente que possibilite uma maioria parlamentar.

O escândalo de corrupção da maior empresa do país, a Petrobrás, a chamada Operação Lava Jato, adquiriu dimensões imprevistas. O “mensalão” havia sido definido como “o maior” e “o último” dos escândalos de corrupção; o da Petrobrás lhe tirou, com folga, ambos os títulos. O esquema de propinas multimilionárias para a concessão de contratos públicos envolve as nove maiores empresas construtoras do país (Camargo Correa, Engevix, Galvão, Mendes Júnior, IESA, OAS, Odebrecht, Queiroz Galvão e UTC) que já têm vários diretores presos. Os beneficiários, os diretores da empresa estatal, desviavam as propinas para as contas dos partidos da coalizão de governo (PT, PMDB, PP, e algum outro da “base aliada”) e, claro, até suas próprias contas. Não é necessário dizer que as propinas eram repassadas pelas empreiteras às contas (superfaturadas) das obras contratadas, configurando um esquema conjunto de saque multimilionário dos cofres públicos.

O banco Morgan Stanley calculou que as perdas da petrolífera devido ao esquema seriam de R$ 21 bilhões (pouco menos de US$ 10 bilhões). As empresas envolvidas no esquema corrupto demitiram mais de 12 mil trabalhadores em menos de dois meses, sem indenização, e deixando inconclusas enormes obras em andamento (Comperj, no Rio de Janeiro; Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco). Um dos funcionários da Petrobras comprometidos, o aposentado Pedro Barusco, ex Diretor de Serviços (um cargo de segundo ou terceiro escalão), apresentou-se espontaneamente à polícia, comprometendo-se a devolver, de seu bolso, US$ 100 milhões, R$ 250 milhões (mas não os juros, lucros, produzidos por esse dinheiro nos últimos doze anos). Se esse foi o lucro de um “coadjuvante”… Este é o partido e o governo cuja vitória eleitoral os “progressistas” de toda a América Latina definiram como “continuidade do processo de mudança”.

A Petrobrás (cujo valor de mercado caiu de R$ 410 bilhões em 2011 para R$ 160 bilhões) é responsável por 10% da arrecadação de impostos do país: o escândalo terá impacto nas contas públicas. Em torno da Petrobras, além disso, gira a indústria da construção naval, a construção pesada e outros segmentos importantes da economia brasileira. As nove empresas (o “cartel”) faturaram, em 2013, R$ 33 bilhões com contratos públicos, financiaram candidatos a deputados com R$ 721 milhões, e candidatos a senadores com R$ 274 milhões (em 2010): 70% dos congressistas eleitos em 2014 receberam doações das grandes empresas. O “clube”, ao que parece, tinha dezesseis sócios fixos, e seis empresas “ocasionais”.

O juiz envolvido na causa declarou que o “cartel” operava desde “pelo menos” há quinze anos, quando o governo (e a Petrobras) estava nas mãos do PSDB. O “propinoduto” é um “modelo (histórico) de negócios”. O intermediário do esquema (Alberto Youssef) já havia estado preso em 2003 (e outras vezes) por crimes semelhantes, e está metido em outros escândalos menores que beneficiaram o PSDB. O papel do “doleiro”, neste e outros escândalos (como os de Marcos Valério), é enviar dinheiro para ser aplicado no exterior sem pagar impostos; entrar com milhões de dólares para pagar as propinas, que não saem dos caixas oficiais das empresas, mas de suas offshore, utilizadas para fraudar o fisco e dar segurança aos recursos ilícitos; driblar o sistema monetário nacional, que controla a compra e venda de moedas estrangeiras, criando um mercado negro de compra e venda de dólares e euros.

Nesse contexto de crise, os resultados das recentes eleições presidenciais merecem uma segunda leitura: a de que consagraram a um candidato da oposição (Aécio Neves), com 49% dos votos, como alternativa “legítima” em caso de crise institucional e de eleições antecipadas. Isto tem seu correlato nos outros escalões governamentais que foram submetidos ao escrutínio eleitoral. Os cinco estados comandados doravante pelos tucanos tiveram, em 2013, uma arrecadação de R$ 545 bilhões; os cinco estados do PT, só R$ 114 bilhões; os sete estados do PMDB (o “aliado” vira casaca por excelência do PT), R$ 288 bilhões. O PT elegeu sua menor bancada de deputados federais (70) desde 2002 (quando elegeu 91 deputados). Nas assembleias estaduais, enquanto o PMDB praticamente manteve seus eleitos em relação a 2010 (142, contra 149 naquele ano), o PT caiu de 148 para 108 eleitos. O PT pede fôlego, enquanto crescem siglas neonatas absolutamente manipuláveis pela burguesia (que as financia 100%).

Petróleo e crise

Na primeira votação parlamentar depois da reeleição de Dilma, a proposta do governo de submeter as “decisões governamentais de interesse social” à opinião de conselhos populares, a presidente reeleita sofreu uma derrota acachapante, com base na oposição conjunta PMDB-PSDB. Não há porque duvidar que essa aliança podre será repetida na votação acerca do debate da reforma política, para a qual o governo propõe um plebiscito (um meio antidemocrático) e o PMDB uma votação parlamentar seguida de um referendo (um meio mais antidemocrático ainda).

A negativa do presidente do Bradesco em assumir a Fazenda, por outro lado, não foi um caso isolado: o PMDB, o principal partido da base aliada do governo, propôs para presidente da Câmara seu deputado Eduardo Cunha, que apoiou abertamente o opositor Aécio Neves no segundo turno. Tarso Genro interpretou essa proposta como primeiro passo em direção da ruptura da aliança governamental. Desenvolve-se assim uma crise política que marca, logo de cara, o novo mandato presidencial.

Só com muita ingenuidade seria possível afirmar, como foi feito, que “a Operação Lava Jato encerra definitivamente o ciclo de impunidade do modelo político em vigor”. A “esquerda”, porém, denunciou um golpe judiciário em andamento, sem ousar, como sempre, dar nome aos bois. Saudou, ao mesmo tempo, a “corajosa” decisão da Presidente em ir fundo nas investigações (mas não era um golpe?). Na sua vertente “intelectual” e sabidinha, afirma que a corrupção faz parte dos mecanismos do Estado capitalista, desculpando objetivamente os corruptos (petistas ou não); afinal, os culpados não são eles, mas o Estado (quem é que resiste a uma boa mamata? Afinal, “ninguém é de ferro…”).

O papel da esquerda (do PT ou de fora dele, que se situa nessa seara argumentativa) é o de ocultar, até com argumentos “marxistas” (o tal do Estado que corrompe até os santos), o papel da corrupção como elemento central da política de aliança estratégica do PT com a burguesia, e até de integração social da burocracia petista e/ou cutista nas fileiras da própria burguesia. A argumentação de que a denúncia da corrupção favorece à direita (Veja, Globo e outros) e ao imperialismo (feita inclusive por gente que, noutros fóruns, declara que o conceito de imperialismo carece de atualidade teórica) retrata uma esquerda que já perdeu até a noção mais elementar do que algum dia justificou sua existência. E, em alguns casos, que encobre as mamatas grandes para preservar suas próprias mamatinhas…

O escândalo do “petrolão” tem um pano de fundo potencialmente catastrófico. Ainda que se afirme que a queda dos preços internacionais do petróleo seria a grande oportunidade para uma reativação da economia mundial, na verdade o que se anuncia é um período catastrófico para os países que sobrevivem à crise graças ao elevado lucro da extração mineral em geral. O barril de petróleo havia subido até 150 dólares – com uma recaída muito forte em 2009, que levou até uma cotação média de 100 dólares antes da queda para 75-55 dólares. O declínio dos preços foi superior, em alguns casos, a 25%. A mudança nos preços internacionais repercute pouco nos preços internos, sendo inócua para reativar o consumo final. A maior parte dos governos do mundo precisa dos impostos aos combustíveis para fazer frente ao pagamento da dívida pública e ao resgate dos bancos.

Enquanto o preço atual continua elevado, seu impacto negativo sobre a taxa de lucro das companhias petroleiras é muito forte, devido ao aumento dos custos que acompanhou previamente a elevação dos preços, pela distribuição da renda entre todos os setores que intervêm na produção, pela incorporação de jazidas que exigem processos mais caros, ou pelo incremento dos investimentos. A queda mundial do preço do petróleo replica a de todas as matérias primas, dos minerais e dos alimentos. Esta guinada modifica o curso da crise econômica mundial porque bate em cheio na periferia, no mesmo momento em que a crise se faz mais aguda na Europa e no Japão.

A queda do preço internacional do petróleo foi atribuída à queda da demanda da China e Europa, ao forte aumento da produção de combustíveis não convencionais nos EUA, e até a uma recuperação da produção na Líbia e no Iraque. A crise de superprodução na China, motivadora da queda, é decisiva, porque o país é um fator fundamental na expansão do mercado mundial. A China se encontra, além disso, às vésperas de uma explosão financeira. O elevadíssimo lucro do setor petroleiro havia aberto espaço para a produção custosa de gás e petróleo não convencionais nos EUA. No mercado norte-americano, agora, o preço do gás caiu para o limite da rentabilidade de sua exploração. A diminuição do preço da gasolina – e o do gás para a indústria e a calefação – é anulada pelo fechamento de jazidas, cuja produtividade é declinante. O boom dos combustíveis nos EUA foi impulsionado pelas baixíssimas taxas de juros, que permitiram financiar investimentos que com taxas de juros maiores seriam proibitivas.

Os elos fracos da crise petroleira internacional são Brasil, Rússia e Venezuela. Os custos da Petrobrás e da PDVSA superam os preços internacionais atuais do petróleo; nestes níveis, ambas as empresas seriam inviáveis. O problema é que, além disso, possuem dívidas gigantescas e são fontes de financiamento de Estados com dívidas ainda maiores. As ações da Petrobrás cotizam em menos da metade de seu pico; o país foi advertido da catástrofe em andamento com antecedência, quando foi à falência o aventureiro capitalista de Lula-Dilma, o inefável Eike Batista, o vendedor de vento que, segundo The Economist, foi “o homem que mais dinheiro ganhou com o power point depois de Bill Gates”.

A crise petroleira mundial se projeta na tela do declínio acentuado da economia nacional, acrescentando a ele um componente explosivo. O resultado fiscal primário acumulado de 2014 (R$ 10 bilhões) foi o pior desde 1997. O rombo das contas públicas (déficit público) atingiu 5% do PIB em 2014, o maior nível desde 2003. O déficit comercial e em conta corrente são os piores dos doze anos de “governo popular”. O déficit das contas externas alcançou 3,7% do PIB, 83,56 bilhões de dólares, um nível que não era alcançado desde 2001-2002 (quando da crise da Argentina) que, naquele momento, derrubou o governo de FHC.

Virada política

Setores graúdos do grande capital começaram por isso a propor uma mudança de eixo econômico externo. Luiz Alfredo Furlan, representante do agronegócio (e ex-ministro de Lula) propôs abertamente a saída do Brasil do Mercosul e a assinatura de acordos bilaterais com os EUA e a UE, o que também propõe Celso Lafer, ideólogo “internacional” do PSDB. Vai se formando um consenso. O PT busca adaptar-se a ele, anunciando medidas de ajuste violentas (um “sistema único do trabalho”, que libera as demissões e a flexibilização trabalhista). E manipula as contas fiscais (“contabilidade criativa”) para assegurar o pagamento da dívida externa, que está comprometido, em especial devido à dívida privada.

A virada à direita do governo Dilma tem essa base. A defesa do governo (e de sua vitória eleitoral) feita pela “esquerda”, com base no sucesso dos programas sociais “focados”, se revela a folha de parreira de sua própria miséria política. Uma pesquisa realizada pela UnB-Ipea, com base no cruzamento de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e das declarações de Imposto de Renda de Pessoas Físicas, demonstrou que a “desigualdade social” no Brasil, ao contrário do que foi amplamente alardeado, não diminuiu nos últimos anos. Os 50% mais pobres da população detêm apenas 10% da renda, e se forem considerados os 90% mais pobres, eles são detentores de aproximadamente 40% da renda.

Isto significa que os 10% “mais ricos” da população detém 60% dos ingressos, e se avançarmos até o topo, verifica-se que 0,5% da população detêm 20% da renda nacional. Contrariando toda a propaganda dos governos petistas, aceita tanto pela “oposição de direita” como pela “esquerda”, a desigualdade social se manteve estável durante a era Lula-Dilma, apresentando ligeira tendência a aumentar. Sem falar em que basta olhar ao redor para constatar as péssimas condições de vida da imensa maioria da população brasileira, que nas últimas décadas não avançou, pelo contrário, em matéria de saneamento básico, saúde ou educação, uma deterioração que foi o detonante das jornadas de junho de 2013.

Mas, isto é decisivo, a virada tem lugar em condições de crise política. Na véspera da posse do novo governo, a 1º de janeiro, mais de um terço do gabinete (15 de 39 ministros) não tinha sido ainda nomeada, e era disputada a pauladas pela “base aliada” (a disputa continua, em que pesem as nomeações). A 31 de dezembro, “Dilma II” era ainda um governo sem governo, sem gabinete. Dilma só conseguira tomar a providência básica de dar garantias ao grande capital mediante as nomeações nas pastas de Fazenda e Planejamento (Levy – Barbosa).

O anúncio da equipe econômica do novo governo recebeu as boas vindas do grande capital. Joaquim Levy já foi apelidado de “mãos de tesoura” pela sua febre ajustadora. Entre 2010 e 2014 foi presidente do Bradesco Asset Management, gestora de ativos do Bradesco, que administra mais de 130 bilhões de dólares. Na Universidade de Chicago foi discípulo do time de Milton Friedman, o velho chefão dos “Chicago Boys” e pai declarado do neoliberalismo mundial. Como responsável político no Fundo Monetário Internacional (entre 1992 e 1999), Levy foi advogado de programas de austeridade nos mais diversos países. Durante o governo FHC, Levy atuou como estrategista econômico, envolvido na privatização de empresas públicas e na liberalização do sistema financeiro, que facilitou a fuga 15 bilhões de dólares anuais. Levy é um membro eminente da oligarquia financeira do Brasil.

Em outra pasta estratégica, Kátia Abreu, no ministério da Agricultura, “miss moto serra”, sustenta que o latifúndio não existe no Brasil. Foi dirigente da Confederação Nacional de Agricultura e, desde Tocantins, é agente do lobby da soja. Kátia foi a coordenadora da repressão sangrenta dos últimos anos aos sem terra em luta, aos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, etc., e já anunciou que vem mais por ai. Para Indústria e Comércio foi nomeado Armando Monteiro, que apoiou Aécio Neves, é ex presidente da CNI (Confederação Nacional da Indústria). O índice Bovespa, exultante, saudou o gabinete de Dilma com uma elevação de 5%; o novo governo recebeu a calorosa aprovação do Financial Times, doThe Economist, de O Estado de S. Paulo (“A dupla Levy-Barbosa na Fazenda-Planejamento mostra que Dilma enfim cedeu às circunstancias”, comentou o jornal dos Mesquita) e até da Veja (“caiu a ficha”, celebrou o semanário terrorista dos Civita).

Economia de choque

Os gastos com juros da dívida pública já se aproximam de R$ 300 bilhões. Com base nisso, depois de um déficit de 0,6% em 2014, Levy prometeu terminar 2015 com um superávit fiscal primário de 1,2% do PIB (R$ 66 bilhões), tendo o ajuste fiscal como chave mestra, garantindo o pagamento da dívida pública e da dívida externa (esta com compromissos de US$ 102 bilhões em 2015, 62% maiores que os de 2014), e também a “confiança” do capital externo, com um forte ajuste social: recortar os planos sociais, atacar as aposentadorias e pensões, eliminar direitos trabalhistas e rebaixar os salários reais. O primeiro pacote de aumento de taxas, já aprovado, prevê elevar a arrecadação em R$ 20,6 bilhões (7% do montante pago anualmente em juros) e comporta aumento dos impostos ao consumo e ao crédito (o IOF às operações de crédito dobrou, passando de 1,5% para 3% anual, mantendo-se o adicional de 0,38% por operação). Os aumentos das taxas aos setores de combustíveis, cosméticos e importados serão imediatamente repassados, também, ao consumidor, comportando de imediato um aumento de 8-9% sobre a gasolina. O PIS e Cofins dos importados passou de 9,25% para 11,75%.

Em menos de um mês, o ajuste fiscal já chegou quase a R$ 46 bilhões, entre cortes de gastos e aumento de impostos. O “realismo tarifário” já anunciou um aumento de 30% no preço da energia (luz), elevando o IPCA (inflação). No entanto, a política monetária promete ser anti-inflacionista mediante o aumento da taxa de juros, compensando a situação complicada da indústria (que perfaz hoje 15% do PIB, contra 23% em 1978) mediante a desvalorização do real (para favorecer as exportações), uma política que os trabalhadores pagarão com a elevação dos preços internos (carestia) e aprofundamento da recessão econômica (desemprego).

A prioridade anunciada por Levy é a de cortar e retalhar investimentos públicos, pensões, pagamentos por desemprego e salários do setor público. Mas ele não inventou essa política, apenas lhe da uma continuidade “radical”. No Legislativo, estão desde 2014 na agenda projetos de criação de fundações públicas de direito privado (desmonte do setor público), de limitação do investimento público com pessoal e de demissão por “insuficiência de desempenho”. Sob o pretexto de “estabilizar a economia” (para os grupos financeiros) Levy desestabiliza a economia de dezenas de milhões de trabalhadores. Levy eventualmente mexeria nos impostos aos assalariados, as taxas e alíquotas atualmente existentes. Nos últimos anos, o descompasso entre a tabela do IR e a alta da inflação pôs salários cada vez menores na base da arrecadação fiscal: muitos assalariados conquistaram reajustes salariais que implicaram a queda de seu salário líquido, ao entrarem em faixa superior da tabela. Dilma, no entanto, vetou a pífia correção da tabela votada no Congresso (6,5% do imposto pago).

Está colocada, objetivamente, uma luta pela eliminação do Imposto de Renda sobre os salários, até determinado montante. No Brasil, por outro lado, mais da metade da arrecadação fiscal provém da tributação indireta, chamada de tributação sobre o consumo. A maior alíquota do Imposto de Renda da Pessoa Física (27,5%) é alta em relação aos rendimentos recebidos pelos assalariados e pela classe média.

Na outra ponta, fatia significativa das rendas de sócios e acionistas beneficiários de lucros e dividendos das empresas não se submete à tabela de incidência do Imposto de Renda, pois a partir de 1996 esses ganhos tornaram-se “rendimentos isentos e não tributáveis”. Também não se submetem à tabela do Imposto de Renda os beneficiários de aplicações financeiras, para as quais estão previstas diferentes alíquotas, sempre inferiores às aplicadas aos assalariados, chegando-se em alguns casos até a isenção. Atualmente, a tributação sobre a renda salarial representa cerca de um terço da arrecadação (em 2000 respondia por 25% do total). A tributação sobre o patrimônio não ultrapassa os 4%, o que é uma levedura para a concentração de riqueza. Os fluxos de capital desregulado e livre de tributação aprofundam a regressividade fiscal do Brasil. As pequenas alterações na composição da carga de tributos realizadas por Lula-Dilma não foram nem de perto suficientes para uma reversão desse quadro. Taxar progressivamente as grandes fortunas e os rendimentos financeiros (excluindo da taxação os pequenos poupadores), eliminar as taxas aos salários: eis um objetivo de luta para o conjunto dos trabalhadores.

Sob o pretexto de combate à corrupção, o seguro-desemprego, a pensão por morte, e outros benefícios sociais básicos, terão sua concessão tornada muito mais difícil. O novo ministro do Trabalho e Emprego, Manoel Dias, atribuiu as medidas à “segurança fiscal do governo”. O alto índice de rotatividade existente na economia brasileira torna particularmente podre a ampliação do prazo de carência do seguro-desemprego, de seis meses para 18 meses. Trabalhadores demitidos com menos de um ano e meio de registro na carteira deixarão de ter direito ao benefício, em nome da tal “segurança”. Todas estas medidas permitiriam ao governo economizar só migalhas, em termos de orçamento, ao passo que transformarão em verdadeiro inferno a vida cotidiana de centenas de milhares de famílias que dependem desses modestos benefícios para sobreviverem.

A desoneração da folha de pagamentos, praticada em especial desde 2008, não reverteu a política de demissões, ao contrário, acentuou-a. Um cruzamento de dados recente (Valor Econômico) demonstrou que R$ 5,5 bilhões (23,1% de um montante impositivo de R$ 23,8 bilhões sobre a indústria) deixaram de ser pagos por setores empresariais que demitiram mais do que contrataram desde 2012. E Levy propõe, não só manter as desonerações, mas também aprofundar as facilidades para demitir. A capacidade instalada da indústria está em seu pior nível de utilização média desde 2009 (82%), sendo que as siderúrgicas, com 68,6% de uso da sua capacidade produtiva, são as que mais puxam o índice para baixo. O “desenvolvido” estado de São Paulo (sob o comando tucano) foi o que mais contribuiu (15%) com o aumento da miséria extrema em 2013-2014. Os trabalhadores estão pagando pela crise.

O jurista (e juiz do trabalho) Jorge Luiz Souto Maior lembrou que “em 2008, sob o pretexto da crise mundial, o Presidente da Vale do Rio Doce (Vale S/A) encabeçou um movimento de reivindicação pública da flexibilização das leis trabalhistas do país, como forma de combater os efeitos da crise financeira. Sua manifestação, acompanhada do ato de demitir 1.300 empregados, deflagrou um movimento nacional, claramente organizado, sem apego a reais situações de crise, no qual várias grandes empresas começaram a anunciar dispensas coletivas de trabalhadores, para fins de criarem um clima de pânico e, em seguida, pressionar sindicatos a concordarem com a redução de direitos trabalhistas, visando alcançar a eternamente pretendida diminuição do custo do trabalho, que também serve às empresas no pleito, junto ao Estado, de concessão de benefícios fiscais”.

Ele mesmo pôs o dedo na ferida ao constatar que “dada a natureza de sua base política (o governo Dilma) tenta arrastar consigo parte relevante da representação da classe trabalhadora. Lembre-se que recentemente CUT, Força Sindical, UGT, CTB e Nova Central, antes mesmo de qualquer reivindicação do setor econômico e em vez de se prepararem para resistir, elaborando uma compreensão crítica de um modelo de sociedade que impõe, historicamente, perdas e sacrifícios à classe trabalhadora e que favorece, cada vez mais, à concentração da renda nas mãos de muito poucos, adiantaram-se e levaram proposta de atuação estatal que permita legitimar a redução salarial dos trabalhadores em até 30%, com redução proporcional da jornada de trabalho, visando a preservação dos empregos no caso de crise econômica estrutural, que vier a ser atestada pelo Ministério do Trabalho”. É através das burocracias sindicais que se tenta impor as políticas contra a classe operária e os assalariados em geral.

Esquerda e trabalhadores

Como se encontra a esquerda nesta conjuntura? A “esquerda do PT” se limita a reivindicar “mais radicalismo” (como se houvesse algum) de Dilma-Lula, apoiando suas “medidas progressistas” sem criticar seu rumo burguês pró-capital financeiro, e sem se postular como alternativa política real à tendência dirigente do partido. Reivindica mais diálogo do governo com os “movimentos sociais”, para contrabalançar o peso da direita burguesa no governo, mas se recusa a tirar qualquer conclusão política da inclusão governamental dessa direita (sob o pretexto de que o governo está em disputa com os outros partidos, como se a escolha de Levy et caterva não fosse opção do próprio PT, isto é, de sua direção). A “Articulação de Esquerda” é a encarregada de dar visibilidade internacional a essa política, pois exerce a responsabilidade dirigente do Fórum de São Paulo.

O PSOL, depois de obter 1,6 milhão de votos no 1º turno (o dobro do obtido em 2010), e de fazer crescer sua bancada federal de três para cinco deputados, rifou a votação obtida com o apoio a Dilma no 2º turno. Sua ex-candidata presidencial declarou “que simpatiza com experimentos políticos inovadores, como o Podemos (da Espanha)”. Ou seja, está na hora da “inovação”, não da resistência e organização classista independente.

O PSTU, que fez uma votação quase marginal (menos de 100 mil votos) enunciou, frente à crise, a ideia seguinte: “Somente a luta pode garantir mudanças e evitar retrocessos”. Ou seja, que houve “avanços” e que se deve seguir mudando. Também os movimentos e, sobretudo, as ONG’s e fundações que recebem fundos do Estado e das corporações, se limitam a criticar o governo por temas pontuais. Quando a crise se torna pesada, denunciam “o golpismo” e apoiam o governo: assim fizeram em junho de 2013 – chegando a denunciar as posições de oposição classista como “golpistas”. O MTST, de grande atuação nos últimos anos (e que está se articulando nacionalmente) esclareceu “que não participa de qualquer frente de apoio ao governo. Estamos sim participando da articulação junto com a CUT, PSOL, MST, UNE e outras organizações da esquerda no sentido de construir uma frente de lutas com a plataforma de Reformas Populares para o país”, que deverão ser realizadas, claro, pelo governo. O abstencionismo político conclui numa política governista.

As eleições brasileiras mostram o fim de um ciclo e que a burguesia não pode continuar governando vinha fazendo anteriormente. Isto configura uma transição política e, por conseguinte, uma crise de conjunto. É preciso agora que os trabalhadores, através de lutas parciais crescentes, desenvolvam sua própria alternativa política. Uma nova etapa histórica se abriu no Brasil, devido à crise econômica, à crise política e à nova etapa da luta de classes: as greves, que entre 2003 e 2005 oscilaram em torno do número de 300 anuais (compreendendo entre 15 e 20 mil horas paradas por ano) pularam em 2012 para 873 anuais, com quase 87 mil horas paradas (segundo medições do Dieese). Em 2014, em São Paulo, a greve de 120 dias das universidades estaduais paulistas, com sistemáticas assembleias e mobilizações de rua, junto com outras greves do funcionalismo público do país, foi um símbolo da nova etapa política que se abriu.

No raiar do novo ano, os trabalhadores da Volkswagen do ABC paulista entraram em greve por tempo indeterminado pela readmissão de 800 companheiros dispensados em 6 de janeiro. A empresa descumpriu acordo firmado em 2012, que previa a estabilidade dos funcionários até 2016. Outros 244 trabalhadores foram demitidos na Mercedes Benz. A 12 de janeiro, os metalúrgicos do ABC realizaram uma grande manifestação: mais de 20 mil pessoas ocuparam as faixas da Rodovia Anchieta, com trabalhadores da Volks, Mercedes, Karmann Ghia e vários outros setores das principais fábricas da região. Os metalúrgicos da Volks mantiveram o movimento até fazer a patronal recuar nas demissões (o sindicato admitiu, no entanto, um PDV, plano de demissão voluntária). O caminho da vitória foi, no entanto, aberto: o da luta e da mobilização independente.

O MPL (Movimento pelo Passe Livre), grande canal do movimento juvenil das periferias urbanas, diante do novo aumento das tarifas de ônibus (R$ 3,50, mais caro do que na Europa, com um serviço infinitamente inferior) já convocou a três manifestações em São Paulo e em outras capitais do país. Como aconteceu em 2013, as manifestações começaram com poucos participantes, mas já pularam para passeatas de 20 mil pessoas. E, também como em 2013, a violenta repressão policial (cassetetes à vontade, detenções, bombas de efeito moral, ação sistemática da P2) só fez crescer o número de manifestantes. A juventude que luta também está abrindo seu caminho.

Perspectivas

Como abrir uma alternativa política independente, classista? Este deveria ser o debate central da esquerda (mas não o é, por enquanto). Entre 4 e 7 de junho próximos será realizado em Sumaré (SP) o 2º Congresso Nacional da CSP-Conlutas, que experimentou um crescimento bastante importante no último ano. Ele será seguido de uma reunião internacional do “sindicalismo alternativo”, dando sequência a um evento realizado em março de 2013 em Paris. O Congresso da CSP-Conlutas pode ser um marco de importância no debate político da vanguarda operária e lutadora. Para isso é necessário, além de normas democráticas, uma clara delimitação de posições políticas classistas.

A “acumulação de forças” sindicais ou sociais não tem futuro sem um horizonte (alternativa) político, que deveria ser trabalhado cotidianamente, através da agitação, propaganda e organização. Os “movimentos sociais” realmente de luta não podem permanecer politicamente neutros ou indefinidos. É necessário também, através de uma política de frente única, meter uma cunha entre as organizações da classe operária (que se encontram muito majoritariamente na CUT e na Força Sindical, ou seja, carecem de independência política), e a burguesia, seu Estado e seu governo. Conclamá-las a romper com sua política governista, através da unidade na ação e de um plano de lutas unificado em defesa do salário e das conquistas sociais e trabalhistas. E projetar essa política de luta através de uma alternativa classista independente, na perspectiva de um governo dos trabalhadores sem representantes do capital e dos patrões.

***

Osvaldo Coggiola é professor titular de história contemporânea da Universidade de São Paulo. Nascido na Argentina, é autor, entre outros livros, de Introdução à teoria econômica marxista e responsável pela organização e introdução da edição da Boitempo do Manifesto comunista, com textos suplementares de Antonio Labriola, Jean Jaurès, Leon Trotsky, Harold Laski, Lucien Martin e James Petras. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

5 comentários em O reajuste do ajuste brasileiro

  1. Lamentável o número de vezes que esse autor conseguiu reproduzir críticas à direita de Dilma, deprimente ver alguém que se pretende de esquerda se juntar a setores reacionários sem nem corar.

    Podemos e devemos criticar esse atual governo, mas não se juntando aos oligarcas.

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  2. A gente, por força do ofício, precisa ler até o final.
    Mas, é dolorido. Concordo um pouco com o comentário de Rennan Martins.
    Ainda fala em democracia dentro do CSP-Conlutas.

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  3. Frederico Garcia Brito // 25/01/2015 às 3:52 pm // Responder

    concordo que a CSP-Conlutas não é futuro, agora dizer que o autor que “se pretende de esquerda” se junta “a setores reacionários sem nem corar” é de uma alienação pró-LuloDilmismo de embrulhar o estômago!

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    • O que eu quis dizer é que ele reproduz críticas que a direita profere, não que seja aliado dela, realmente ficou um pouco obscuro.

      O uso de termos como “petrolão”, o moralismo com que se refere a corrupção, como se ela não fosse inerente ao capitalismo mas ao governo, e a parte sobre o endividamento familiar são sim críticas típicas do PSDB e Democratas.

      Dá uma lida em algumas colunas da imprensa tradicional que verás artigos que seguem a mesma linha.

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  4. Raphael Chaves // 02/02/2015 às 3:31 am // Responder

    Pô, Rennan… quando é que criticar a corrupção virou apanágio da direita? O PT na oposição tinha esse mesmo discurso moralista. Só que perdeu o direito a esse discurso por razões autoevidentes.
    E daí que a imprensa tradicional faz essas críticas? Vai me dizer que não há nenhum fundamento ali? É tudo parte de uma grande conspiração golpista? Desculpe-me, mas isso é maniqueísmo barato.
    Uma outra pergunta: o governo não tem qualquer responsabilidade sobre os escândalos de corrupção em que se envolveu, então? É só colocar na conta do capitalismo que fica tudo bem?
    De minha parte, acho a análise do Osvaldo Coggiola uma bela leitura de conjuntura.

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  1. zapdojulio

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