Hereges marxistas: similaridades e permanências

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Por Carlos Eduardo Rebuá.*

Em O Nome da Rosa (1980), best-seller que virou filme em 1986, Umberto Eco assim aborda a questão da heresia: “muitas vezes são os inquisidores a criar os heréticos”. No famoso dicionário Houaiss, dentre as várias acepções de heresia (teoria, ideia, prática, etc. que nega ou contraria a doutrina estabelecida [por um grupo], contrassenso, opinião absurda, disparate, despautério, tolice…), temos que um sinônimo/variante para o termo é heterodoxia. Na Idade Média, a Inquisição Católica identificava os hereges como aqueles que “escolhiam”, desviando-se dos desígnios divinos e dos dogmas humanos e, logo, praticando o “mal”.

Para o historiador francês Marc Bloch, os estudos de comparação histórica, para serem frutíferos, devem estabelecer um duplo olhar sobre o objeto, estando atentos às similaridades e às dessemelhanças. Confesso que as similaridades entre autores sempre me seduziram bastante, num esforço livre de comparação, realizado entre uma leitura e outra de textos literários ou não literários. Nestas elocubrações, dois autores sempre me ‘incomodaram’, por perceber entre eles muitos pontos de contato: Gramsci e Benjamin.

Obviamente, esta comparação não é inédita. Os saudosos marxistas Daniel Bensaïd e Giorgio Baratta, por exemplo, foram autores também ‘encantados’ pela tentativa de dialogar estes dois intelectuais, tão fundamentais para o pensamento filosófico e social do/no século passado. Pois bem! Num movimento também ‘livre’, mas materializado textualmente, começo por estabelecer uma síntese (difícil e não única!) do que podemos chamar de ‘vínculo Gramsci-Benjamin’: o caráter herético e, logo, heterodoxo, de seus escritos no contexto de sua produção e ainda hoje. O marxismo, que surge no XIX e divide profundamente o século seguinte (entre os pró-Marx e os contra Marx!), ao longo de seu desenvolvimento como ideologia e práxis, também produziu, como a ideologia cristã, seus ‘inquisidores’ e seus ‘hereges’. E aqui cabe a pergunta, recuperando a frase de Eco: até que ponto o caráter herético do pensamento gramsciano e benjaminiano foi construído por seus inquisidores e até que ponto por seus entusiastas, também hereges? A resposta é difícil e me parece que há um duplo movimento na caracterização destes dois pensadores, onde ser herege significa, ao mesmo tempo, uma ‘qualidade’ e um ‘defeito’, dependendo de quem faz a afirmação.

Penso que de saída, quatro aproximações são obrigatórias: (i) ambos foram ‘mortos’ pelo fascismo (aceito a crítica em relação ao suicídio de Benjamin, discordando das análises que o desqualificam como covarde!), (ii) jovens (46 e 48 anos: Gramsci e Benjamin, respectivamente) e deixando uma (iii) obra ‘fragmentária’ (sobretudo no caso de Gramsci), profundamente comprometida com a (iv) atualização dialético-crítica do marxismo, no intuito de forjar um (v) marxismo criativo-inventivo que rompesse com o mecanicismo e o dogmatismo. Só por estes aspectos, já nos é possível qualificar a obra do sardo e do alemão como herética, uma vez que refutam e enfrentam – como na definição do Houaiss – uma doutrina estabelecida e duramente imposta, qual seja o stalinismo, ‘monstrificação’ do materialismo histórico-dialético, que não pereceu com a morte do líder soviético em 1953.

A (vi) centralidade da cultura (com destaque para a abordagem crítica sobre sua mundialização-massificação-tecnificação) em seus escritos – com variações de intensidade e foco, por exemplo, em relação à arte e à religião – bem como a explícita (vii) preocupação com o presente, com o momento histórico no qual produziam seus escritos, aproximam estes dois ‘pecadores do marxismo’, que ousaram ser teóricos da luta e da política revolucionárias, sem dicotomizar revolução e subjetividade, práxis revolucionária e a perspectiva dos subalternos/dominados.                                                                                  

Nas obras de Gramsci e Benjamin, há a nítida (viii) centralidade do conceito de política em sentido amplo – como afirma Fabio Mascaro –, uma visão radical da política, protagonista da vida social e de seus embates. E se conferem à politica um lugar privilegiado é porque se constituíram como profundos historicistas, (ix) compreendendo a história como o espaço fundamental da luta de classes, como um campo sempre aberto de possibilidades, forjado a partir da experiência concreta dos indivíduos, ainda que experimentassem ideológica e materialmente, a força do fascismo e as derrotas do movimento comunista nos anos 1930.

Finalizando, gostaria de apontar duas semelhanças entre Gramsci e Benjamin que me parecem fundamentais. A primeira e a assombrosa dimensão “pressagiadora” de seus escritos, que anteciparam eventos paradigmáticos do século XX, ocorridos após sua morte, com destaque para as tragédias de Hiroshima/Nagasaki e Auschwitz (Benjamin) – como aponta Michael Löwy – e para os processos de “ocidentalização” das sociedades capitalistas periféricas ao núcleo orgânico do capital (Gramsci). A segunda corresponde à subestimação e, sobretudo, domesticação do potencial revolucionário destes dois marxistas impertinentes.

Obviamente, estes dois “movimentos” (subestimação/domesticação) não são gratuitos! Justamente pelo caráter heterodoxo de suas obras, Gramsci e Benjamin muitas vezes são “sequestrados” pelo pensamento liberal (por exemplo), interessados na “esterilização” do caráter revolucionário de seus escritos, que, ainda que abordando enfaticamente a cultura e suas manifestações, não retiram do horizonte a utopia da revolução proletária e o fim da barbárie capitalista.

Os hereges Gramsci e Benjamin “escolheram” trilhar caminhos outros, compreendendo o marxismo não como uma doutrina dogmática, mas como a mais profícua, refinada e revolucionária ideologia construída com e para os trabalhadores, tendo o assalto ao “altar” e aos “céus” como horizonte ético-político. Benditas heresias!

Referências

BARATTA, Giorgio. Cultura para todos. Disponível aquiAcesso em 18/08/2013.

ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.

LÖWY, Michael. Aviso de incêndio: uma leitura das teses ‘Sobre o conceito de história’. São Paulo: Boitempo, 2005.

MASCARO QUERIDO, Fabio. Quando a política passa à frente da História: Gramsci e Benjamin no pensamento de Daniel Bensaïd. Disponível aqui. Acesso em 18/08/2013.

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Carlos Eduardo Rebuá é Historiador, doutorando em Educacao pela UFF e professor da UNIGRANRIO.

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