Guia de leitura | O sentido da liberdade | ADC#24

O sentido da liberdade
Angela Davis

Guia de leitura / Armas da crítica #24

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Qual é o sentido da liberdade? Ao longo de décadas de trabalho, a filósofa Angela Davis se dedica a analisar a questão que dá título a este livro e a propor caminhos para extinguir todas as formas de opressão que negam aos sujeitos liberdade política, cultural e sexual.

Publicados pela primeira vez em português, os doze textos que compõem O sentido da liberdade e outros diálogos foram palestras realizadas por Angela Davis entre 1994 e 2009 e abordam a relação entre neoliberalismo, racismo, opressões de gênero e classe e o fenômeno da expansão da indústria da punição (ou complexo industrial-prisional) nos Estados Unidos. É a partir dessa inter-relação que a autora analisa fatos históricos da sociedade estadunidense, como a guerra no Iraque, o 11 de Setembro de 2001, a eleição de Barack Obama, o movimento pelos direitos civis e a importância da luta coletiva – em especial das comunidades negras, LGBTQIA+ e de mulheres – para repensar e ampliar o sentido da liberdade.

Além de um cartaz, um marcador e um adesivo, a caixa do mês ainda é acompanhada do livreto “Feminizando a raça e enegrecendo o gênero: Angela Davis e Lélia Gonzalez”, de Raquel Barreto, no qual são apresentados os pontos de convergência entre as trajetórias e produções intelectuais das autoras.

autor Angela Davis
tradução Heci Regina Candiani
orelha Zélia Amador de Deus
apresentação Robin D. G. Kelley
edição Thais Rimkus
capa Ronaldo Alves
diagramação Antonio Kehl
coordenação de produção Livia Campos
páginas 160

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Quem é Angela Davis?

Angela Davis é filósofa, professora emérita do departamento de estudos feministas da Universidade da Califórnia e ícone da luta pelos direitos civis. Integrou o Partido Comunista dos Estados Unidos, tendo sido candidata a vice-presidente da República em 1980 e 1984. Próxima ao grupo Panteras Negras, foi presa na década de 1970 e ficou mundialmente conhecida pela mobilização da campanha “Libertem Angela Davis”.

Autora de vários livros, sua obra é marcada por um pensamento que visa a romper com as assimetrias sociais. Pela Boitempo, publicou Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia (2020, com Naomi Klein), Uma autobiografia (2019), A liberdade é uma luta constante (2018), Mulheres, cultura e política (2017) e Mulheres, raça e classe (2016).

“Angela Davis é uma das maiores ativistas da luta negra pela liberdade. Seu compromisso com a emancipação do povo preto em todo o mundo nos inspira a batalhar por cidadania, direitos, afirmação das nossas identidades e reconhecimento da nossa verdadeira história.”

ERIKA HILTON

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Racismo e capitalismo

Em O sentidos da liberdade, Angela Davis expõe diversas formas de discriminação – racismo, classismo, sexismo, homofobia, transfobia, xenofobia – perpassando o encarceramento daqueles que temos chamado de “deserdados da sorte”. Nos doze capítulos compostos de palestras proferidas entre 1994 e 2009, Davis nos mostra que hoje o encarceramento substitui a escravidão em termos de privação da liberdade e, mais ainda, na forma como desumaniza os escolhidos “inimigos da nação”.

Davis é certeira em mostrar o racismo como um dos pilares do sistema capitalista, pois, à medida que este avança, aquele se metamorfoseia não apenas para mascarar sua presença, mas, sobretudo, para se fortalecer e agir de maneira eficaz sobre suas vítimas. O racismo se atualiza o tempo todo para garantir sua persistência.

Zélia Amador de Deus

Professora Emérita da Universidade Federal do Pará, militante do Movimento Negro. Doutora em Ciências Sociais, atriz e diretora de teatro, ex-Vice Reitora da UFPA e ex-Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadoras e Pesquisadores Negros.

“Angela Davis fala com todas as pessoas que se dispõem à luta. Ler sua obra é, de certa forma, dialogar com ela e refletir sobre os fundamentos deste mundo concreto e cruel que queremos e devemos transformar. Os desafios nos unem em diferentes tempos e lugares – as palavras de Davis fazem sentido aqui, em sua reivindicação de radicalidade no confronto ao racismo em todas as suas formas. Juntemo-nos a ela para que um dia, em algum tempo, a liberdade nos faça sentido.”

JUREMA WERNECK

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Uma concepção extensa e radical de liberdade

Qual é o sentido da liberdade? Toda a vida, a obra e o ativismo de Angela Davis têm sido dedicados a analisar essa pergunta fundamental e a abolir todas as formas de subjugação que têm recusado a liberdade às pessoas oprimidas. Ela se opõe à tradição liberal da filosofia política, tradição essa derivada de Hobbes e outros que compreendem a liberdade como o direito do indivíduo de fazer o que ele quiser, sem restrições nem impedimentos, desde que seja permitido pelo Estado. […]

A concepção de liberdade de Davis é muito mais extensa e radical: a liberdade coletiva; a liberdade de ganhar o sustento e viver uma vida saudável e plenamente realizada; a liberdade de não sofrer violência; a liberdade sexual; a justiça social; a abolição de todas as formas de cativeiro e encarceramento; a liberdade de não sofrer exploração; a liberdade de movimento; a liberdade como movimento, como um esforço coletivo pela verdadeira democracia.

Robin D. G. Kelley

 Professor de História Americana na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), autor de Africa Speaks, Freedom Dreams: The Black Radical Imagination, entre outros.

“Para Davis, a liberdade não é algo concedido pelo Estado na forma de lei, decreto ou norma; a liberdade é batalhada, é duramente disputada e transformadora, é um processo participativo que exige novas formas de pensar e de ser.”

ROBERT D. G. KELLEY

Raça, crime e punição

A expansão do sistema de justiça criminal e o surgimento de um complexo industrial-prisional são acompanhados de uma campanha ideológica para nos convencer, mais uma vez, no fim do século XX, de que a raça é um marcador de criminalidade. A figura do criminoso é o homem jovem negro. Homens jovens negros engendram medo. E a população negra não está imune a esse processo ideológico. Não é só a população branca – e outras populações não negras – que aprende a temer os homens negros. As pessoas negras também aprendem a temer a juventude negra.

Quando falamos sobre a representação do homem jovem negro como criminoso, não se trata de refutar o fato de que existem alguns homens jovens negros que cometem atos horríveis de violência. Mas isso não pode justificar a criminalização generalizada dos jovens negros. O racismo, a propósito, sempre se baseou na confusão entre indivíduo e grupo. O fato de que cada vez mais pessoas de minorias étnicas e raciais estão sendo mandadas para a prisão tem muito a ver com a expansão do sistema prisional e o desenvolvimento de novas tecnologias de repressão.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.31-32]


“Inúmeros paradoxos históricos podem ser descobertos na perpetuação da pena capital, mas nenhum é tão revelador quanto
o fato de que o encarceramento, como instituição, foi introduzido na era do avanço da democracia como alternativa, justamente, à punição corporal e capital.”

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.48]

Multiculturalismo radical

O multiculturalismo por si só não marca a derrota do racismo. A ideia de que a ascensão do multiculturalismo é a prova do declínio do racismo é uma daquelas suposições equivocadas que parecem capturar o sentido óbvio do multiculturalismo. No discurso público, algo que essa suposição não revela é quanto o terreno do racismo foi fundamentalmente reconfigurado. Hoje, as dimensões estruturais subterrâneas do racismo são tão influentes quanto sempre foram, embora a maioria das pessoas seja esperta o suficiente para evitar proferir declarações racistas em público – ainda que isso continue acontecendo.

Além do mais, esse novo terreno do racismo é agora imensamente influenciado pelas ideologias de terrorismo. Como vimos, o multiculturalismo convencional é perfeitamente compatível com a islamofobia, a tortura e a violência. Em contrapartida, um multiculturalismo forte, combinado com entendimentos acadêmicos e populares sobre o racismo dentro dos Estados Unidos e em termos transnacionais, leva em consideração até que ponto os preconceitos contra pessoas muçulmanas e árabes foram incorporados às novas estruturas repressivas e punitivas.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.77]


Outro mundo é possível, e, apesar da hegemonia de forças que promovem a desigualdade, a hierarquia, o individualismo possessivo e o desprezo pela humanidade, acredito que podemos trabalhar em conjunto para promover uma transformação social radical.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.83]

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A 13ª emenda

Hoje cedo em uma conversa com um grupo de estudantes, estávamos questionando o papel que a 13ª emenda desempenha na história dos direitos civis neste país. O que os autores da 13ª emenda queriam dizer e propor? Estavam falando sobre a escravização como propriedade humana? Era disso que falavam? Falavam de formas de punição, punição corporal, todas essas formas de punição associadas à escravização? Falavam sobre o fato de que a escravização é não cidadania? Sobre o que estavam falando? O que tentaram abolir? Meu povo continuou a ter o que todos chamamos de cidadania de segunda classe por muito tempo, não foi?

Então acho que não era a isso que se referiam. Ou, se a intenção estava ali, na verdade ela não foi transmitida. Se a escravização foi abolida em sua totalidade, por que levou mais cem anos para que a população negra do Sul conquistasse o direito ao voto? Posso lhes contar que quando me registrei para votar pela primeira vez – na verdade, tentei me registrar, porque sou do Sul – não obtive permissão porque não era culta o bastante. Não passei no teste aplicado em Birmingham, Alabama. Creio que meu argumento é que ainda convivemos com os vestígios da escravização, e essa é uma das explicações para o fracasso deste país em conceder direitos iguais a todas as pessoas que nele vivem.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.101]

“Por favor, engajem-se. Por favor, tentem fazer a diferença. Por favor, tentem mudar este país
e o mundo
.”

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.106]

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O sentido da liberdade

Creio que todos nós, independentemente da origem racial ou étnica, sentimos certo alívio por não precisarmos mais lidar com o racismo e o machismo associados ao sistema escravista. Mas tratamos a história da escravização da mesma forma que tratamos a colonização genocida dos povos indígenas na América do Norte: como se não fossem tão importantes ou, pior, como se nunca tivessem realmente acontecido. Pensamos nelas como uma espécie de pesadelo. E, como muitas vezes acontece com pesadelos, tentamos não pensar a respeito, exceto em termos abstratos, supondo que assim eles acabam. […]

A instituição da prisão nos diz que o pesadelo da escravização continua a nos assombrar. Se realmente aprendermos a reconhecer as formas de racismo e machismo que estão no cerne estrutural do sistema prisional, teremos de elaborar uma ideia muito diferente sobre a condição da democracia nos Estados Unidos, em particular no que diz respeito a suas vitórias sobre o racismo e o machismo.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.109]

“Apontar as pessoas que estão na prisão como inimigas é uma das maneiras de nos definirmos como livres – olhando para nossos opostos. Como imaginamos uma democracia que não se alimente desse racismo, que não se alimente da homofobia, que não se baseie nos direitos das corporações capitalistas de saquear os ambientes econômicos, sociais e físicos do mundo?.”

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.117]

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Justiça para a comunidade LGBTQIA+

Há uma ligação direta entre as lutas históricas pelos direitos civis da população de origem africana deste país e as lutas contemporâneas pelos direitos civis das comunidades LGBTQIA+. Se levarmos os direitos civis a sério, não podemos argumentar que o movimento pelos direitos civis acabou, que esta é a era pós-direitos civis ou a era pós-raça.

Inúmeras pessoas não podem exercer seus direitos civis e estão exiladas à margem da política. As comunidades LGBTQIA+ não gozam da proteção total dos direitos civis. As comunidades de imigrantes, especialmente imigrantes sem documentos, têm a proteção dos direitos civis negada. Milhões de pessoas prisioneiras e ex-prisioneiras têm seus direitos civis negados.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.125]

“Como sabemos que a mudança é possível? É possível porque, por mais horríveis que as coisas possam parecer hoje, vivemos em um mundo que foi moldado pela mudança.”

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.122]

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Feminismo e diálogos difíceis

Hoje examinaremos como as práticas intelectuais, políticas e institucionais feministas não podem ser adequadamente exercidas se as políticas de gênero forem conceituadas (aberta ou implicitamente) como acima ou além das políticas de raça, sexualidade, classe social, nação e deficiência. Por muitos anos e muitas décadas, houve críticas e lutas contra quem insistia que a categoria gênero estava contida em si mesma e era autossuficiente e que a investigação acadêmica sobre a construção de gênero era possível sem levar em consideração a raça, a sexualidade, a classe, as deficiências e a nação.  […]

É a própria capacidade do feminismo de abraçar cada vez mais complexidade em resposta às circunstâncias históricas que o torna tão empolgante. É isso que o torna tão radical. É isso que mantém o campo em perpétuo estado de instabilidade, às vezes beirando a crise. Essa instabilidade e essas crises não devem ser evitadas. A instabilidade e a crise podem ser produtivas se estivermos dispostas a habitar os interstícios das instabilidades.

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.150-152]

“Onde quer que eu esteja, o que quer que esteja fazendo, tento me sentir conectada a futuros que só são possíveis por meio da luta. Portanto, quero começar sugerindo que, seja você quem for, esteja onde estiver, seja estudante, docente, trabalhador ou trabalhadora, uma pessoa ativa em sua igreja, artista, sempre há maneiras de direcionar seu trabalho para uma transformação progressiva e radical.”

[O SENTIDO DA LIBERDADE, p.30]

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos um capítulo de Mulheres, raça e classe, de Angela Davis; um capítulo de Minha carne, de Preta Ferreira e a introdução de A nova segregação, de Michelle Alexander.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Angela Davis

O significado de emancipação para mulheres negras


Preta Ferreira

Angela Davis


Michelle Alexander

A nova segregação: introdução

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro, com a participação de Preta Ferreira, Zélia Amador de Deus e Anne Quiangala (mediação); a conferência de Angela Davis no Seminário Internacional “Democracia em colapso?”; a aula de Raquel Barreto do curso de introdução ao pensamento de Angela Davis; e a indicação dos documentários Libertem Angela Davis e 13ª emenda.

Para aprofundar…

Uma compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Mulheres, raça e classe, de Angela Davis

Mulheres, cultura e política, de Angela Davis

A liberdade é uma luta constante, de Angela Davis

Uma autobiografia, de Angela Davis

Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia, de Angela Davis e Naomi Klein

Pensamento feminista negro, de Patricia Hill Collins

Minha carne, de Preta Ferreira

A nova segregação, de Michelle Alexander

Margem Esquerda #33: dossiê Marxismo e lutas LGBT

Margem Esquerda #27: dossiê Marxismo e questão racial

Grifa Podcast: Aula 1: Introdução ao pensamento feminista negro | O pensamento de Angela Davis e Lélia Gonzalez, com Raquel Barreto, mar.2021.

Grifa Podcast: Grifo Nosso – A liberdade é uma luta constante, Angela Davis, mar.2021.

Filosofia pop#157 – Angela Davis, com Thaís Rodrigues, jun.2022.

Hoje na história: 04 de junho de 1972 – Ativista Angela Davis é absolvida pela Justiça dos EUA, jun. 2022.

Angela Davis Speaks!: playlist com uma seleção de trechos de discursos de Angela Davis.

The meaning of freedom [em inglês]: playlist com uma seleção de discursos de Angela Davis.

A liberdade é uma luta constante | Angela Davis no Ibirapuera, TV Boitempo.

Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo, com Angela Davis, TV Boitempo.

Angela Davis e a revolução da mulher negra, com Djamila Ribeiro e Rosane Borges, TV Boitempo.

Curso: feminismo negro descolonial nas Américas, com Angela Davis, TV Boitempo.

Angela Davis fala sobre sua autobiografia e Toni Morrison, TV Boitempo.

Angela Davis e Judith Butler em conversa sobre a desigualdade, SSEXBBOX.

Introdução a Angela Davis, com Raquel Barreto, TV Boitempo.

Angela Davis: quem é e por que ela é importante, com Jaqueline Conceição, Casa do Saber.

Quem é Angela Davis?“, Blog da Boitempo, 2022.

Carta aberta ao Partido Comunista“, por Angela Davis, Blog da Boitempo, 2019.

A potência de Sojourner Truth“, por Angela Davis, Blog da Boitempo, 2018.

Cultura e política na obra de Angela Davis“, por Vilma Reis, Blog da Boitempo, 2017.

Construindo o futuro da luta contra o racismo“, por Angela Davis, Blog da Boitempo, 2017.

O marxismo de Angela Davis“, por Silvio Almeida, Blog da Boitempo, 2016.

As ideias imprescindíveis de Angela Davis“, por Rosane Borges, Blog da Boitempo, 2016.

A liberdade é uma luta constante“, por Conceição Evaristo, Blog da Boitempo, 2018.

A edição de conteúdo deste guia é de Isabella Meucci e as artes são de Uva Costriuba.