Com Marx, mas para além dele: o feminismo de Leopoldina Fortunati

Manifestação feminista na Piazza Grande, Modena (Itália), 1977. Imagem: Women’s Documentation Center.

Por Maíra Kubík Mano

Assumir a luta contra o trabalho reprodutivo como uma luta contra o trabalho, esta é a tarefa a que nos convida Leopoldina Fortunati. A partir da compreensão de que o trabalho reprodutivo é parte crucial do sistema capitalista, produzindo valor, a autora constrói um texto eloquente, apoiado sobre a teoria marxiana, ainda que também crítico a ela.

Compreendendo o equívoco da interpretação de Marx, que toma o trabalho reprodutivo como “natural”, e as limitações da crítica feminista à economia política, a autora esmiuça as características do valor de troca para o trabalho reprodutivo, seja doméstico, seja das prostitutas. Seu olhar se volta à família capitalista e à prostituição por considerá-las a espinha dorsal de todo o processo reprodutivo. Temos, portanto, duas operárias: a da casa e a do sexo, que devem se unir pela destruição da relação de trabalho não diretamente remunerada – o que não significa, de forma alguma, uma fala contrária ao trabalho sexual enquanto profissão ou a adoção de qualquer abordagem moralista.

O texto foi publicado pela filósofa italiana em 1981, mas sua tradução chega em boa hora: ao adotar uma perspectiva feminista materialista, ela rechaça a hiperexploração que significam as duplas e triplas jornadas de trabalho femininas na sociedade contemporânea, algo que, nas últimas décadas, com a precarização do mundo do trabalho, apenas se intensificou. Fortunati vislumbra nos embates em torno de matrimônio, divórcio, não casamento, não maternidade etc. formas de minar o próprio mecanismo de acumulação capitalista. Compreende também que a massificação recente das lutas população LGBT+ pode significar uma rebelião antissistema, já que se colocam contra a heterossexualidade como um sedimento das relações de produção. Antecipa, ainda, a tão atual pauta do care – ou políticas de cuidado – ao pensar nos necessários enfrentamentos à duração e à intensidade do trabalho doméstico, com a exigência da diminuição das jornadas.

Para um olhar desde o Brasil, contudo, é necessário agregar a imbricação de gênero, raça e classe, algo a que a autora não se dedica. Sua atualização também exige pensar as relações sociais de reprodução a partir das tarefas executadas, mais que dos corpos que as executam, refutando qualquer biologização. Ainda assim, este livro segue profundamente atual tanto no diagnóstico quanto no convite que faz: o de vislumbrar um futuro de não exploração, fora do sistema capitalista.


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Maíra Kubík Mano é jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Professora do departamento de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.


Publicado pela primeira vez em 1981, O arcano da reprodução é um clássico do feminismo italiano que ganha sua primeira tradução para o português. A partir das grandes revoltas sociais que contestaram as divisões sexuais e raciais do trabalho em todo o mundo na década de 1970, a obra de Leopoldina Fortunati expande e transforma o modo como analisamos o processo de reprodução – parte do ciclo capitalista que diz respeito à produção de indivíduos como mercadoria força de trabalho.  

O arcano da reprodução é um verdadeiro tour de force, único tanto no campo do marxismo quanto no do feminismo. Enquanto as marxistas feministas elaboraram a importância da obra de Marx para compreender a opressão e a exploração das mulheres, Fortunati revoluciona o senso comum sobre produção e reprodução ao testar as categorias marxianas por meio de sua aplicação heterodoxa.”
Silvia Federici, autora de Mulheres e caça às bruxas e O patriarcado de salário

Partindo de categorias marxistas, Fortunati vai além, explorando inclusive a visão parcial de Karl Marx em relação à análise de reprodução, uma vez que o autor, que reconhecia o papel do trabalho doméstico no processo geral de produção como momento da reprodução da força de trabalho, não atribuía a essas atividades – centrais para a manutenção da vida tanto no âmbito material, da subsistência, quanto imaterial, no que diz respeito aos afetos e à sexualidade – a capacidade de produzir valor.  

Fortunati procura demonstrar, não contra Marx, mas para além dele, como o trabalho de reprodução realizado pelas “operárias da casa” e pelas “operárias do sexo” integra o processo geral de reprodução do capital. Original, a obra nos apresenta valiosas ferramentas de análise do estado contemporâneo do desenvolvimento capitalista e das lutas das mulheres hoje. No momento em que o trabalho digital borra ainda mais as fronteiras entre as jornadas de trabalho doméstico e extradoméstico, o texto continua sendo precursor e essencial.  

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