O pacto racial contra a democracia
Protesto em frente ao Palácio Guanabara, sede do governo do estado do Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Por Edson Teles
Imagine acordar com o seu bairro sitiado por forças militares entrando nas casas e, assustado(a) e acuado(a), você ficar em algum canto de sua residência ouvindo tiros, bombas e gritos de pessoas sendo executadas. Imagine dezenas de corpos dilacerados e enfileirados enquanto familiares procuram seus entes desaparecidos, fazendo o reconhecimento da identidade e chorando nessa cena trágica.
Claro que se a sua residência for em um bairro de população majoritariamente branca essas cenas nunca passarão de uma reportagem de TV ou de algum vídeo em redes sociais.
Em uma ação violenta e criminosa, o estado do Rio de Janeiro realizou uma operação militar em território pobre e historicamente abandonado pelas instituições e repetiu aquilo que é uma das marcas da história nacional, o massacre.
A violência estatal é um dos modos pelos quais se pode contar a história do país. Desde a instalação do poder colonial, com a hierarquização de corpos brancos, negros e indígenas, o Brasil tem se constituído enquanto uma sociedade racializada, que assim classifica sua população por diferentes graus de humanidade. Mesmo diante da gravidade dessa violência, o século XX nasceu com o investimento na ideia de democracia racial e de relações harmoniosas entre esses distintos humanos, apostando no projeto de que a República seria um modo de embranquecer e assimilar aqueles que se encontravam em situações inferiores.
Isso seguiu mais ou menos disseminado na sociedade e com características que foram variando a depender do momento político e social. A partir de 1964, com a ditadura, houve uma estatização da ideia de democracia racial e um investimento nela como um mito de constituição da identidade nacional. Não se falava tanto em embranquecer, como em momentos anteriores, mas se negava a existência do racismo. A ditadura criou regramento de penalização por racismo a quem denunciasse a sua existência, perseguindo os militantes de movimentos negros. Como diz Muniz Sodré, o racismo à brasileira passou a se apresentar sob uma dupla negação: negava-se a existência do negro e se negava, também, o racismo.
Dessa forma, ao se fazer o elogio da mestiçagem e da mistura, a ditadura tentava desaparecer com o racismo ao mesmo passo em que seguia desaparecendo com o negro. E, aqui, não não me refiro somente a uma retórica do apagamento da presença da população negra na sociedade, mas à violência de Estado que seguiu com a política de morte contra a população preta e pobre.
O Estado, naqueles anos, investiu fartamente na militarização da segurança pública como modo de controle social da população pobre que poderia se revoltar e controle político dos movimentos oposicionistas. Sob a justificativa de combate aos chamados “subversivos”, que tiveram a coragem de pegar em armas contra o regime ditatorial, o Estado se preparou, investiu nas polícias militares, criou instituições de produção da violência e equipou o sistema jurídico-policial para manter desaparecidos os fatos e os corpos.
Com o início do processo de transição para a democracia uma série de estruturas e estratégias da ditadura passaram a ser objeto de relações de forças e de negociações. A ambiguidade da ideia de democracia racial, com a imposição de um violento racismo ao mesmo tempo em que se negava sua existência, foi repaginada nas novas (velhas) estruturas de segurança pública da democracia. O inimigo da doutrina de segurança nacional da ditadura, o subversivo, foi discursivamente substituído pelo inimigo causador da violência urbana e da criminalidade.
Em um lance de xadrez social, o crime foi relacionado aos territórios pobres e aos corpos pretos. Seja por falta de oportunidades, seja pelo rebaixamento dos seres humanos vítimas do racismo, se montou a imagem de que nesses territórios habitavam aqueles que impediam o país de seguir em ordem e em desenvolvimento. Assim, ao invés do subversivo, o aparato militar de segurança pública e de combate ao inimigo interno foi mantido em democracia (e sofisticado) para caçar e matar a população dos “territórios do crime”.
Isso não foi acertado nas mesas de negociação dentro dos palácios, nem imposto por meia dúzia de generais. O pacto racial de manutenção da violência de Estado foi fruto de uma economia política e social das elites racializadas brancas para manterem seus privilégios, fosse qual fosse o regime político, e aceito (ou “não percebido”) pela maioria das forças políticas da redemocratização.
A Constituição cidadã de 1988, ao incluir uma série de direitos, inclusive para os segmentos cujas vidas valiam menos, manteve praticamente intacto o modo militar de combate ao inimigo da segurança pública. Permaneceu com as polícias militares e sua submissão ao modelo e ao comando das Forças Armadas. Relacionou a segurança interna à ação de proteção das fronteiras, como se uma espécie de guerra fria continuasse ocorresse dentro do território nacional nos anos de democracia.
Sob a lógica da guerra, a morte por violência de Estado somente ocorreria com a parte desvalorizada do pacto racial, nunca em território branco. Hoje vemos a repetição desse mesmo pacto, do mesmo aparato, das mesmas estruturas e estratégias no massacre do Rio de Janeiro.
Essa tragédia poderia ser a oportunidade para um ato em favor da democracia com a nomeação de uma mulher negra à corte suprema da justiça. Infelizmente, não será assim, pois o pacto racial não o permite. Seguiremos com a balança da Justiça, como nas outras instituições do Estado, operando com valores distintos para a vida.
O fascismo e a violência da extrema direita habitam no terrorismo da segurança pública racista. É por isso que devemos dizer de modo franco: não haverá democracia enquanto não houver ruptura radical com a desvalorização da vida imposta pela violência de Estado.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade na revista Margem Esquerda n.19.
SOME-SE ÀS MANIFESTAÇÕES NA SUA CIDADE
- Rio de Janeiro: Campo do Ordem (Penha), 13h
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- Belo Horizonte: Praça Sete de Setembro, 17h
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- Ribeirão Preto: Local e horário a confirmar
- Florianópolis: Em frente ao TICEN, 17h30
- Joinville: Praça Nereu Ramos, 18h
- Vitória: Pracinha de Itararé, 17h
- Natal: Shopping Midway, 17h
PARA SE APROFUNDAR NO ASSUNTO
O que resta da ditadura: a exceção brasileira
Bem lembrada na frase que serve de epígrafe ao livro, a importância do passado no processo histórico que determinará o porvir de uma nação é justamente o que torna fundamental esta obra. Organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle, O que resta da ditadura reúne uma série de ensaios que esquadrinham o legado deixado pelo regime militar na estrutura jurídica, nas práticas políticas, na literatura, na violência institucionalizada e em outras esferas da vida social brasileira. O livro reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias, Tales Ab’Sáber, Janaína de Almeida Teles e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no país hoje.
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