Um documentário em defesa da educação: aprender a construir sonhos e futuros

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Por Matheus Cosmo

Ela sabia de muitos casos tristes, em que tudo havia dado errado. Procurou se lembrar de algum que tivesse tido um final feliz. Não lembrou. Esforçou-se mais e não atinou com nenhum. Não esmoreceu. Relembram tanto, falavam tanto daqueles casos tristes, que, até ela, só se lembrava deles. Não tinha importância. O caso dela, quando voltasse para buscar os seus, haveria de ser uma história de final feliz.
Conceição Evaristo

Eu acho que você não deveria parar, sua avó ficaria orgulhosa de você. Nós não podemos fazer as coisas sozinhos, entende? Precisamos estar juntos.
Jeferson Tenório

O ano de 2025 marca exatos dez anos desde o lançamento do filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Recentemente, em bate-papo realizado com a própria diretora, num encontro promovido pelo Museu Lasar Segall, na cidade de São Paulo, Anna afirmou sentir-se realizada com o reconhecimento de que sua obra teria dado forma e perspectiva de coletividade a toda uma geração de Jéssicas; a um alto número de pessoas que, inaugurando determinadas posições em seus respectivos núcleos familiares, finalmente vieram a ocupar algumas das públicas carteiras universitárias, outrora reservadas à exclusividade de postos familiares e à manutenção de certos privilégios de classe, rompendo assim, no limite de suas atuações e perspectivas, determinados e esperados ciclos de opressão, esvaziamento e violência, ainda que para isso, sem que soubessem de imediato, tivessem de inaugurar alguns outros tantos desses mesmos postos – agora, entretanto, sendo em tudo diferentes, por vezes mascarados por uma fantasiosa, porém real, ideia de inclusão. É também sobre este processo que o mais recente longa-metragem de Vitor Rocha, Aprender a sonhar, que chegou às telas nacionais nas últimas semanas, se propõe a falar. 

O documentário faz um retrato cinematográfico de toda uma geração – aquela que, de alguma maneira, teve de construir um mundo inteiramente autoral, para que pudesse legitimamente chamar de seu, especialmente no que tange às trajetórias escolares. É claro que parte deste processo tende a caracterizar a própria ideia de geração, especialmente naquilo que se refere à inauguração e passagem de um ciclo temporal a outro, bem como ao próprio horizonte de abertura de um campo de sonhos e possibilidades. Todavia, o que aqui está posto parece apontar para uma direção um pouco mais complexa: ao longo dos últimos anos, a alguns sujeitos, a quem algumas portas mostraram-se um tanto abertas, foi necessária a criação de modos de existir mesmo quando parte da imaginação política se apresentava como uma forma bloqueada de existência, ligada exclusivamente ao correr das horas. Seguindo a ideia circunscrita pelo título da obra audiovisual de Vitor Rocha, se sonhar parece mesmo ser uma questão de aprendizagem, que envolve um tanto de fatores, métodos e elaborações, mas que também abarca as formas de inscrição de algo que não se controla, as maneiras pelas quais a própria possibilidade dos sonhos se abre para cada sujeito revelam as matrizes sociopolíticas de toda uma estrutura, substancialmente marcada pela rigidez da determinação de certas posições de gênero, de raça e classe. Em paralelo, sendo verdadeira uma afirmação do líder yanomami Davi Kopenawa, segundo a qual os brancos já não sabem mais sonhar, a necessária abertura de um imaginário e vasto universo de possibilidades só poderia mesmo ser concebida por outros e novos agentes sociais.  

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O intervalo de tempo entre os anos de 2004 e 2013 marcou uma quadruplicação do número de estudantes mais pobres nas universidades públicas, aumento ocorrido principalmente por conta de políticas de incentivo como o ProUni. No entanto, dados de 2019 revelam que, nas unidades federais, a cada 100 vagas apenas 5 eram ocupadas pelos 20% mais pobres da população brasileira. De modo talvez um pouco mais abrangente e significativo, o Censo da Educação de 2022 afirmou que 3, em cada 4 jovens brasileiros de 18 a 24 anos, simplesmente não tinham sequer o acesso a uma formação superior. É claro que a palavra estudante não existe num vazio conceitual, assim como nenhuma outra em nosso vocabulário: as palavras emergem sempre carregadas de seus imanentes recortes estruturais. Enquanto as leis de cotas parecem ter garantido um aumento de 2,3 pontos percentuais no ingresso estudantil em universidades públicas entre 2013 e 2020, apenas na USP, a depender do curso, a evasão chegou a 54% dos estudantes. Ainda que seja alarmante, o dado não é de todo espantoso, se lembrarmos que, apenas em 2023, 9 milhões de pessoas não completaram sequer o Ensino Médio – e 71,6% dessas mesmas pessoas eram pretas ou pardas. Isto se diz ao mesmo tempo em que se louva o fato de que o número de estudantes pretos, pardos e indígenas saltou de 7,2% para 26,1% em um intervalo de apenas 20 anos. Toda essa contradição numérica parece mesmo uma marca dos processos de incorporação da sociedade capitalista, que sabe incluir sujeitos sem eliminar as marcas de opressão das regras do sistema, que faz questão de não alterar as regras de seu jogo, apenas as enunciando com novas cores e tons de voz. Como se pode imaginar, enquanto abria uma discussão necessária sobre desigualdade educacional e justiça social, a universidade também inaugurava novíssimas formas de opressão, agora mais adequadas e condizentes com sua roupagem progressista de início de século. 

É que cada civilização tem (mesmo) sua forma de dizer como tudo iniciou. Esta potente frase, aqui relembrada e reproduzida, é o exato ponto de partida do longa-metragem que parece dar sentido a vários dos quadros – e ao filme, como um todo. No caso da história de vida de uma das integrantes do documentário dirigido por Vitor, que ganha em relevância estética e política à medida em que também se torna exemplo e sintoma de um contingente numérico muito maior de pessoas, no início estava uma observação atenta do trabalho materno, em ambiente rural, combinando ervas e alargando possibilidades de vida e de cura. Daí teria nascido o desejo de cursar medicina, por exemplo – campo de estudo que a própria estudante não sabia explicar o que era, mas que emergia enquanto desejo a partir de uma observação atenta do próprio existir, do fazer e do curar; a partir das possibilidades de contato entre ser humano e natureza, com os pés sempre muito fincados e mergulhados na terra. Para além do potencial espaço de disputa entre teoria e prática, comum no debate filosófico e sociológico, o quadro dá mesmo o que pensar. Aqui, a universidade organiza a prática; o desejo de estudo e análise, contudo, vem mesmo da própria vida, que é o que dá substância e matéria à própria produção científica, em tudo alinhada e vinculada ao viver.  No que tange à investigação proposta, o filme dirigido por Vitor aborda a trajetória de estudantes que ingressaram na Universidade Federal da Bahia por meio da política de cotas, entre os anos de 2016 e 2023; estruturalmente, contudo, expandindo os prédios da própria universidade, o longa corresponde à dinâmica de trabalho com o próprio objeto conhecimento e com o lugar a ele estabelecido e reservado em uma sociedade marcada por uma abissal diferença de classe. 

O impacto das posições de classe aparece no longa-metragem, mas deixa em aberto muitas questões. Ampliar a expansão de vagas e ações afirmativas nas universidades públicas caminhou junto à dificuldade de compreender o que estava em jogo na profundidade e imanência das estruturas. Tal como o filme propõe, comecemos pelo mais básico: no ato de matrícula, que comprovante de residência poderá entregar uma estudante que mora em uma ocupação, sem água e energia elétrica? Quantas horas de trajeto diário terão de fazer cada um desses estudantes, a fim de fazer valer seu simples direito de estudar? Em sua rotina, quanto de tempo sobrará para estudo e leitura, no final dos dias? A seu modo, os incentivos do governo também darão conta das situações de aparente defasagem formativa, frequentemente salientadas por professores indignados com uma suposta queda de nível dos estudantes1, sem deixar ali entrever o caráter classista de sua afirmação e as artimanhas ideológicas com as quais seu discurso insiste em contornar a própria ideia de professor? Afinal de contas, em uma universidade como a USP, que aqui será tomada como exemplo, quais estudantes são mesmo esperados em cada sala de aula, a cada nova publicação de uma lista de aprovados pela FUVEST? 

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Em pesquisa recente, defendida neste ano junto ao Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, Felipe Paes Piva se propôs a pensar o sofrimento psíquico e social dentro dos prédios e corredores de uma das maiores e melhores universidades públicas deste país. Cerca de 72,5% dos entrevistados em sua pesquisa concordaram que o ambiente acadêmico pode ser bem solitário e pouco acolhedor – o que uma das entrevistadas haveria de descrever, a partir da observação do trabalho de alguns docentes, como uma aura de inacessibilidade. A escuta aos relatos de experiência dos novos estudantes parece revelar que o ingresso no ensino superior é apenas a primeira das etapas excludentes pelas quais passa determinado grupo estudantil: ao longo de todo o percurso acadêmico, muitas outras ainda são as violências que podem vir a atravessar essas relações, seja no modo de se interagir com o próprio espaço e com as estruturas já consolidadas, seja pelo próprio desafio de manter-se firme em seu propósito e direito conquistado de estudo e vida. Curiosamente ou não, é também sobre este mesmo processo de violência que as classes populares têm enfrentado em suas entradas no ensino superior que trata o novo romance de Jeferson Tenório: De onde eles vêm – um dos finalistas do Prêmio Jabuti deste ano de 2025. Caberá à história dizer se aqui estamos diante de uma possibilidade de revisar os próprios processos e procedimentos universitários, a partir da entrada e efetiva incorporação de novos agentes sociais, ou de uma nova tentativa de fazer circular o nome de um brilhante escritor como um aparente modo de integração das pautas advindas dos setores mais pobres. Sem dúvida alguma, isso nada diz sobre o trabalho de Jeferson, que fora proibido em algumas escolas deste país, mas da incompatibilidade entre forma e conteúdo, discurso e práxis, bandeiras acolhedoras alimentadas de olhares perversos nas esquinas dos corredores. 

Seja como for, é de dentro das universidades que saem também algumas das grandes estratégias políticas de luta em prol de uma coletividade. Nas palavras e nos cantos dos movimentos sociais e estudantis em cena, é substancialmente das mulheres-guerreiras que virá a própria possibilidade de uma revolução, o que não se diz sem o peso enorme da responsabilidade que, a despeito da dificílima empreitada, parece mesmo um tanto fácil de se imaginar, porque aponta para processos em curso. A partir de 2020, principalmente por conta do avanço das políticas de cotas, o perfil dos ingressantes se tornou mais socialmente diverso, a saber, mais negro e com um maior número de mulheres na cena universitária2. Trata-se, enfim, da concretização de um novo momento histórico, tornado possível pela ascensão daquela geração de Jéssicas: aos poucos, finalmente se constrói uma universidade mais negra e com maior número de mulheres, mesmo que em algumas áreas e campos de conhecimento ainda haja forte predominância de modelos, cargos e discussões exclusivamente ligados aos homens. Aqui, contudo, dois pontos merecem destaque. 

Os cortes secos e cíclicos ao longo da obra, com movimentos precisos da câmera, não impedem que o filme formalize a narrativa de seu processo constituinte, mas dão a ver os impasses e atravessamentos que são inerentes à tentativa de ascensão na sociedade brasileira. A cada repetição cênica, um elemento a mais se mostra e um passo adiante parece ser dado em direção a um futuro emancipatório – passo que só se constrói a partir da lembrança original do corpo protegido em comunidade, com os pés, novamente, fincados na terra. O filme, feito de interrupções que produzem amálgamas e entrelaçamentos, é o princípio estético de uma coletividade que só existe porque dá corpo e voz às políticas e potências de solidariedade que advêm do sentimento de justiça e colaboração que os excluídos produzem a partir da necessidade de sobreviver. O olhar que mira o futuro, desejando ainda encontrar alguma possibilidade de vida, só consegue encontrar a plenitude de seu alcance à medida em que garante a certeza de suas raízes. Neste contexto, promover a ascensão de um sujeito social é também a possibilidade da vitória de sua própria comunidade – aquela mesma que, com entrada difícil nos processos universitários, agora também exige de seus professores, na pura e simples possibilidade de sua presença, no mínimo uma revisão bibliográfica, com a qual também os estudantes consigam se identificar e ver-se representados, quebrando um vasto ciclo histórico de silenciamento, estruturado a partir da falsa ideia de problemas e sujeitos universais. A repetição cinematográfica, ao retornar ao mesmo ponto, movendo-o para estruturas distintas, direciona também o próprio enredo do longa-metragem, num casamento perfeito entre forma e conteúdo, técnica e matéria, possibilitando, a cada novo quadro, também a instauração de uma nova fissura – um feixe de luz que aponta para uma promessa de esperança e futuro. A cada repetição, uma nova chance é dada a cada sujeito, um novo quadro é possível. Esta repetição não segue ritmos e retratos exatos de cenas e quadros, mas abre ainda outras brechas: a cada novidade, é sempre mais um a entrar; é sempre mais uma voz a ocupar cada carteira e laboratório – e é dali que outras e novas estratégias de vida e pensamento poderão sair e dar sentido à realidade local. Em resumo, o povo que sai da terra em busca de água é também o que, em algum momento, tende a voltar à terra para fonte de vida também ali encontrar e compreender – dessa vez, contudo, tendo encontrado, no meio do caminho, alguns companheiros, livros e possibilidades.  

Infelizmente, há algo deste processo que ainda está resta para ser escrito e encenado. Decerto, o trabalho feito por Vitor Rocha tem seu grande valor por dar contorno estético ao processo de entrada das classes populares nas universidades brasileiras, este que, ainda que venha cheio das mais diversas dificuldades e formas de opressão e violência, aqui englobando tanto as ditas abertamente, de cara limpa, quanto as implícitas, ocultas no silêncio dos encontros e nos julgamentos dos olhares, pode ainda culminar na conquista de diplomas e no anúncio de que, após esta conquista, de fato uma nova jornada começa. O que permanece como um resíduo a ser elaborado e exaustivamente dito é justamente aquilo que permanece no entre dessas duas pontas, no cruzamento que compõe mesmo o princípio da própria universidade: a formação que se revela possível entre a aparente exigência intelectual e o saber que advém das ruas, das comunidades e campos. Neste sentido, aquele mesmo romance de Jeferson Tenório aparece como uma leitura fundamental, ao tentar recompor a trajetória estudantil de quem precisa encarar horas de transporte público numa corrida infinita frente a um saber que aparentemente não se alcança, uma vez que é justamente nesta distância que opera a disputa de classe, gênero e raça, atribuindo valor ao que hoje, felizmente, já se percebe como privilégio. Também nesse sentido vale a lembrança de Lélia Gonzalez, ao afirmar que o acesso ao ensino superior se dava substancialmente via embranquecimento3, ora na proposição implícita de que era preciso esquecer as próprias origens, em prol da aquisição de novos saberes, ora justamente nesta entrada em um novo universo teórico-semântico, agora repleto de referências que apontam também para velhos combinados de classe, gênero e raça – a isso chamaríamos, também, de cânone? Em suma, trata-se da fria contradição de buscar pertencer a um lugar ao qual efetivamente não se pertence, com placas invisíveis a sinalizar a todo instante a impossibilidade de caber dentro de algumas salas de aula; o dilema de, ao final de um percurso, conquistar um diploma que aparentemente não haverá de possuir o mesmo valor que o dos demais colegas de classe, a despeito do fato de que os valores simbólicos serão aparentemente os mesmos. O tamanho do valor, contudo, segue sendo determinado pela posição social ocupada dentro de uma estrutura, produzindo sujeitos demasiadamente intelectualizados para um mercado que exige de nós a mais pura irracionalidade, gerando desempregos, alterando o peso dos resultados de provas e anulando concursos, se for preciso. 

Deste solo fértil e precisamente impreciso, no olhar de mãe para filha, no carinho acolhedor de uma comunidade com cada um de seus integrantes, nasce ainda uma constatação: “Esta árvore será o que fizermos dela”. O que pode morrer ou chegar a dar algum fruto aparece reunido em um mesmo cenário de potencial imprecisão analítica, mas que é mesmo o ritmo da vida, com seus potenciais caminhos e percursos. O sentido da esperança parece mesmo nortear o filme, que ganha enquanto formalização de um campo de possibilidades. Não deve haver dúvidas de que, neste sentido, o longa-metragem é também documento de uma época marcada pela sobrevivência das políticas desenvolvimentistas que marcaram os anos iniciais de governo do Partido dos Trabalhadores. Não à toa, ao se eleger novamente em 2022, o presidente Lula manteve uma frase e memória ativas em seu discurso: “O povo brasileiro quer voltar a ter esperança”. Agora, mesmo que se quebrem por conta de uma forte chuva, as árvores ainda parecem capazes de gerar outros e novos frutos porque sua raiz se encontra solidificada em terreno fértil. Por mais difíceis que sejam algumas travessias – há frequentes tempestades neste país –, é preciso saber que, mesmo nelas, quebrar não significa cair. Nunca significou. Por isso, a geração universitária da primeira metade do século XX deve ser o termômetro exato para um estado de coisas. Vítimas maiores de diversas formas de violência, é também ela a promessa de esperança de que novos caminhos são possíveis. Percorrê-los com menos sofrimento é ainda uma tarefa contemporânea, do qual nos aproximamos enquanto ganhamos cada vez mais imprecisão e distância em relação a modelos antigos. 

A face oposta deste processo é a que tem se mostrado nos últimos anos, marcados pela ascensão direitista e pela aprovação arbitrária de projetos como o do Novo Ensino Médio, no qual impera a abominação de qualquer pensamento crítico e formativo, em prol de competências socioemocionais direcionadas a um sentido potencial de expressividade, que é a exata face neoliberal e tecnológica da autorregulação, com discurso banhado em um psiquismo infundado, que apenas aprofunda as desigualdades sociais, enquanto barra qualquer sentido e possibilidade de ascensão e transformação social4. Mais do que reproduzir desigualdades estruturais, no sentido bourdieusiano do termo, a escola agora é também a responsável pela produção radical de uma segregação em massa, pautada antes de tudo pela rigidez de um determinismo em relação aos recortes de classe, gênero e raça – agora, inclusive, aparentemente mais difíceis de tatear porque esfumaçados por uma aparente lógica progressista e inclusiva, dedicada à escuta ativa e ao protagonismo estudantil: modos de dizer de uma mesma ideologia que se propõe a romper com a orientação social esclarecida, em nome da mais rápida integração ao mercado de trabalho. Isso não significa dizer que alunos protagonistas não sejam desejados; ao contrário, o levante da juventude é mesmo uma ação já tardia, por isso emergencial, desde que de seja realizado fora de um modelo de gestão de competências – essa estrutura que, com vocabulário mercadológico, transforma desigualdade em talento natural e paradigma de sucesso, ou em indisciplina e laudo comportamental. Dentro desses esvaziados parâmetros de avaliação, a única competência a ser efetivamente avaliada por cada docente é a capacidade de ser funcional e adequado às inovações mercadológicas, na qual a expressividade juvenil consiste em existir a favor da técnica e da racionalidade do capital – sem contestação, sem inteligência e, sobretudo, sem projeto algum de mudança futura: uma educação sem educação, portanto. 

Por mais que um tanto deste movimento não espante, uma vez que o conservadorismo está sempre à espreita de regimes democráticos e pautas progressistas, como um processo natural de sua mudança e incorporação, dois últimos pontos precisam ser, aqui, colocados. De um lado, encontra-se aquilo que Anna Kornbluh recentemente nomeou como uma aprendizagem-serviço, pensando os entrelaçamentos entre o estágio tardio demais do capitalismo e algumas pressuposições literárias contemporâneas, em especial aquelas dedicadas à autoficção. Apropriando-se um tanto da mesma expressão neste império neoliberal de sujeitos empreendedores de si mesmos, à qual se convencionou chamar também de escola, a aprendizagem se torna um serviço cuja promessa, dosada junto às famílias, é o desenvolvimento promissor de capacidades e categorias que apenas poderiam ser plenamente desenvolvidas dentro de processos em tudo… formativos. Aprendizagem se transforma em valor que produz ideologia, na medida em que tanto revela quanto mascara justamente aquilo que produz e o que deixa de produzir. No império dos pais-clientes e dos estudantes-fregueses, não pode haver educação possível, uma vez que também não há projeto de vida – esta expressão indefinida na qual cabe tudo, até mesmo um componente formativo em grade curricular de Ensino Médio – sem um entendimento profundo acerca de conjunturas sociais. A promessa realizada institucionalmente é falsa em sua premissa e resultado, apenas aprofundando o abismo de classe em cima do qual se encontra mesmo erigida grande parte da política educacional contemporânea, ainda mais depois de anos vividos em pandemia, no qual imperaram, de forma avassaladora, a falta de recursos de formação para todos os sujeitos em potencial desenvolvimento. De algum modo, contudo, porque toda ideologia contém em sua inerente tragicidade algum mecanismo de crença que alarga as promessas e esperanças de um grupo social, há sujeitos que ainda acreditam nesta possibilidade e que dela precisam fazer seu recurso e vida. Em alguns poucos casos, cada vez mais raros, a virada ainda pode dar certo. Daí a relevância do trabalho de Vitor Rocha. 

Ao ter sua entrada garantida em algum estágio possível de sua formação intelectual, o que também é uma condição para que o próprio neoliberalismo consiga se firmar e vender enquanto possibilidade falsamente democrática de vida e governo, o sujeito agora tem de se haver com a difícil transposição de um capital cultural que não foi previamente adquirido, frente ao qual imperam, sobre o sujeito, olhares e julgamentos que não dizem, mas que silenciosamente gritam sua diferença. Um afeto parece, então, dar o tom deste processo: vergonha. A estudante que, em uma das últimas cenas do filme, suspira fundo e apenas exclama que tanta coisa aconteceu é também aquela que recebe seu diploma nos minutos finais; a menina que sobe a ladeira em direção à sua família e que a conduz a um novo ambiente, como redenção possível a todos os seus, é também a que relembra cada uma das marcas de violência que marcaram sua trajetória, ao chegar aos espaços escolares – mas que relembra, também, que tudo só se tornou possível com muito apoio familiar e em diálogo com alguns docentes. Na voz daquelas estudantes, resgatando alguns dos termos defendidos por Frédéric Gros em sua obra, a vergonha pode ainda ser um afeto revolucionário – especialmente quando se torna raiva diante do mundo e dos direitos transformados em exclusividade branca, privilégio masculino e acesso reservado apenas a pessoas com mais de três salários mínimos. Neste sentido, organizar a vergonha é também uma maneira potente de ocupar os espaços e de escurecer os ambientes escolares, desde que aos afetos seja dada uma real e necessária escuta, além de um espaço propício e adequado para circulação.

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Como lembram os Pataxós, educação para transgredir só se faz verdadeiramente em contato com a comunidade e com a terra. É preciso acreditar que há futuros e alternativas – e há: verdadeiramente, eles existem. Convencermo-nos do contrário seria aceitar, inconscientemente, todo rastro da ideologia neoliberal, segundo a qual there is no alternative, como afirmava Margareth Thatcher. É preciso acreditar que mesmo passos muito lentos ainda são passos. Porque são – e levam a algum lugar. De nossa parte, é preciso acelerar certa desintegração de saberes e sistemas, de modo a dar a ver o que não se quer visto. Esta sempre deveria ter sido a função da crítica em um país erigido na ilegitimidade de aniquilamentos culturais. Seguindo as cosmogonias africanas antigas, três coisas são fundamentais: é preciso ouvir, ecoar e transmitir. Antes mesmo de ser dinâmico e proativo, o ato de educar precisa ser transmissão de um saber antigo, construído junto a comunidades de vida. Educação só se faz junto da História – e História só se constrói em prol da emancipação da classe trabalhadora. Sem esta conexão, que dá sentido ao que somos e fazemos, o que resta é mera adaptação ao existente, sem perspectiva de alguma de futuro, a não ser como repetição e reposição do mesmo, desta coisa sempre igual. Saber o que se transmite é também saber pelo que se luta. Por isso, é preciso transmitir que é possível sonhar. Assim, sonhamos – e nossos sonhos são também de todos aqueles que vieram antes de nós. Em nós, também eles ainda estão aqui. Tal como a personagem Joaquim, em De onde eles vêm, é preciso crer que há algo de bonito nisso tudo. É preciso acreditar no sonho, que é promessa de um futuro por vir. Em nome dele, vale ainda dizer: que seja sempre feliz o dia e o mês dos professores. Porque a cada novo sonho é sempre preciso comemorar. 


À Veralucia, Eliane, Luiza Thomé, Cleusa, Maria Sílvia, Marina, Sayuri, Iara e Vima:  mulheres que me permitem sonhar e me fazem acreditar. 

REFERÊNCIAS 

ALMEIDA, A. M. F.; PEROSA, G. S.; LAMANA, G.; MAIA, R. “Metamorfoses de uma universidade: os estudantes da USP entre 2000 e 2020”. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 36, n. 1, p. 45-71, 2024. 

GONZÁLEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 

LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2019. 

MBEMBE, A. Democracia como comunidade de vida. Trad. Pedro Taam. São Paulo: n-1 edições, 2025.

PIVA, F. P. Nas encruzilhadas da emoção e da razão: uma análise antropológica do sofrimento psíquico e social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). 413f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2025.

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Matheus Cosmo é doutor em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP e mestre em Artes, pela mesma instituição. Possui também pós-graduação em psicanálise, com enfoque nas interfaces entre psicanálise e cultura, psicanálise e negritude e psicanálise com crianças e adolescentes. Professor há quase dez anos, possui licenciatura e bacharelado em Letras, também pela Universidade de São Paulo. 


A educação ambiental anticapitalista: produção destrutiva, trabalho associado e agroecologia, de Henrique Tahan Novaes
Com uma visão abrangente, a obra apresenta as ideias mais importantes sobre agroecologia, produção associada, ecossocialismo e pedagogia socialista no Brasil e no mundo, juntamente com práticas de movimentos sociais, enfatizando o trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Novaes explora diferentes práticas ecorrevolucionárias, aborda os cercamentos de terra ocorridos ao longo do século XX e XXI, traz como referência autores importantes como Karl Marx e István Mészáros e entrelaça a importância da educação agroecológica em um processo de transformação da sociedade: “A síntese resultante é única em sua fundamentação na luta pela própria terra, combinada com uma visão ampla da mudança ecológica e social revolucionária”, escreve John Bellamy Foster no prefácio da obra.


Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, organizado por Fernando Cássio
Fernando Cássio, organizador da obra e especialista em políticas públicas de educação, convidou mais de vinte autores para propor um debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educação pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico do ambiente escolar.

A escola não é uma empresa, de Christian Laval
Com uma abordagem pioneira na discussão educacional, trata da influência do neoliberalismo na escola, destacando como as instituições de ensino se moldam às necessidades do capitalismo contemporâneo. Análise crítica sobre a transformação da educação em mercadoria, com Prefácio inédito do autor.

A educação para além do capital, de István Mészáros
Ensaio provocante sobre a educação, questionando visões liberais e utópicas. O autor enfatiza a conexão entre processos educacionais e sociais e destaca a necessidade de romper com as relações sociais sob o controle do sistema do capital para promover mudanças no sistema educacional.


Notas

  1. “No caso dessas universidades, a reserva de vagas foi percebida como uma ameaça à visão da excelência que sustentava sua política universitária, baseada na formação de quadros para a própria reprodução das posições universitárias e para as mais altas posições de serviço público e privado. […] Abertura para grupos até então pouco representados é interpretada como uma ameaça ao status quo, percebido como garantia do bom funcionamento dessas universidades, tal como reiterado em rankings e avaliações de diferentes tipos que se multiplicaram nesse período” Cf: ALMEIDA, A. M. F.; PEROSA, G. S.; LAMANA, G.; MAIA, R. “Metamorfoses de uma universidade: os estudantes da USP entre 2000 e 2020”. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v. 36, n. 1, 2024, p. 50-1. ↩︎
  2. “Apenas a adoção de cotas alcançou diminuir as barreiras nos cursos mais impermeáveis e mesmo naqueles historicamente mais permeáveis. Graças a isso, a população de ingressantes em 2020 é mais diversa socialmente, mais negra e um pouco mais feminina.” Cf. Ibidem, p. 66. ↩︎
  3. GONZÁLEZ, L. “A cidadania e a questão étnica”. IN: Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. ↩︎
  4. Neste sentido, vale a leitura atenta de A escola não é uma empresa, livro escrito por Christian Laval, publicado pela Boitempo. ↩︎

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