“O último Azul”, de Gabriel Mascaro

Foto: Divulgação.

Por Bruna Della Torre

⚠️ ATENÇÃO, SPOILERS NA PISTA! ⚠️

Certas concepções de forma trazem em si um conteúdo implícito e, ao contrário do que sustenta a leitura mais difundida do gênero, o impulso fundamental da ficção científica não é a utopia, mas a sua nostalgia, muitas vezes expressa por meio de fantasias distópicas. O último azul é um representante desse gênero, que toma conta do cinema brasileiro contemporâneo. 

Inspirado pela avó do diretor, que começou a pintar aos 80 anos de idade, o filme trata da relação complexa entre envelhecimento e desejo, que nossa sociedade concebe e configura como uma equação inversamente proporcional. Tereza (Denise Weinberg), a personagem principal, é uma mulher de 77 anos que trabalha num frigorífico arrancando o couro de jacarés. O filme se passa na Amazônia (foi filmado em Manaus, Manacapuru e Novo Airão), num regime de exceção, no qual a propaganda do governo torna-se onipresente por meio de alto-falantes e aviões. Devido a uma mudança na lei, que adianta a idade que determina a sentença, Tereza descobre que chegou o momento de ir para as colônias — para onde são enviados os idosos aposentados compulsoriamente. Uma banda que ninguém sabe onde fica e de onde ninguém volta. É uma espécie de distopia autoritária da política do cuidado: ao invés de retratar a privatização do care intensificada pelos anos neoliberais, o filme adianta o próximo passo do que Silvia Federici e Verónica Gago têm chamado de “fascistização da reprodução social”, agora, planificada pelo Estado. O desespero para escapar da despedida, a falta de notícias, os grafites nos muros que protestam contra a lei e o veículo “cata velhos” aludem ao imaginário dos campos de refugiados, de concentração e de extermínio. O filme acerta em apenas sugerir esse cenário, sem abusar da espetacularização da violência. 

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No centro da narrativa, está a fuga de Tereza. O sonho que quer realizar antes de ir para as colônias é voar — impossível não reconhecer aqui a referência à construção de Brasília, a promessa futurista do avião que aparece ironizada nas propagandas que cortam o filme a respeito do “Brasil, país do futuro”. E aí começa sua travessia. Descontada a obviedade de que o filme se passa numa região na qual o rio é uma das principais vias de transporte (e que lhe garantiu a caracterização de boat movie), a narrativa inverte um tropo importante da figuração da morte no cinema e na literatura. O barco, o barqueiro (alegoria para a morte) e o rio, ao invés de conduzirem ao destino final — vale lembrar como Gustav von Aschenbach paga com a vida o gondoleiro que o conduz em A morte em Veneza —, levam, ao contrário, à luta pela liberdade. Seu primeiro barqueiro, Cadu (Rodrigo Santoro) adverte: “não deixe ninguém travar seu caminho não” — para escapar à morte, vale tudo, inclusive roubar o barco de quem quer te levar. É ele quem mostra a Tereza o caracol azul, cuja “baba”, se pingada no olho, tem poder de revelar o futuro. O animal enseja o momento apocalíptico do filme. 

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A Amazônia de Gabriel Mascaro não é a de Sebastião Salgado, apesar das belas tomadas fotográficas do filme. Trata-se de uma paisagem menos idealizada, mais contraditória. Cadu está envolvido em atividades ilegais; os rios, ladeados por pneus, espelham a degradação ambiental; e a população, submetida à bíblia e às bets, encontra nesses dois polos talvez as únicas vias de imaginação de mudança possível nesse mundo distópico. O caracol com poder psicodélico é uma invenção do diretor — que conscientemente optou pela ficcionalização dos saberes autóctones da Amazônia para não se apropriar dos conhecimentos locais. Decisão acertada num momento em que esses saberes já são explorados por um turismo psicodélico predatório. A opção pelo enquadramento 4:3, propositalmente também, privilegia as personagens e a narrativa sobre a paisagem, evitando qualquer tipo de exotização. 

Igualmente, a personagem Tereza não é idealizada. Ao contrário do modo como parte da crítica recebeu o filme, não se trata de um empoderamento redentor, mas de uma luta pelo desejo e pela liberdade cheia de contradições. Acolhida por Roberta — vendedora ambulante de bíblias digitais interpretada pela atriz cubana Miriam Socarrás, com quem a protagonista estabelece uma amizade de tonalidade erótica (no sentido de vitalidade que possui Eros) —, Tereza deseja comprar também a própria liberdade. Roberta conta a ela que só os pobres vão para a colônia e que ela comprou sua liberdade com o dinheiro das bíblias. Aqui, Mascaro retoma o tema da evangelização no Brasil, que já havia tratado de forma surpreendente em Divino amor (2019). Roberta vende bíblias, mas não acredita no evangelho. Tereza passa a vender a mercadoria com a companheira. Aqui, o filme sugere que, no Brasil, quem não sabe trapacear, fica para trás. Mas o logro é mostrado sem julgamento moral (como ocorre no caso do contrabando de Cadu), mais como um fato social do mundo sem culpa (mas com culpados bem definidos) que orientou parte do imaginário literário brasileiro. Tereza é um Leonardinho Pataca do Brasil pós-tudo. Sua malandragem é item básico de sobrevivência. Numa noite, com a ajuda do caracol mágico e de seu poder de revelar destinos, ela toma o barco de Roberta e o aposta, junto com tudo o que possui, na cidade do pecado, uma espécie de Mahagonny tropical. A aposta se dá num combate de peixes betta — uma espécie de rinha de galos transfigurada em espetáculo luminoso (que também não existe na vida real na Amazônia), onde as cores fluorescentes e saturadas, marca registrada da estética de Mascaro, atingem sua expressão máxima. Esta é a cena mais interessante do filme, em que a brutalidade do mundo social se apresenta como uma batalha natural. 

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Tereza ganha a aposta, recupera o barco “Caridad”, de Roberta, e volta para buscar a amiga. Termina o filme navegando ao som da propaganda governamental e de Maria Bethânia, que canta “Rosa dos ventos”, de Chico Buarque: “Numa enchente amazônica/ Numa explosão atlântica/ E a multidão vendo em pânico/ E a multidão vendo atônita/ Ainda que tarde/ O seu despertar.” O som, em todo o filme, é utilizado contraintuitivamente, mas no fim, a música aparece quase como técnica de estranhamento (um pouco como na cena final de Kuhle Wamp ou a quem pertence o mundo? de Brecht). Ela trata do despertar coletivo — e conta com a vantagem de que tudo parece triunfante na voz de Bethânia — mas o destino de Tereza ainda é incerto e, além disso, singular. O final é aberto, como é talvez o destino atual do país. Nessa perspectiva, o filme é muito mais realista e politicamente interessante que o comemorado Bacurau (2019). 

Embora esteja sendo visto — e parte de sua força e lirismo deve-se mesmo a isso — como a história de uma mulher que luta pelo seu destino, que recusa ser considerada inútil ou reduzida a seu papel familiar, que não enxerga o envelhecimento como fim, mas como começo, ou seja, como uma crítica do machismo, do etarismo etc., o filme encaixa-se muito bem na tradição do cinema que pensa a formação do país. Essa viagem pelos rios da Amazônia também tem algo de um Apocalypse Now — menos colonialista, mais surreal que insano — que leva ao Brasil profundo. Mascaro segue a aposta de Glauber Rocha — também presente em Bacurau e, mais recentemente, na literatura, de Itamar Vieira Jr. (até seu último romance, que acaba de sair) — de que o sujeito da transformação histórica no Brasil não passa apenas (ou principalmente) pelo proletariado urbano, alargando assim a compreensão da luta de classes no país. O filme mostra também que as forças históricas em luta no Brasil hoje (o Estado corrupto, o capital fabril, o tráfico de drogas, as bets, as igrejas, e, do outro lado, às vezes do mesmo lado, as populações ribeirinhas que tentam resistir) passam pela Amazônia. 

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A presença de “Rosa dos ventos” no final sugere que os ventos — e, com eles, as margens por onde se navega — podem mudar a qualquer instante. Se, por um lado, o filme realiza a rara façanha de abordar a velhice sem a sombra da saudade da juventude, por outro, a aparição de Chico Buarque e Maria Bethânia no desfecho — acompanhando e contrastando com a alegria festiva do tecnobrega que embala a fuga de Tereza — sinaliza uma nostalgia de outra ordem, voltada a um tempo em que a transformação radical ainda parecia possível. E, no entanto, talvez a verdadeira utopia consista justamente no contrário do que o filme nos mostra: a de habitar um mundo em que a nostalgia já não seja necessária. 

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Bruna Della Torre é pesquisadora de pós-doutorado no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg, onde também edita a revista Apocalyptica. Integra o comitê editorial da revista Crítica Marxista e o conselho científico de Constelaciones: Revista de Teoría Crítica (Madrid). Em 2023, foi Horkheimer Fellow no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung). Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida (2018-2021), com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (Fapesp). Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Universidade Goethe, em Frankfurt e no Departamento de Literatura da Universidade de Duke (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Tem experiência de pesquisa em e organização de arquivos. Com bolsa do DAAD, conduziu pesquisa no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, em 2014 e em 2019 e no arquivo de Oswald de Andrade (CEDAE/Unicamp) em 2011 com bolsa Fapesp. Em 2024, fez parte do projeto da International Herbert Marcuse Society de organização dos arquivos de Douglas Kellner, abrigado pela Universidade de Columbia. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora visitante na UNB. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. É membra da coletiva “marxismo feminista“.



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