Žižek: Por uma militarização contra Trump  

Inspeção de Trump às tropas no Capitólio, janeiro de 2024. Imagem: WikiCommons

Por Slavoj Žižek

Na terça-feira, 30 de setembro de 2025, o secretário de Defesa, Pete Hegseth, proferiu em Quantico um longo e estranho discurso para toda a alta cúpula do Exército dos EUA, que havia chegado de todos os cantos do mundo. Ele apresentou sua visão de aparência física que os militares deveria ser, e como deveriam agir, oferecendo então uma conclusão drástica: quem não concordar, que renuncie.

“As políticas corretas, de acordo com Hegseth, inserem-se na campanha mais ampla que promove contra os esforços anteriores visando promover a diversidade ou flexibilizar as tropas, considerados por ele ‘woke’ — elas foram oficialmente especificadas em dez diretivas enviadas ao comando militar enquanto ele falava.  

Não deve haver ‘tropas gordas’ ou ‘generais e almirantes gordos pelos corredores do Pentágono’, disse Hegseth. As tropas devem manter-se devidamente barbeadas, e as Forças Armadas abrirão poucas exceções, preferencialmente nenhuma, por razões religiosas ou médicas. Serão estabelecidos apenas padrões físicos masculinos para cargos de combate, e se isso implicar a ausência de mulheres nessas funções, ‘é assim que as coisas são’…”  

Como muitos oficiais presentes observaram em segredo, essa imagem de soldado é muito mais teatral do que uma representação fiel da vida militar “assim como ela é”. O desejo de Hegseth por “soldados de verdade” ressuscita uma velha imagem de soldado que não tem mais lugar na guerra atual, travada por drones e mísseis, majoritariamente controlados por nerds detrás de uma tela; nem no mundo de hoje, em que acabamos de ter notícia da primeira atriz gerada por IA, “Tilly Norwood”, que já é a estrela de uma comédia de esquetes também feita com IA, AI Commissioner, e de vários conteúdos publicitários e de redes sociais. Paradoxalmente, a imagem de soldado de Hegseth é uma versão masculina de Tilly Norwood, uma farsa imaginária que poderíamos chamar de “Till Norwood”. Mas mais importante do que essa fantasia é a descrição que Hegseth faz das ações que esses novos soldados deveriam realizar:  

“‘Nós liberamos uma violência punitiva avassaladora contra o inimigo. Também não lutamos seguindo regras tolas de engajamento. Nossos combatentes estão com as mãos livres para intimidar, desmoralizar, caçar e matar os inimigos do nosso país. Chega dessas regras de engajamento politicamente corretas e autoritárias. Este governo tem se esforçado muito, desde o primeiro dia, para se livrar da justiça social, do politicamente correto e do lixo tóxico ideológico que infectou nosso departamento, para eliminar a política, chega do calendário identitário, dos escritórios de Diversidade, Equidade e Inclusão, de marmanjos usando vestido. Chega da adoração às mudanças climáticas, chega de divisão, distração ou delírios de gênero. Chega de escombros.’”1  

É apenas uma coincidência, mas não deixa de ser importante notar que esse evento tenha ocorrido dias após Vladimir Putin ter assinado a lei que retira a Rússia da Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou Degradantes. A decisão formalizada é mais um passo no completo desengajamento da Rússia de seus compromissos internacionais, e demonstra claramente o desrespeito da Rússia pela proteção dos direitos humanos. O país proibiu visitas de fiscalização em centros de detenção. As principais vítimas da decisão já são e serão cidadãos russos. Segundo o Relator Especial da ONU para a situação dos direitos humanos na Federação Russa, “a tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes são usados com a sanção do Estado como ferramentas para a opressão sistêmica na Federação Russa” e, é claro, na Ucrânia. Legitimação da tortura — eis a versão russa do que acontece quando deixamos “nossos combatentes com as mãos livres para intimidar, desmoralizar, caçar e matar os inimigos do nosso país”…  

E quem são esses inimigos? Depois de Hegseth, foi o próprio Trump que subiu ao palco e, tagarelando por ainda mais tempo, propôs usar cidades americanas como campos de treinamento para as Forças Armadas. Sua alegação central dizia respeito à necessidade de os EUA usarem seu poderio militar para combater o que ele chamou de “invasão interna”, assim como escrevera Steve Bannon para justificar o uso de fuzileiros navais americanos contra os manifestantes em Los Angeles:  

 “Deveríamos usar algumas dessas cidades perigosas como campos de treinamento para as nossas Forças Armadas. Estamos sob uma invasão interna. Não é diferente de [combater] um inimigo estrangeiro, mas em vários aspectos é mais difícil, porque eles não estão uniformizados.” 

Já sabemos disso há meses — Trump planeja usar as forças armadas para “disciplinar” grandes cidades que são controladas pelo Partido Democrata (não apenas Los Angeles, mas também Chicago, Nova York, Nova Orleans…). Também faz parte desse plano levar a julgamento e prender nomes importantes do Partido Democrata, como Barack Obama e Gavin Newson — em suma, o plano é criminalizar oponentes políticos, transformar a luta política em opressão legal e militar direta. Na esfera jurídica, Trump realiza expurgos que colocariam um sorriso no rosto de Stalin — nas Forças Armadas emergem problemas. Enquanto a estratégia usual do populismo de direita é: arrisque-se em uma guerra externa para impor a unidade patriótica interna, o que Trump está fazendo é quase o exato oposto. Na política global, ele se apresenta como um grande pacificador (gaba-se de ter parado sete guerras, tentando impor a paz na Ucrânia e no Oriente Médio), embora sua pacificação seja em regra sustentada por intervenções militares locais brutais ou, pelo menos, ameaças militares (ele promete fazer de Gaza “um inferno” caso seu plano de paz não seja aceito), além de atos militares (Irã, ameaças contra Gaza). Dentro dos EUA, porém, sua percepção sobre a situação é de uma guerra mortal, que exige o uso do Exército americano…  

O paradoxo não é necessariamente catastrófico: na loucura do mundo atual, pode até funcionar, pelo menos por um tempo. É em outro lugar que reside o problema. Até o momento, parecia que unidades especiais da Guarda Nacional sob o controle direto de Trump dariam conta do recado, funcionando como um exército privado que o presidente poderia usar onde quisesse, livre de qualquer controle político. Agora, Trump deu um passo crucial adiante: a Guarda Nacional só não basta para lidar com o inimigo interno, então é preciso politizar o próprio exército regular. Se ouvimos os discursos de Hegseth e Trump, a primeira coisa que salta aos olhos (ou melhor, aos ouvidos) é o silêncio dos generais e almirantes reunidos: nenhum aplauso interrompendo os oradores, nenhuma reação vívida… É fácil compreender esse silêncio: embora seja claramente um instrumento de sua política global, o Exército dos EUA, especialmente seus generais mais importantes, deseja apaixonadamente resguardar uma imagem de neutralidade política, evitando se envolver em disputas políticas, respeitando a constituição e obedecendo apenas a ordens legais. É por isso que, em 2019, quando Trump perdeu a reeleição e afirmou repetidamente que Biden não era um presidente legítimo, fazendo apelos (nem sempre) velados aos seus apoiadores para que se rebelassem abertamente contra o poder estatal, a cúpula militar declarou publicamente que estava pronta para intervir para evitar a desordem pública, ou seja, em caso de alguma tentativa de trazer Trump de volta ao poder por meios inconstitucionais. Se seguirmos essa linha de raciocínio até o fim, devemos considerar a possibilidade de que, se Trump levar a cabo o plano de usar as forças armadas para combater o inimigo interno, o Exército dos EUA pode se sentir compelido a intervir diretamente e derrubá-lo. É uma perspectiva de tirar o fôlego: será que um golpe militar nos salvará da ditadura de Trump?  

Mas há muito mais a dizer sobre o papel do exército na vida pública. Ouve-se com frequência que falta à esquerda uma visão positiva de alternativa viável ao populismo trumpista — presa à repetição de velhos modelos, principalmente o Estado de Bem-Estar Social-Democrata, a esquerda tem falhado sucessivamente nesse quesito. Que tal, então, arriscarmos um passo abandonando o medo da militarização, que é uma característica constante de todas as utopias de esquerda? E se imaginarmos a utopia da militarização completa da sociedade como sendo a única visão emancipatória realista? Antes de descartar essa ideia como um paradoxo pós-moderno de quinta, lembrem-se de que foi exatamente isso o que Fredric Jameson fez em sua Utopia americana.2 A ideia lhe ocorreu ao pensar nas eleições presidenciais americanas de 1952, quando o democrata Adlai Stevenson defendeu a assistência médica universal e gratuita, e Dwight Eisenhower respondeu: “Se alguém quer assistência médica gratuita, que entre para o exército!” A reação de Jameson foi: ora, por que não propor o exército como um modelo de sociedade universal? 

Jameson não apenas descarta as duas principais formas do socialismo estatal do século XX (o Estado de Bem-Estar Social-Democrata e a ditadura do Partido Stalinista), como também o próprio parâmetro usado pela esquerda radical para mensurar seu fracasso: a visão libertária do comunismo como uma livre associação de multidões sociais organizadas em conselhos, ou seja, como a democracia direta não representativa, baseada no engajamento permanente dos cidadãos. De acordo com essa régua, a militarização global seria, obviamente, inaceitável para o nosso senso democrático comum — não surpreende que, ao debater com Jameson na Universidade da Cidade de Nova York, Stanley Aronowitz tenha tentado desesperadamente reduzir a ideia utópica de recrutamento universal de Jameson a uma democracia direta não representativa, na qual as pessoas (soldados) se organizam em conselhos, como ocorre em exércitos populares rebeldes. Essa democracia direta representa o ápice da politização de toda a sociedade, ao passo que Jameson enfatiza reiteradamente que sua ideia de recrutamento universal visa ao desaparecimento da dimensão política como tal: tudo o que resta na sociedade utópica de Jameson é uma economia militarmente (ou seja, não politicamente) organizada, sem necessidade de engajamento permanente da população, e o imenso domínio dos prazeres culturais, igualmente não políticos, desde o sexo até a arte.  

Como Jameson aponta, o que torna este modelo atraente é precisamente o aspecto passivo-burocrático impenetrável da vida militar: nela, não há eleições públicas democráticas — nunca fica muito claro como alguém, e não outra pessoa qualquer, vira general de alta patente… Repetiu-se com frequência um contra-argumento bastante estúpido à utopia de Jameson: mas o exército não pressupõe pelo menos a ameaça de guerra? A resposta é clara: mas a nossa própria sobrevivência não está ameaçada pela crise ecológica e pela expansão da dominação da Inteligência Artificial, para não mencionar a eclosão efetiva de uma guerra global? Para cada uma dessas situações (e especialmente contra a combinação delas), será necessário um forte poder centralizado, um poder pronto para agir, livre de longos e complexos procedimentos democráticos. Numa tal situação, não apenas será necessária uma estrutura semelhante à de um exército, mas também um líder forte no comando — por quê? 

O que caracteriza um verdadeiro líder é, entre outras coisas, a capacidade de tomar decisões difíceis quando não é possível evitá-las: qual agrupamento de soldados sacrificar no campo de batalha, qual paciente salvar quando não há recursos suficientes etc. — ou, como diz o velho médico na série de TV New Amsterdam: “Líderes tomam decisões que os impedem de dormir à noite. Se você dorme tranquilo, você não é um deles.” Paradoxalmente, aqueles excessos que os mecanismos de representação política eleitoral não são capazes de capturar só podem encontrar sua expressão adequada em um líder ou um corpo dirigente capaz de impor um projeto social e econômico de longo prazo, e que não seja limitado pelo curto período entre duas eleições… Isso soa como uma militarização universal? Sim — o comunismo do futuro será um comunismo de guerra ou não será. 

* Tradução de Carolina Peters

Notas

  1. Os trechos citados foram retirados da matéria “Hegseth pushes to remake the military in his preferred image”, da CNN. ↩︎
  2. Ver Fredric Jameson, American Utopia, London: Verso Books 2016. ↩︎

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015), O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016) e Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (2020).


Vivendo no fim dos tempos, de Slavoj Žižek
Não deveria haver mais nenhuma dúvida: o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final. Slavoj Žižek identifica neste livro os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais. E pergunta: se o fim do capitalismo parece para muitos o fim do mundo, como é possível para a sociedade ocidental enfrentar o fim dos tempos?

O fato é que a verdade dói, e para explicar por que tentamos desesperadamente evitá-la, mesmo que os sinais da “grande desordem sob o céu” sejam abundantes em todos os campos. Žižek recorre a um guia inesperado: o famoso esquema de cinco estágios da perda pessoal catastrófica (doença terminal, desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) proposto pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, cuja teoria enfatiza também que esses estágios não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes.

De acordo com Žižek, podemos distinguir os mesmos cinco padrões no modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. A primeira reação é a negação ideológica de qualquer “desordem sob o céu”; a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (“Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes…”); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento; finalmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar. Ou, como Mao Tsé-Tung coloca: “Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente”.


Bem-vindo ao deserto do Real! , de Slavoj Žižek
Cinco ensaios provocativos do filósofo esloveno analisando os desdobramentos pós-11 de Setembro. Navegando pela interseção de cultura, psicanálise e política, o autor confronta a polarização ideológica que sucedeu à tragédia, ressaltando a complexidade das decisões.

O absoluto frágil, de Slavoj Žižek
Crítica ousada, que explora o papel do cristianismo e do marxismo na luta contra o fundamentalismo. Combina filosofia, psicanálise e exemplos da cultura moderna para discutir conflitos culturais e religiosos, destacando a importância da tolerância na busca pela liberdade.

Lacrimae Rerum, de Slavoj Žižek
Coletânea de ensaios que explora o cinema contemporâneo, revelando conexões entre cineastas renomados e a psicanálise. Seus comentários lúdicos e imersão no universo das telas oferecem uma perspectiva única e cativante sobre o cinema, destacando a influência das narrativas na percepção da realidade.

Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek
Incursão nas “causas perdidas” da história, desafiando análises convencionais sobre políticas totalitárias passadas. Com base em Marx e Lacan, propõe uma reinvenção do terror revolucionário e da ditadura do proletariado, refletindo sobre o idealismo subjacente a eventos historicamente controversos.


Primeiro como tragédia, depois como farsa, de Slavoj Žižek
Um olhar crítico sobre o colapso financeiro global após o 11 de Setembro. Notório contestador do liberalismo contemporâneo, o autor analisa a morte do capitalismo, sustentando que vivemos uma farsa após a tragédia. Desafia o liberalismo e convoca a reinvenção da esquerda no século XXI.

Violência, de Slavoj Žižek
As raízes ocultas da violência moderna e seu impacto na sociedade global. O autor desafia as percepções convencionais, oferecendo novas perspectivas sobre a complexidade da violência contemporânea e seu contexto histórico. Abrange desde o capitalismo até a linguagem e o terrorismo fundamentalista.


O ano em que sonhamos perigosamente, de Slavoj Žižek
Análise arrebatadora de eventos marcantes, como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street, sob a lente crítica do filósofo esloveno. Ele desafia a ideologia hegemônica, apontando para um futuro incerto, e oferece um arsenal crítico para aqueles que buscam a mudança.

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, de Slavoj Žižek
Uma exploração abrangente da filosofia ocidental à sombra de Hegel. Em sua obra-prima, o autor desafia a tentativa de escapar da influência hegeliana. Com maestria, explora a transição à modernidade, dialoga com pensadores contemporâneos e propõe uma leitura anacrônica do idealismo alemão.

O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política, de Slavoj Žižek
O filósofo desconstrói o sujeito cartesiano, revelando seu potencial político radical. Confronta correntes pós-althusserianas, teoria de gênero e desafia a hegemonia multicultural. Com humor e rigor filosófico, é uma intervenção política vital para repensar a esquerda na era do capitalismo global.


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