Um país à deriva: comentários sobre “O último azul” de Gabriel Mascaro

Foto: Divulgação.

Por Diogo Dias

⚠️ ATENÇÃO, SPOILERS NA PISTA! ⚠️

Reencantar ou não o mundo? Eis a questão. A frieza da razão instrumentalizada, esvaziada da complexidade das dimensões culturais e subjetivas da humanidade, tem resultado na administração assassina pela qual se justificam as guerras nessa era dos extremos. Por outro lado, a mistificação também cumpre papel importante na má consciência que impede que a barbárie seja olhada nos olhos e vista em suas entranhas. Mas há os pontos de fuga, ou as saídas de emergência desse imbróglio. Não à toa, racionalidade e mito são polos constantemente frequentados por aqueles que buscam uma práxis emancipatória em relação à dominação capitalista. Como já havia identificado Walter Benjamin, isso poderia ser verificado nas obras de arte: nesses objetos, estão presentes tanto seu valor de culto — o caráter único, aurático — quanto seu valor de exposição — a reprodutibilidade, mas que lhe permite também “vir ao encontro do espectador, […] atualiza[ndo] o objeto reproduzido”1 —; a sobreposição de um sobre o outro depende, dentre outros fatores, do contexto histórico que a recepciona. 

Gabriel Mascaro, diretor de O último azul (2025), filme vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, parece ter encontrado no âmbito da mistificação um tema que lhe permite criar universos visuais que, ao mesmo tempo, satirizam e alertam sobre as possíveis consequências de uma vida em que a racionalidade aparenta já não ter mais nada a oferecer. Ele suspende o tempo histórico para abordar um futuro em que algo deu muito errado no projeto da democracia burguesa: no longa anterior, Divino amor (2019), os sucedâneos do prazer e do bem-estar são entregues às pessoas em forma de fundamentalismo religioso; no filme recém-lançado, eles assumem a forma de uma ordem higienista que promete produtividade e, portanto, prosperidade — “O futuro é para todos”, promete a propaganda governamental. Se não sabemos exatamente “que horas são?” em nenhuma das duas distopias do diretor pernambucano, não há dúvidas sobre onde o absurdo acontece: definitivamente estamos no Brasil.

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O último azul conta a história de Tereza (Denise Weinberg), uma mulher de 77 anos que trabalha em um abatedouro de jacarés na região amazônica, mas é forçosamente “aposentada” devido a um “programa” do governo brasileiro que envia de forma compulsória os idosos para colônias afastadas das zonas produtivas, ou seja, bem longe dos olhos da população mais jovem. Assim, estes não precisam se preocupar com o cuidado dos mais velhos e em tese poderiam produzir mais. O primeiro ato do filme é dedicado a contextualizar esse futuro distópico. Mascaro aposta na onipresença da cor azul como um ordenador daquela realidade. As paredes do trabalho, da repartição pública, os uniformes, as sacolas que embalam as mercadorias, entre outros objetos de cena, aparecem sempre invadindo o quadro como um espectro sobre os personagens. A atmosfera também é azulada graças ao tratamento de cor escolhido. Porém, o mesmo azul será o responsável pela saída transcendente dessa ordem. 

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Após o aviso de que sua hora de ir para as colônias é chegada, Tereza ainda tem alguns dias para se preparar para a viagem. Confessa então para uma amiga que, antes de ir, gostaria de voar de avião. A metáfora da liberdade é óbvia e a atitude da personagem é justamente exercê-la. Porém, sua alienação é tão grande que ela não sabia que o trânsito livre dos idosos é cerceado. Realizar o sonho de voar, impedido pela vida de trabalho precário e escassez, passa a ser o grande objetivo de Tereza. Mas sem a anuência de sua tutora legal (a filha), ela terá que se aventurar por vias paralelas às oficiais. Desobediência civil e liberdade seriam o mote político emancipatório do filme. Dentro da totalidade do enredo, porém, essa tese acaba enfraquecida pelo isolamento das personagens e a incapacidade de uma reação coletiva contra a ditadura em que se vive. 

Apesar de abordar o envelhecimento como uma questão social que emerge como um problema econômico para o capitalismo, Mascaro representa quase todas as personagens, de diferentes idades, como tomadas pela tarefa da sobrevivência, impossibilitadas de estabelecer laços sociais mais profundos ou de mantê-los. O contraste entre a tecnologia de ponta acessível através das telas e as estruturas materiais precárias das vilas ribeirinhas estabelece uma ligação de proximidade com a lógica da história recente do Brasil, que absorve as novidades mercadológicas do capitalismo, mas não consegue transformar sua infraestrutura. A mistificação organiza essa sociedade distópica por meio da ordem aparente mantida pela ditadura, assim como pela superstição, que no filme é representada pela lenda do caracol da baba azul e pelo jogo de azar. 

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A trajetória de libertação de Tereza tem como ponto de partida a alienação, no entanto, sua linha de chegada parece igualmente a má consciência. Ao se abrir para a realização de seu sonho de voar, ela descobre que não pode sair do chão, pois o controle sobre seu corpo é total. Sem essa possibilidade, ela se joga na superstição de que o destino pode ser retraçado a partir dos poderes mágicos do pequeno animal mítico: revelador de futuros, permite que os eventos vindouros sejam manipulados por quem se permite enxergá-los. Mas a baba mágica do caracol também é azul, a mesma cor da dominação que paira na primeira parte do filme. Se a intenção de Mascaro era apontar para a crítica a esse tipo de saída mágica, mostrando que esse filtro azul sobre a realidade se mantém tanto num caso como no outro, o resultado não foi satisfatório. Pois a forma fílmica que remete à formação de consciência da personagem por meio de encontros e episódios transformadores vai, apesar das ambiguidades, construindo uma linha de causalidade que deságua em um desfecho redentor. A metáfora da liberdade é ressignificada e, ao invés de voar, Tereza pode, por fim, navegar à deriva.

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Reencantar ou não o mundo? A nossa ligação com a natureza de fato foi embotada pela racionalidade acrítica do ocidente, porém, o retorno acrítico à magia nos joga no fosso da mistificação. É o que mostra o filme de Mascaro. A pequena vitória individual de Tereza não deixa de ser uma grande derrota coletiva de todos aqueles idosos que, enquanto ela navega rio adentro, foram enclausurados administrativamente em fraldas ou em fornos, vai saber… 

Notas

  1. W. Benjamin. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, v. 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 168-169. ↩︎

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Diogo Dias é doutorando de filosofia na Unifesp, onde estuda teoria crítica do cinema no Brasil


Lacrimae Rerum, de Slavoj Žižek
Coletânea de ensaios que explora o cinema contemporâneo, revelando conexões entre cineastas renomados e a psicanálise. Seus comentários lúdicos e imersão no universo das telas oferecem uma perspectiva única e cativante sobre o cinema, destacando a influência das narrativas na percepção da realidade.

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1 comentário em Um país à deriva: comentários sobre “O último azul” de Gabriel Mascaro

  1. Avatar de Desconhecido ruthcambesespareschi // 17/10/2025 às 4:52 pm // Responder

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