Quão crítico é o feminismo que critica o gênero?

A categoria “mulher” não diz de antemão quantas pessoas podem participar da realidade que descreve nem limita de antemão as formas que essa realidade pode assumir. Na verdade, o feminismo sempre insistiu: o que é uma mulher é uma questão em aberto, uma premissa que permitiu às mulheres buscarem possibilidades que foram tradicionalmente negadas a seu sexo.

J. K. Rowling, autora de Harry Potter, denunciada à polícia britânica por transfobia.

Confira um trecho do capítulo “Feministas radicais transexcludentes e as matérias de sexo britânicas”, de Quem tem medo do gênero?, o novo livro de Judith Butler.

Por Judith Butler

As feministas críticas ao gênero querem inverter o debate dentro do feminismo, reivindicando a propriedade do próprio termo. Sua oposição à legislação e aos currículos transafirmativos recorre ao mesmo tipo de discriminação e censura que está acontecendo na direita. À primeira vista, é impressionante e triste ver feministas se envolverem em atos de discriminação depois de tantos anos de luta por leis contra a discriminação sexual. É paradoxal ver que juízes conservadores da Suprema Corte asseguram os direitos trans contra a discriminação com base na legislação existente sobre discriminação sexual enquanto as feministas que reivindicam a propriedade das categorias de sexo exercem uma prerrogativa paternalista para despojar pessoas de seu direito à autodefinição com o objetivo de combater um ataque fantasmático à “condição da mulher”.

As feministas transexcludentes afirmam que as mulheres trans não podem ser mulheres ou que talvez pertençam a uma ordem de mulheres de segunda classe. Fora isso, elas tirariam algo das mulheres assim designadas no nascimento. Quando as Terfs afirmam que seu gênero está sendo apropriado, admitem, na verdade, que pensam em seu sexo como propriedade, algo que lhes foi roubado; mas, se elas continuam existindo nos gêneros que possuem, então, o que mudou exatamente? Será que algo foi realmente perdido ou retirado? A autodefinição é uma antiga prerrogativa feminista, então, por que abrir mão dela agora em nome de uma autoridade ao mesmo tempo paternalista e possessiva? É difícil compreender por que motivo a vida de uma mulher trans ameaça de alguma maneira a vida de uma mulher que manteve sua atribuição original de sexo. Trata-se de dois caminhos divergentes, mas um não anula o outro.

Infelizmente, o argumento antitrans avança um passo além, ao insistir que as mulheres trans são predadores do sexo masculino disfarçados, ou que poderiam sê-lo.1 Nesse momento, a ideia de transfeminilidade é apresentada como um fantasma perigoso, na mesma linha que se vê no discurso de direita. Não se trata de pessoas que lutam para se autodenominarem, para viverem abertamente de acordo com o gênero de que são, solicitando direitos de acesso a atendimento de saúde e proteção legal contra a discriminação e a violência. Não, as mulheres trans aqui são predadores fantasmagóricos ampliados que exemplificam tudo o que há de mais perigoso na violência sexual masculina. Essa não é a primeira vez que feministas se aliam à direita. Vimos isso quando

MacKinnon e Dworkin se aliaram às campanhas antipornografia, apoiando a direita cristã nos Estados Unidos bem no momento em que ela se voltou contra representações visuais lésbicas e gays tão importantes para esses movimentos.2

As perspectivas de coalizão parecem, de fato, fracas quando tais reivindicações amplificam fantasmas que se fortalecem à medida que circulam. As redes sociais só pioram a situação, uma vez que as acusações e denúncias disseminam-se livremente, sem responsabilização pessoal, e reputações são despedaçadas com uma facilidade surpreendente. A debacle como um todo é particularmente alarmante, dado que as campanhas contra a ideologia de gênero na direita têm como alvo tanto o feminismo como os direitos trans, mobilizando a fantasia psicossocial de que grupos feministas e pessoas trans irão “matar crianças” ou abusar delas, que desafiarão o caráter imutável da “família natural” e se desviarão das hierarquias patriarcais. À medida que o debate se intensifica,

outro ator entra em cena, aparecendo primeiro como mero ruído de fundo: o Estado amplia seus poderes regulatórios e disciplinares sobre a questão da redesignação sexual, decidindo quais instituições podem oferecer cuidados de afirmação de gênero e quais serão os termos dos cuidados ou da patologização; o Estado amplia seu controle sobre as liberdades reprodutivas, restringindo os direitos de qualquer pessoa interromper uma gravidez; a máquina de guerra aumenta e, com ela, os ideais nacionais hipermasculinistas; os serviços sociais e a social-democracia são destroçados conforme as métricas neoliberais se tornam o único determinante de valor.

Como Trump, Orbán, Meloni, o Vaticano e todos aqueles da direita que recusam a autodeterminação como base para a redesignação sexual, as feministas transexcludentes argumentam que a mudança de gênero é um exercício ilegítimo da liberdade, uma extrapolação, uma apropriação, e por isso apoiam barreiras burocráticas, psiquiátricas e médicas ao exercício desse direito. O Vaticano pensava que eram os poderes criadores de Deus que estavam sendo roubados por ativistas do gênero; as feministas transexcludentes pensam que seus próprios corpos sexuados estão sendo apropriados por atores nefastos. E, no entanto, quando tudo se acalma, seus corpos ainda estão intactos, e nada lhes foi roubado. Muitas Terfs hesitariam em se identificar com a posição do Vaticano, mas suas crenças produzem o mesmo medo e repressão.

Por um lado, as pessoas trans, em especial as mulheres, encontram no feminismo radical contemporâneo uma negação de quem são, um esforço orquestrado para apagar a existência trans. Por outro lado, as feministas transexcludentes sustentam que sua propriedade legítima, seu sexo, está sendo tomado por “falsas” mulheres. Quem está realmente sendo prejudicada aqui? Na Espanha, as Terfs sustentam que “ser mulher não é um sentimento”, procurando, com tal frase, desacreditar as mulheres trans que dizem se sentir mulheres. Essas feministas alegariam que ser mulher não é um sentimento, mas uma realidade. Para mulheres e homens trans, porém, ser mulher ou homem também é uma realidade, a realidade vivida em seus corpos. A categoria “mulher” não diz de antemão quantas pessoas podem participar da realidade que descreve nem limita de antemão as formas que essa realidade pode assumir. Na verdade, o feminismo sempre insistiu: o que é uma mulher é uma questão em aberto, uma premissa que permitiu às mulheres buscarem possibilidades que foram tradicionalmente negadas a seu sexo.

Mais importante ainda, o gênero não é simplesmente um atributo ou propriedade individual. Ninguém é dono do próprio gênero. Nascemos em gêneros mediante a atribuição de sexo e as expectativas sociais que a acompanham. Quem aceita esta afirmação como verdadeira aceita a ideia de gênero. É claro que algumas pessoas entre nós reivindicamos os gêneros que nos foram dados e, nesse sentido, nos tornamos do gênero que nos foi atribuído. Outras tentam expandir a categoria ou qualificá-la de certo modo, a fim de que ela funcione em sua vida. Outras, ainda, optam por uma designação diferente, que permite o tipo de florescimento que o gênero atribuído foracluiu. Pode-se reivindicar um gênero para si, mas este já excede inerentemente o domínio dessa pessoa. Ao dizer “sou uma mulher”, submetemo-nos a uma categoria que não foi criada por nós. No entanto, tentamos torná-la nossa ao mesmo tempo que tudo isso acontece para além da lógica da propriedade.

Notas
1 Isso é válido não apenas para o Reino Unido, mas também para o Japão.
2 Nan Hunter e Lisa Duggan, Sex Wars: Sexual Dissent and Political Cultures (Nova York, Routledge, 2006).


Intervenção essencial em uma das questões mais inflamadas da atualidade, Quem tem medo do gênero? é uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É  crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste Butler.

Em tempos sombrios, Butler nos oferece uma obra esperançosa de análise social e política. Ao abordar uma ampla variedade de temas – das feministas radicais transexcludentes ao novo populismo de direita, passando pelos ataques aos direitos reprodutivos, a dicotomia natureza/cultura, o debate sobre atletas trans e os legados colonial e racial do dimorfismo de gênero, entre outros –, o livro articula um robusto esforço emancipatório de imaginar novas possibilidades de liberdade e solidariedade.

“Só mesmo o intelecto e confiança moral deslumbrantes de Judith Butler para nos orientar no labirinto de projeções, confissões, deslocamentos e cooptações que constituem as atuais guerras travadas em torno do gênero. É o sonho de um poder masculinista autoritário ultrapassado que une as diversas frentes dessa batalha – e somente a solidariedade entre todas as pessoas que se encontram na mira do fascismo pode nos salvar. Este livro é uma intervenção profundamente urgente.”
— Naomi Klein

“A filosofia de Judith Butler desafia as normas estabelecidas, promovendo diálogos cruciais sobre identidade e igualdade. É leitura fundamental para nos ajudar a construir uma sociedade verdadeiramente emancipatória.”
— Erika Hilton

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Judith Butler é docente titular da Escola de Pós-Graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley, onde atualmente reside. Seu trabalho foi traduzido para mais de vinte e sete idiomas. Pela Boitempo publicou Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo (2017), A força da não violência (2021) e Quem tem medo do gênero? (2024).

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