Com quantos paus se faz uma canoa? Eleições, fascismo e bolsonarismo

Falar de fascismo no Brasil hoje é entender que há um movimento antidemocrático de fôlego com apoio popular. Temos que entender as razões desse apoio sem acatar as pautas impostas pelo bolsonarismo ou sucumbir à sua forma de fazer política. Assumir parte de sua agenda e seguir seus modelos é confessar que eles já venceram.

Por Bruna Della Torre

O resultado catastrófico das eleições reacendeu o debate a respeito da natureza de um movimento que se convencionou chamar de “bolsonarismo”, nome que acentua o caráter personalista de sua organização e favorece as interpretações do fenômeno enquanto uma forma de “populismo” – conceito que explica pouco e confunde muito. A prática segue a tendência estadunidense, que denominou “trumpismo” o movimento da ascensão da extrema-direita no país. Essa prática “isola” o que está acontecendo no Brasil de outros fenômenos históricos similares e favorece a investigação personalista da política (imagine se usássemos hitlerismo para caracterizar o nazismo?). Alguns analistas também falam em “autoritarismo” para pensar a capilarização do processo de escalada da extrema-direita. Mas a mobilização do conceito de autoritarismo sem seu horizonte pressuposto – o fascismo – também explica pouco e corre o risco de recair num liberalismo ingênuo. Salvo raras exceções, evita-se a todo custo a palavra “fascismo”. De um lado, pois os eleitores de Bolsonaro são heterogêneos e muitos são apoiadores de ocasião ou eleitores pouco convictos. De outro, pois designar esse eleitorado como fascista prejudicaria, segundo alguns analistas, o diálogo com essas pessoas.

Essa recusa em chamar o bolsonarismo de fascismo parece incorrer em duas confusões.

A primeira diz respeito a uma questão política. Dialogar com eleitores de Bolsonaro é necessário e ser capaz de se identificar com eles e compreender seus motivos é uma tarefa política urgente – principalmente no que se refere àqueles que são menos convictos de suas posições. No entanto, a própria dificuldade de se conversar com essas pessoas indica que já não estamos num ambiente político democrático e é preciso explicar como isso ocorreu. A dificuldade de conversar com o eleitor bolsonarista precede a designação generalizada desse fenômeno e dessas pessoas como fascistas e, portanto, não consiste numa razão para abdicar do termo.

Já nas eleições de 2018 era possível reconhecer esse elemento. Não importava o que se dissesse, não tinha conversa quando o assunto era a famigerada “mamadeira de piroca” ou a “cartilha gay”. A verdade e as evidências científicas já haviam perdido seu poder performativo. Também não houve carinho e afeto (como muitos defenderam à época e continuam defendendo) que dessem conta de convencer parentes, vizinhos e colegas bolsonaristas a renunciar a seu candidato. Boa parte do país não quer amor. Hoje, 700 mil mortos depois, dependendo de onde e com quem debater, corre-se o risco efetivo de tomar um tiro. Apoiadores do Partido dos Trabalhadores estão morrendo país afora devido a suas posições. Nunca, a não ser nas ditaduras, as pessoas temeram por suas vidas no Brasil por votar em um partido de centro-esquerda ou usar uma camiseta em seu apoio.

No cerne do problema do “bolsonarismo enquanto fascismo” reside justamente a dificuldade em separar política de teoria, análise sociológica de estratégia eleitoral. Se é necessário conversar com o eleitor bolsonarista, especialmente aquele de ocasião, também é necessário ter uma perspectiva teórica mais complexa para decifrar o bolsonarismo como fenômeno social mais amplo. E é aí que surge o segundo problema. Um dos argumentos mais recorrentes para combater a designação do bolsonarismo como fascismo é a de que a maior parte dos apoiadores de Bolsonaro não é “fascista de verdade”, ou seja, não adere in toto ao projeto bolsonarista e muitas vezes vota “sem convicção” e “na última hora”. Esse posicionamento teórico, em geral, apoia-se tanto em dados eleitorais publicados por institutos de pesquisa que seguem diferentes métodos de investigação (e que estão sujeitos ao erro e só são criminalizados por isso em países não democráticos), quanto em pesquisas qualitativas com eleitores de Bolsonaro feitas nas ciências sociais. Mas como identificar um fascista? O que é ser fascista de verdade? Quantos fascistas “de verdade” são necessários para compor um movimento fascista? O fascismo depende de fascistas “de verdade” para se tornar um movimento de massas?

A primeira coisa a se levar em consideração é que todas as democracias burguesas abrigam uma “franja lunática”, disposta a qualquer coisa. Mas o fascismo torna-se fascismo apenas quando se organiza como movimento de massas e transforma a “franja lunática” em maioria – ou minoria apoiada pela maioria. E, ao contrário do que reza a cartilha metodológica tradicional em ciências sociais, um movimento fascista não é igual à soma dos indivíduos que o compõem. O que se chama erroneamente de “bolha bolsonarista” – que muitas vezes leva esse nome por ser um movimento fechado e autorreferido e insuflado pela internet – engloba mais de 50 milhões de pessoas. Ou seja, é um movimento de massas, especialmente se considerarmos o primeiro turno (tanto de 2022, quanto de 2018), que ofereceu em seu cardápio eleitoral outros candidatos da direita mais moderada e ainda assim evidenciou o apoio massivo que Bolsonaro e seu projeto têm no corpo social.

De acordo com a pesquisa realizada pelo Datafolha publicada em 19 de agosto de 2022, dois meses atrás, 75% dos entrevistados são a favor da democracia e apenas 7% apoiam o regime militar no Brasil. O apoio nominal à democracia nunca foi tão alto desde 1989. Ainda assim, Bolsonaro, que elogia a tortura e passou quatro anos ameaçando fechar o STF e dar um golpe militar, obteve – vale ressaltar mais uma vez, no primeiro turno das eleições desse ano – mais de 43% dos votos válidos. Há uma incongruência nos resultados das pesquisas (as de opinião, mas também as realizadas por cientistas sociais) que tem a ver com a sua dificuldade de captar as tendências antidemocráticas de uma parte significativa do país. Não esperemos por escrito o predicado da expressão “eu autorizo” para compreender o que está em jogo. Precisamos refinar nossos métodos para captar esse tipo de elemento.

Se olharmos retrospectivamente, esse problema já estava posto nas análises marxistas clássicas do fascismo. As pesquisas conduzidas pelo Instituto de Pesquisa Social na Europa e nos Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940 mostraram que o antissemitismo, que estava na base da ideologia nazista, tinha uma estrutura ampla e dizia respeito a uma disposição para a violência que se diferenciava bastante de um comportamento político-econômico conservador. A “Escala-F”, criada a partir de uma combinação específica de pesquisas quantitativas e qualitativas, visava justamente a apreender essa especificidade do comportamento fascista. Uma das coisas que os pesquisadores notaram foi que não era possível encontrar uma adesão irrestrita e manifesta à ideologia nazista por meio de entrevistas que seguiam métodos tradicionais em ciências sociais (que se aproximam das pesquisas de mercado). A pessoa que vota num líder de extrema direita nem sempre tem o mesmo discurso que seu candidato; frequentemente, ela vota nesse candidato porque ele tem coragem de expressar coisas que ela mesma não diz em público ou numa entrevista em profundidade.

Uma análise que almeja identificar as tendências fascistas de um eleitor deve ir além da análise conteudista de sua fala. Os cientistas sociais precisam aprender com os críticos literários a desconfiar de seus narradores. Para isso, é preciso desafiar o que hoje é um dos maiores interditos das ciências sociais e ir ao subterrâneo da linguagem dos eleitores bolsonaristas. A Escala-F frankfurtiana oferece um bom modelo metodológico para isso, ao inserir em sua análise sociológica o elemento psicanalítico (com a tentativa de captar o elemento inconsciente na própria linguagem). Assim como o agitador fascista trabalha com a sugestão e nunca diz plenamente aquilo que quer dizer, o receptor do discurso fascista, na maioria das vezes, também não entrega de bandeja a sua adesão a determinado movimento, especialmente em situações em que (ainda) não se saiu (inteiramente) da democracia. Pressupor que o fascismo é um movimento homogêneo e que seus apoiadores correspondem ao “tipo ideal” do fascista, para utilizar um conceito insuspeito, é desconhecer a sua história e, mais que isso, ignorar teorias que buscaram dar conta desse problema e escapar à visão do fascismo como uma situação de exceção.

A Escola de Frankfurt sustentava, ainda, outra tese que nos interessa. Em seu prefácio aos “Estudos sobre preconceito”, Max Horkheimer afirmava que, numa sociedade de capitalismo avançado, o consumo é determinado pela produção – o que valeria também para as “ideologias”. Por isso, não seria suficiente estudar as pessoas atingidas por uma ideologia fascista, pois seu comportamento reativo é em grande parte, ele próprio, produzido industrialmente. Conforme argumentei antes, a indústria cultural digital, atualmente, organiza a sociedade fazendo as vezes de um partido fascista de massas. Ela expropria as pessoas de sua subjetividade e produz um comportamento automático e irrefletido. A grande distopia da era tecnológica não assume a forma de uma luta de pessoas contra uma inteligência artificial autonomizada que toma conta do mundo, mas de uma fusão entre pessoas e robôs. Como “exterminadores do futuro”, os receptores da propaganda bolsonarista ecoam o maquinário capitalista e têm orgulho disso. Nas manifestações bolsonaristas, as pessoas se vestem de “bots do carluxo”. Nas redes sociais, inúmeros apoiadores gravam vídeos nos quais respondem à acusação “de que são gado de Bolsonaro”. Sua resposta: sair correndo em direção ao “mito” ao som de um berrante. Nada de “contrapúblico”. A não ser que tomemos a máxima adorniana: defender o público contra os interesses do público. O argumento de Horkheimer, portanto, aponta para a necessidade de analisar não só o discurso fascista, mas a natureza de seus estímulos em sua emissão, ou seja, por meio de sua propaganda.

O apelo de alguém como Damares Alves, por exemplo, não pode ser compreendido sem isso. Sua propaganda estimula uma série de ponto sensíveis que compõem a Escala-F, como a projetividade, a preocupação exagerada com sexo e a agressividade autoritária dirigida àqueles que apresentam comportamento sexual desviante. A sua luta contra a pedofilia, cerne de sua militância, situa-a num nível perigosamente próximo da fantasia sexual. O mesmo se passa com a “cartilha sexual”. Na última semana, Flávio Bolsonaro publicou um vídeo em seu Instagram com a “cartilha”: enquanto um narrador descreve os horrores que a esquerda deseja impor se ganhar as eleições, filma-se um livro infantil com a figura de uma menina e de um menino, ambos com um furo real entre as pernas (um em cada página), nos quais o “leitor do livro” coloca o dedo e junta as páginas, simulando o ato de penetração sexual repetidamente. A música de fundo é uma mistura de terror e suspense. O bolsonarismo oferece aos seus eleitores, entre outras coisas, uma gratificação sexual que está ligada à liberação de fantasias proibidas. O mesmo procedimento concerne à violência. Aliás, a relação entre violência e sexualidade na extrema direita brasileira vem de longe se levarmos em consideração o tipo de tortura de cunho sexual que praticavam carrascos como Brilhante Ustra – de resto, homens de família bem ajustados à ordem burguesa.

Não é diferente com a religião. As falas de Michelle Bolsonaro unem a defesa da família e da igreja com uma guerra espiritual e associam “os comunistas” ao anticristo, assim como o nacional-socialismo havia feito com os judeus, pervertendo a natureza universalista do cristianismo e igualando pentecostalismo à “brasilidade”. É evidente, no discurso da primeira-dama, que a religião é mobilizada para criar bodes expiatórios em um processo catártico de liberação de agressividade (e de transformação da luta de classes em conflito social generalizado). Bolsonaro utilizou, em muitos eventos públicos dos quais participou, um bracelete com a inscrição “Apocalipse 12:11”, que corresponde à seguinte passagem da Bíblia: “Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram; diante da morte, não amaram a própria vida. Portanto, celebrem-no, ó céus, e os que neles habitam! Mas ai da terra e do mar, pois o Diabo desceu até vocês! Ele está cheio de fúria, pois sabe que lhe resta pouco tempo”. Bolsonaro evoca o apocalipse não só para instigar o medo (e o prazer) do colapso, que em grande parte é real, mas para apontar a si mesmo como detentor da chave do novo reino. Conforme defendi em outra coluna aqui, o discurso a favor das armas tem a mesma função. A defesa da arma, como “última garantia de uma sociedade de iguais”, não apela somente a quem pode comprar essa mercadoria, mas majoritariamente a quem não pode.

É preciso entender que a defesa da família, da religião, da moralidade nada tem a ver com essas coisas em si. Vale ressaltar, novamente, como a mensagem fascista é aquela que se transmite no subterrâneo da linguagem. É de conhecimento público que o presidente que defende a família tinha um apartamento pago com dinheiro público para “comer gente”. Em 2000, emancipou o filho de 17 anos, Carlos Bolsonaro, para que concorresse contra a sua própria mãe, ex-esposa de Jair Bolsonaro, para a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Seu elogio da honestidade anda lado a lado com o conhecimento público e notório de sua prática da “rachadinha” (vulgo formação de quadrilha). Seus eleitores não votam nele porque desconhecem esses fatos. Como Trump, Bolsonaro está longe de ser um homem de família, uma pessoa honesta e um frequentador assíduo da igreja e, ao mesmo tempo, ele é exatamente o que significa ser “um pai de família”, “um político honesto” e um “cristão” no Brasil. O que sua propaganda vende nada a tem a ver com o conteúdo dos valores que ela diz expressamente defender.

Não adianta que os setores democráticos defendam deus e queiram ser mais cristãos que o papa, mais “família” que a sagrada família. Empurrar a esquerda para uma posição de defensora da ordem (da família, da religião, da mídia golpista, do judiciário espúrio, da estetização da política) é uma tática histórica do fascismo. Seu “duplipensamento” e sua exploração das contradições sociais até o ponto em que elas não são mais sentidas como tais são característicos desse fenômeno. Para combatê-lo, é preciso compreender que, nele, a defesa da religião, da família e cia. tem outra função. Isso não significa psicologizar o fascismo, mas entender sociologicamente quais são as armas psicológicas do fascismo e como elas atingem aqueles que se tornaram receptivos a elas por razões sociológicas.

Como marxistas e socialistas, temos o dever político e teórico de reconhecer o fascismo quando ele se apresenta como possibilidade real. Chamar o fascismo por outro nome não vai mudar a realidade que estamos enfrentando. Falar de fascismo no Brasil hoje é entender que há um movimento antidemocrático de fôlego com apoio popular. Temos que entender as razões desse apoio sem acatar as pautas impostas pelo bolsonarismo ou sucumbir à sua forma de fazer política. Assumir parte de sua agenda e seguir seus modelos é confessar que eles já venceram.


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Bruna Della Torre é pesquisadora do Centro Käte Hamburger para estudos apocalípticos e pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg e pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp (bolsista Fapesp), onde estuda teoria crítica, indústria cultural e agitação fascista no Brasil. Editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia, ambos com apoio da Capes, e mestrado em Antropologia com apoio da Fapesp, todos na Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, foi pesquisadora visitante na universidade Goethe, na Alemanha, com apoio do DAAD, e na universidade Duke, nos Estados Unidos, com apoio da Capes. Durante o pós-doutorado, realizou um estágio de pesquisa na universidade Humboldt e no arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno na Akademie der Künste em Berlim com apoio do DAAD. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente.

1 comentário em Com quantos paus se faz uma canoa? Eleições, fascismo e bolsonarismo

  1. Lucas F. Nascimento // 01/11/2022 às 11:54 am // Responder

    Maravilhoso texto. No fim, conhecer a história e entender como funciona a manipulação social é chave para superarmos essa crise instalada no Brasil e no mundo.

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