Redes e classes sociais: frentes de guerra muito além da Ucrânia

O foco dos embates políticos democráticos e anti-imperialistas deverá incidir na mobilização das classes populares. É bastante provável que, neste processo, se construam novas formas de apropriação de redes que realmente sejam de indignação, de lutas e esperanças indispensáveis à transformação social.

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida

A crise “da Ucrânia” tem características originais e importantíssimas em relação aos últimos 85 anos, ou seja, desde o encerramento da Segunda Guerra Mundial. Perto dela, a “dos mísseis”, em 1962, foi um mal-entendido.

É a primeira vez, desde 1945, que um conflito de tamanha magnitude ocorre no continente europeu e envolve diretamente a maior parte das potências imperialistas, mas, até agora, de modo diferenciado. Com exceção da Rússia (um país capitalista), elas recorrem, de novo, até agora, a todos os seus meios de confrontação, exceto – durma-se! – o militar direto.

Penúltima novidade: até hoje é a primeira vez que um país “oriental”, a China, constitui-se objetivamente como árbitro de conflitos que envolvem todas as potências mundiais, com direito à costumeira distribuição desigual de pitos para que todos se comportem. Paz ou guerra do fim do mundo depende principalmente da China.

A última novidade é o discreto regresso de uma velha conhecida: a crise da democracia liberal nas ditas sociedades avançadas. Sobre ela farei algumas observações neste artigo.

Metamorfoses do total

Foi só a Primeira Guerra Mundial (a “guerra total”) acabar e surgiu a expressão “totalitarismo”. Sempre associada a “estado forte”, teve, desde então, sentido pejorativo, exceto para o fascismo italiano e, em curtíssimo período, o alemão, sob a influência de Carl Schmitt. Deixo Gramsci de fora, pois, também aqui, ocupa um lugar muito especial.

Durante a Guerra Fria, marxistas contrários aos rumos seguidos pela URRS continuaram com  o tema, mas este foi crescentemente assumido a partir de perspectivas influenciadas pelo liberalismo, com ênfase nas relações entre um estado onipresente e classes sociais pulverizadas, inclusive a burguesia, derrotada pela “ralé”; nas massas amorfas, incapazes de iniciativa política minimamente coordenada; em uma sociedade que, desprovida de instâncias intermediárias (partidos, imprensa, parlamento, redes de sociabilidade), torna-se inerte, com os indivíduos à mercê das investidas do estado sobre todas as esferas de vida.

Totalitarismo foi atribuído à URSS e a movimentos e governos que, ao tentarem articular lutas de libertação nacional e pela transição ao socialismo, entravam em rota de colisão com os Estados Unidos da América, já consolidados como a grande potência do mundo imperialista ou “Ocidental”.

No pós-Guerra Fria, o recurso político a “totalitarismo” desandou de vez. Cuba, desde 1959-62, é membro permanente do clube; Arábia Saudita, Emirados Árabes, por mais que se esforcem, não conseguem ingressar; a Colômbia é um caso à parte: campeã latino-americana de chacinas estatais e paraestatais, não sabe se chama a milícia ou vai ao tapetão; e a Venezuela, desde a recente interdição do gasoduto Nord Stream II, arrisca ser expulsa do seleto clube dos países totalitários. E, logo mais, Copa do Mundo no Catar: antessala do paraíso ou prenúncio de um destino sombrio para a humanidade?

 A (re)produção do Ocidente

Permanece, desde o ataque russo, a defasagem entre a cautela militar das potências imperialistas e sua extraordinária ofensiva ideológica. Estranha guerra: quem não combate não quer parar. Inclusive quem não combate e compromete a existência do povo que governa. Os que querem mudar o mundo, embora saibam das diferenças de objetivos de cada litigante, também atentam para o crescente risco de uma barbárie sem volta.

Tantas críticas ao eurocentrismo e volta, com a rapidez de um zap, esta construção ideológica, “Ocidente”, agora em modo expandido.

Abrem-se as portas da felicidade e nós, meros “latino-americanos”, “japoneses” e parte crescente dos “eslavos”, somos interpelados como membros da comunidade. Pobre do Samuel Huntington que até desenhou um mapa mundi com nove cores para explicar direitinho que a civilização ocidental, era uma coisa e, expressão dele, “o resto” era quase todo o planeta. Inclusive nós, o ministro e as empregadas que, segundo ele, faziam farra na Disney.

Agora os meios de comunicações tradicionais, em gigantesca unanimidade, partem para a defesa de um imenso “Ocidente” apresentado como uma entidade homogênea e harmônica. E, no lado oposto, um indivíduo – Putin! – cujos desígnios maléficos que só ele conhece podem acabar com o mundo. Até o Žižek, quem diria, defendeu, com argumentos sofríveis, o apoio ao “Ocidente” (Eslovênia inclusa) na luta contra… o Putin!

Pulo os importantes estudos sobre a dissolução da esfera pública (burguesa) e/ou a transformação do público em massa. Adoto a hipótese de que uma trilha desse processo de infantilização partiu da política institucional estadunidense e penetrou, de modo desigual, no ocidente europeu no fim dos anos 1970. Chegou atrasada ao Brasil, onde se consolidou a partir da campanha eleitoral de Fernando Collor. Quando os movimentos e partidos populares e proletários davam sinais de esgotamento na Europa, aqui, no apagar dos anos de 1970 e ao longo da “década perdida”, ocorreu um forte avanço dessas lutas, inclusive no plano político.

Aqui como lá, o avanço exponencial das novas tecnologias de informação se inseriu em relações marcadas por uma profunda atomização das classes populares, especialmente do proletariado, aspecto que não tem como ser revertido apenas (ou principalmente) no espaço das chamadas redes sociais. Redes de inegável importância para a retomada das lutas, mas, no fundamental, subsumidas pelo processo de reprodução das relações sociais capitalistas em tempos neoliberais.

Mais uma vez, o determinante fundamental não é tecnológico, mas sociopolítico, o que se explicita nas interações dos velhos com os novos meios. Jornais impressos, que já eram antigos quando atuaram nos golpes 1954 e 1964, saíram-se muito bem ao circularem pelos youtubes, whattsapps e afins durante o golpe de 2016. Em nome da liberdade e contra a tirania estatal.

Mesmo distante dessa problemática e incapaz de usar direito um simples Windows 10, percebo uma extraordinária competência e criatividade em inúmeras pessoas que usam plataformas e redes, inclusive para a produção de conhecimentos novos. Serão indispensáveis para novas formas de luta democrática, popular e proletária, o que não implica fundamentalidade. Porém, não percebo que “apenas” isso necessariamente transforme seus usuários em contestadores das relações de exploração e dominação capitalistas. As “novas redes” e suas plataformas são ou integram aparelhos ideológicos, isto é, de (re)produção de práticas sociais, predominantemente (não só) da ordem. Ao ouvir, pela vigésima vez, um competente especialista me dizer para reiniciar a máquina, argumentei que somos nós os “reiniciados”.

Integrantes do que diversos autores chamam de precariado, na situação de desidratados, famintas, superexploradas, terceirizadas, monitoradas, exaustos… ou seja, com terríveis obstáculos para se articularem politicamente… podem até usar, na ida, na volta e na cama, seus dispositivos de penúltima geração. Mas segue muito difícil tomar pé dos nexos entre a “guerra da Ucrânia” e a inserção de trabalhadores nas teias de opressão e exploração que se estendem nos planos municipal, nacional e internacional. Em qual horário discutem, envolvidos em lutas coletivas, os sentidos de “Ocidente”, “democracia”, “liberdade”, “estado”, “exploração de classe” e “poder político” e como atuarem politicamente em relação a tudo isso?

Impossível? Não creio. Experiências desse tipo foram vividas neste país, por exemplo, no final dos anos 1970 durante aquela “década perdida”. Assisti, em cubículos ou igrejas da Zona Sul de São Paulo, a inúmeras análises de conjuntura feitas por jovens trabalhadores e trabalhadoras, não poucas vezes sem o primário completo. Na sequência, em acampamentos e universidades, junto a jovens e idosos do MST, semianalfabetos ou mestrandas (hoje doutoras), em grande parte acampados (e mulheres sem querer assentar para não voltarem a lavar cueca de macho). Demonstravam impressionante capacidade de liderança e – de novo – faziam ótimas análises de conjuntura. Marchando por esse país, chegaram até Brasília e impuseram a primeira derrota ao neoliberalismo.

Sem qualquer determinismo tecnológico, menos ainda unicausal, note-se que a extraordinária difusão das novas redes “sociais” nas duas primeiras décadas do século XXI correu paralela à desmontagem e enfraquecimento das lutas contra a dominação capital-imperialista (alô, Virgínia Fontes!). Celular sem lutar também dá rima (rica). Só que, de novo, sem solução.

A análise do atual processo de (re)produção do “Ocidente” talvez proporcione um reexame das teses sobre a sociedade civil como espaço de liberdade contra a tirania do estado. Jogarei alguns sinais em estado bruto.

Estado e sociedade, tudo junto e estruturado

Esse processo é impulsionado por forte atuação estatal-nacional e/ou supraestatal-nacional. Por exemplo, a iniciativa de interdição dos canais RT (Russia Today), e Sputnik, ambos financiados pelo Estado russo, foi iniciativa do Estado alemão e, em seguida, do francês. O Reino Unido e os EUA fizeram o mesmo. Claro, diria o otimista, isso é coisa dessas instituições jurássicas que se recusam a sair de cena.

O problema é que o chumbo mais grosso partiu da avançadíssima União Europeia e, num único disparo, atingiu todos os 27 países-membros. Em 01 de março de 2022, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pronunciou um discurso do qual seleciono um trecho de fazer inveja a ditaduras militares: “suspendemos as licenças em favor da máquina de propaganda do Kremlin. Today e Sputnik, mídias pertencentes ao Estado russo, assim como todas as suas filiais, não mais poderão difundir suas mentiras para justificar a guerra conduzida por Putin e para dividir nossa União”.

A dirigente do que muitos consideram uma “comunidade supranacional” não apresentou qualquer átomo de referência factual que fundamentasse a vulgar saraivada de xingamentos. Talvez pouco importe, mas, habitual videoespectador da RTFrance, considero sua programação de qualidade superior à de outros canais que costumo assistir. E muito melhor, também em objetividade das informações, do que as principais TVs que operam no Brasil. Mas, diria o incurável otimista, sempre se pode argumentar que existe algo de estatal na direção da União Europeia e que o mais importante está nas organizações da sociedade civil.

O problema é a extrema dificuldade, especialmente no capitalismo monopolista, de traçar a linha que separa todos os nichos do aparelho estatal das ações dos conglomerados capitalistas, sem falar nos representantes políticos stricto sensu da classe dominante. No que se refere às chamadas redes sociais, a novidade está no formidável estreitamento desses vínculos.

Os nós das “redes”

Os canais da RT eram transmitidos por meio de plataformas como o Facebook (3 bilhões de usuários), o YouTube (mais de um bilhão) e o Instagram (mais de dois), que operam em grande parte do planeta.

Mas eu, brasileiro em forte crise de identidade (latino-americano ou ocidental?), não posso assistir aos canais RT (ainda bem que existem a Globo e a CNN!). Pior: impediram meu contato, também via RT, com o importantíssimo Ahí Les Va!, canal de comentários sociopolíticos e culturais apresentado brilhantemente por Ina Afinogenova em espanhol perfeito e que já ultrapassou um milhão de assinantes (sou um deles). Para mim, é, de longe, o melhor programa relacionado principalmente com a América Latina e sua inserção no sistema internacional.1 Também neste caso, nada comparável descobri na Globo e na CNN ou qualquer uma rede de TV que represente os interesses do imperialismo estadunidense e da classe dominante brasileira, historicamente submissa a ele.

Mais problemas: essas proibições não foram decididas por qualquer aparato de representação política (com ou sem democracia liberal), mas por empresas privadas, cujos principais dirigentes se apresentam como novos magos do capitalismo.

Socorro, Milton e Rose (Friedman)! Cadê minha liberdade de escolher?

Com que direito o Zuckerberg resolve o que o povo brasileiro e gigantesca parcela da humanidade podem assistir? Que interesses universais esse moço virtuoso representa e quem lhe atribuiu a árdua missão? Haverá alguma proximidade entre ela e a voltada para a feroz acumulação de capital em circuitos de vertiginosa financeirização? Nada a ver com o estado que mais intervenções militares faz em todo o planeta, dentro e fora do “Ocidente”? Já que o abnegado rapaz é tão cioso da soberania da Ucrânia sobre a Criméia, por que jamais se pronunciou sobre a secular ocupação de um pedaço de Cuba, a Baía de Guantánamo?

Tem mais. A empresa Meta, proprietária do Facebook, Instagran, Whatsapp e similares, chegou a permitir que os dois primeiros postassem conclamações a favor do assassinato dos governantes Putin (Rússia) e Alexander Lukashenko (Belarus). Quer dizer que pode julgar, condenar e incentivar a execução? Só falta a milícia?

Alguns diriam que nem tanto, pois consta no mesmo artigo, também baseado na agência Reuters, que o Facebook permitiu postagens elogiosas ao regimento Azov, um grupo paramilitar nazista.

Independentemente do caráter eventual desta ou daquela prática específica, o que merece atenção é a tendência determinada pelas relações que as tornaram factíveis.

Agora sim, totalitarismo?

Sem dúvida, a questão é importante e cabe aos que apostam na fecundidade do conceito atualizar suas possiblidades explicativas. O mesmo se aplica aos que veem nestas “redes sociais” espaços de liberdade, de revitalização da sociedade civil que a tornam capaz de resistir e mesmo tomar iniciativas contra a tirania estatal. Esses aparelhos ideológicos, enquanto dispositivos de dominação, não contribuem para a paz entre as nações e sim para o prosseguimento da pacificação política dos dominados e dominadas, o que reitera a desarticulação destes como classe.

Se isso faz algum sentido, a se manterem correlações de forças crescentemente desfavoráveis aos trabalhadores, não valerá a pena apostar no caráter intrinsecamente emancipatório das redes “sociais”.

Ao contrário, sem abrir mão de trabalhar com elas, o foco dos embates políticos democráticos e anti-imperialistas deverá incidir na mobilização das classes populares. É bastante provável que, neste processo, se construam novas formas de apropriação de redes que realmente sejam de indignação, de lutas e esperanças indispensáveis à transformação social.

Publicado originalmente no blog A Terra é Redonda.


Notas
1 Para uma explicação de como assistir aos programas de RT, inclusive o canal Ahi Les Va!, consultar, entre outros, o Portal do André Nunes.

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Para saber mais sobre o tema da guerra

Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império, de Mike Davis
Para entender as transformações ocorridas após a derrubada das torres do World Trade Center em relação à política interna e externa dos Estados Unidos através das análises de um crítico ferrenho do imperialismo norte-americano. Apologia dos bárbaros se propõe a celebrar a contranarrativa dos que não pertencem à autoproclamada “civilização” hegemônica (os quais, portanto, inserem-se automaticamente na categoria amorfa da barbárie).

O império do capital, de Ellen Meiksins Wood
Mas o que afinal pode significar imperialismo na ausência de conquista colonial e dominação imperial direta? Desmanchando consensos, Ellen Meiskins Wood apresenta neste livro uma das mais respeitadas análises do imperialismo norte-americano, para ela, um fenômeno absolutamente inédito na história mundial. O livro investiga o novo imperialismo contra o fundo contrastante das formas mais antigas, desde a Roma antiga, passando pela Europa medieval, o mundo árabe maometano, as conquistas espanholas e o império comercial holandês. 

Confira a nossa seleção de livros para entender a guerra na Ucrânia.

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Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida é professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.

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