Três notas sobre a ação dos comunistas nas ruas e no movimento de massas

Jones Manoel analisa o sucesso das manifestações recentes contra Bolsonaro e discute os próximos passos e desafios dos comunistas diante da conjuntura atual.

Foto de Amanda Perobelli (Reuters)

Por Jones Manoel.

O objetivo deste artigo é refletir sobre as tarefas imediatas e a situação dos comunistas nos atos de rua e movimento de massas. Essa reflexão começa com algo fundamental: como e por que voltaram os atos de rua no Brasil?

Como sabemos, a pandemia restringe a capacidade de ações de rua em razão da necessidade de se evitar aglomerações. Em 2020, tivemos tentativas de atos de rua, como a ação das torcidas antifascistas, protestos antirracistas e algumas ações de juventude contra os cortes na educação. De maneira geral, contudo, o consenso implícito nas esquerdas foi de esperar o avanço da vacinação para retomar protestos e ações de massa.

Duas questões demoliram esse consenso. Primeiro, vivemos provavelmente o pior governo do mundo no trato da pandemia. Dificilmente outro governo burguês, como o projeto liberal-fascista liderado por Jair Bolsonaro, conseguiu transformar tão bem a covid-19 numa arma de guerra contra a classe trabalhadora. A vacinação não avança, o isolamento social foi sabotado, o SUS não foi fortalecido, faltam insumos básicos, os profissionais de saúde estão esgotados, o auxílio emergencial de R$600 não foi renovado para 2021 etc.

No final de 2020, era nutrida a esperança de que os governadores, à revelia do Governo Federal, iriam conseguir efetuar a vacinação. Teve destaque nessa esperança o Consócio Nordeste, mas rapidamente ficaram claros os limites de ação institucional dos governos estaduais. Objetivamente, se as forças política continuarem como estão e com o fim desse governo somente em janeiro de 2023 (em caso de perda das eleições), podemos ter mais de 2 milhões de mortes em números oficiais.

Ficar em casa e esperar a vacinação avançar deixou de ter qualquer lastro na realidade. Aliado a isso, passamos todo o ano de 2020 recebendo notícias de protestos dos nossos vizinhos na América do Sul. Equador, Chile, Bolívia e Peru tiveram protestos de massa e grandes ações populares. Vivendo uma situação “menos pior” que a nossa, o povo trabalhador dos países vizinhos saiu às ruas em massa. Em 2021, também tivemos grandes protestos no Paraguai e, fora da América do Sul, em países como o Haiti.

Seria difícil que as esquerdas brasileiras sustentassem o “fique em casa” e ignorassem a tendência continental. O Chile em especial, depois de longos protestos de massa e o acirramento da luta de classes, vive um novo processo constituinte que promete, no melhor dos cenários, enterrar o legado institucional do pinochetismo. Como ficar em casa e esperar diante do exemplo dos vizinhos? Indo além, como “ficar em casa” se afirmamos haver um genocídio em curso?

É contraditório, e cínico, dizer que há um genocídio em curso e afirmar que devemos esperar até a eleição de 2022. Um genocídio, por definição, leva à resistência por qualquer meio necessário! Foi nesse clima que já no final de abril, várias vozes na esquerda brasileira começaram a clamar pela volta dos atos de rua.

O dia 29 de maio marcou nacionalmente esse retorno. O 29M, como ficou apelidado, foi largamente boicotado por amplos setores das esquerdas. Presidenciáveis, como Lula, ficaram em silêncio; outros, como Ciro Gomes, adotaram uma postura ambígua (“não recomendo ir, mas não condeno quem for”); outros parlamentares, governadores e lideranças políticas fingiram que nada acontecia. Não poucos intelectuais, jornalistas e formadores de opinião nas esquerdas condenaram publicamente os atos.

PT, PCdoB, PDT e parte do PSOL, no melhor dos cenários, jogaram pouco peso nesse primeiro ato. Bases do PT e PSOL chegaram a anunciar publicamente que não iriam – como foi o caso em Recife, do PT-PE e PSOL-PE, que indicaram na véspera que não participariam. O vice-presidente nacional do PT, Washington Quaquá, publicou um artigo no jornal O Dia, poucos dias antes, afirmando que as manifestações do dia 29M seriam iguais aos atos bolsonaristas.

A despeito disso, os atos do 29M foram um sucesso. Aconteceram em várias cidades, com amplo público e levaram milhares de pessoas às ruas. Depois desses atos, dois fenômenos imediatos se colocaram na conjuntura.

Primeiro, circulava com muita força um desânimo, uma sensação de derrota e uma espera resignada por 2022. O 29M reascendeu as esperanças, a coragem, a vontade de vencer e a determinação. Para milhares, o mote deixou de ser “que 2022 chegue logo” e passou a ser “não podemos esperar até 2022”. Era claríssimo, para quem conseguiu captar bem o clima das ruas, que a volta dos atos de rua tinha chegado para ficar.

O segundo elemento foi o destaque das forças comunistas – em particular o PCR (Partido Comunista Revolucionário) e seu braço legal, a UP (Unidade Popular pelo Socialismo), e o PCB. Em várias cidades, os blocos do PCB e da UP estiveram entre os três maiores e, em alguns locais, especialmente o PCB chegou a ser o maior bloco. Muitos se surpreenderam com a força dos comunistas nas manifestações.

Passamos quase dois anos sem atos de rua. Para muitos, foi surpreende o tamanho, a organização e a capacidade de intervenção política dos blocos comunistas. Aliado a isso, o clima nas ruas era outro se comparado com o período 2013-2017. Não tivemos hostilidade a partidos, bandeiras vermelhas ou símbolos comunistas. Ao contrário, os cantos e palavras de ordem comunistas – como o “lutar, criar, poder popular” – ecoaram de norte a sul com bastante respaldo das massas.

A partir dessa constatação era claro que as forças políticas que boicotaram, ou não jogaram peso no 29M, iriam para as ruas disputar os rumos dos atos. No 19 de junho, a presença de PT, PCdoB, PDT e as tendências do PSOL que não compareceram massivamente no 29M ainda foi pequena, se comparado com suas capacidades de ação. Dessa data em diante, porém, e em especial no recente 29J, essas forças foram em peso para as ruas e até se estabeleceu uma disputa aberta pela liderança dos atos – expressa na polêmica sobre quem determina a data do próximo ato, polarizando de um lado o PCR/UP com seu avatar “Povo na rua” e o petismo, levando a reboque o PSOL e forças aliadas.

O ato do 24J foi o maior até agora, tanto em número de pessoas quanto de cidades participantes. Esse sucesso é a expressão de uma tendência ainda dominante: a ascensão dos atos de rua, que continua em marcha de crescimento. É nesse momento conjuntural que temos que pensar os próximos passos e uma consequente política comunista. Seguem três notas sobre como estamos pensando os desafios desse momento.

Social-liberalismo, socialdemocracia e as ruas

É inequívoco que as forças da socialdemocracia e do social-liberalismo não vão mais boicotar os atos de rua. A lógica agora é dirigir os atos, levar a situação “em banho maria” e manter as ruas só como um fator de desgaste do governo Bolsonaro. A lógica de atos espaçados – em média, um mês entre um ato e outro – sempre aos sábados, sem apontar nenhum indicativo de greve geral e ações diretas de massas, visa manter os protestos como um cenário político com alguma influência eleitoral, mas sem radicalizar as lutas e encaminhar para um confronto aberto com tudo que o bolsonarismo representa – incluso o Partido Fardado.

A unidade, sem dúvidas, é um valor importante. No entanto, seguir a reboque dessa estratégia centrista, apaziguadora e acima de tudo eleitoral, é capitulação. Na Campanha Nacional Fora Bolsonaro, uma unidade política entre petismo e o PSOL decide a linha política. Afirmar que, infelizmente, “queríamos fazer diferente, mas a maioria das organizações da campanha Fora Bolsonaro decidiram isso” é o mesmo que dizer: “a contragosto, vamos seguir a política do petismo, mas somos contra” – é funcionar, na prática, como a consciência “crítica” do petismo.

Se amplos setores do PSOL estão conformados e felizes com o lugar de ala esquerda do petismo, como os trotskistas da Resistência, não cabe aos comunistas esse lugar. É preciso debater abertamente as formas de tencionar esse campo centrista, forçá-lo a ações mais ousadas, colocar a pressão das massas para essas lideranças.

Como tudo na política, é mais fácil falar do que concretizar. Indiscutivelmente, o campo centrista é hoje aquele com maior base popular, expressão eleitoral, e que tem Lula como a figura que hoje, para 2022, personifica o antibolsonarismo. Não é pouca coisa! Contudo, existe diferença entre uma constatação objetiva de forças e a prostração política (a burguesia também é mais forte que as forças revolucionárias hoje e nem por isso deixamos de lutar e defender o socialismo).

É preciso combinar um amplo debate público com críticas, pressões e reflexões sobre os rumos dos atos e o centrismo do campo hegemônico, tencionar pequenas ações de radicalidade de massas e constranger publicamente pelo avanço da luta popular. É necessário atentar para o fato que temos temporalidades políticas diferentes no Brasil. Em várias pequenas e médias cidades há pessoas felizes por conseguiram, depois de muito tempo ou pela primeira vez, realizar um protesto em sua cidade.

Nessas cidades, tendencialmente, aquele clima de esperança, ânimo renovado e determinação está se consolidando ou ainda no começo. Nas capitais, já estamos indo para o quinto ou sexto ato e a militância já começa a se perguntar: esses atos são realmente úteis para derrubar o bolsonarismo? A esperança inicial já começou a se transformar em certa impaciência. Se não tivermos mudança de rumos, depois da impaciência virá a frustração e a melancolia.

Em suma, a faca e o queijo estão nas mãos das forças centristas para garantir uma não radicalização dos atos de rua e seu progressivo esfriamento. Basta manter a dinâmica atual (atos sempre aos sábados, um mês entre um ato e outro, sem apontamento de outras ações de massa etc.) e esperar 2022. O que vão fazer os comunistas, olhar esse rumo e não tentar combatê-lo em nome da “unidade”?

Autonomismo, anarquismo e as ruas

Em algumas cidades, nesse momento praticamente apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo, vem chamando a atenção o fenômeno do autonomismo e do anarquismo materializado no chamado “bloco autônomo”. Primeiro, é necessário dar a proporção da problemática nas ruas. Em São Paulo, com atos acima de 200 mil pessoas, o “bloco autônomo” não coloca nem 300 pessoas nas ruas. No Rio de Janeiro, com atos variando entre 70 e 100 mil pessoas, o “bloco autônomo” chega a 100 pessoas nos atos. Unindo as duas cidades, com atos acima de 300 mil pessoas, o bloco anarquista e filo-anarquista não soma 500 pessoas.

Em outras capitais, como Belo Horizonte, Recife, Salvador, São Luís e afins, embora tenhamos a presença de anarquistas e assemelhados, não há presença suficiente para conformar um “bloco”. Então, de início, é preciso deixar claro: ao contrário do período 2013-2016, o apelo anarquista ou filo-anarquista não está forte, não tem amplitude nacional e não tem mostrado peso de massas significativo.

A visibilidade que um difuso anarquismo vem mostrando diz respeito a dois aspectos. O primeiro, e principal, é a propaganda que alguns comunicadores e influenciadores conhecidos vêm fazendo dessa linha política. Existe um pequeno ecossistema no Twitter e no Instagram, turbinado por perfis maiores, que vem produzindo muita agitação filo-anarquista.

Segundo, existe uma unidade objetiva entre anarquistas e pequenos grupos trotskistas e maoístas. Esses grupos, que são parte do campo marxista, ressentem-se de sua pouca força frente ao bloco hegemônico, dirigido pelo petismo, além de não terem crescido nos últimos anos, como o PCB e a UP. Resta, portanto, pegar carona nas polêmicas do ecossistema anarquista e autonomista na internet.

De início, é preciso indicar três pontos. Primeiro, o sonho de todos os anarquistas e autonomistas é criar uma conjuntura onde todos os gatos são pardos e, via desonestidade política e teórica, igualar todos ao petismo – então, nesse tipo de narrativa desonesta, PCB e UP, por exemplo, teriam a mesma política que PT e PCdoB, pois são todos iguais, “os partidos”. Essa narrativa tem um papel claro: tentar jogar no campo no qual a polarização seria entre “radicalismo”, representado pelos anarquistas e autônomos e “pacifismo”, representado por todo o restante.

O PT e assemelhados, sem dúvida, opera via uma política eleitoral e institucionalista, orientada por um “pacifismo” abstrato. Não é o caso de várias outras forças. Dois exemplos são suficientes para ilustrar o tema. Em São Paulo, após cada ato, o ecossistema da bolha anarquista no Twitter corre para “denunciar” o MTST por supostamente ter “entregue anarquistas para polícia”, “ter batido em anarquistas” e ser contra “ação direta”. Sem entrar no mérito dessas “denúncias”, chama atenção a intenção de querer colocar o MTST como um movimento contra a ação direta.

A pouca honestidade no debate é gritante. O MTST é um movimento de luta por moradia que tem como principal tática de luta e pressão sobre o poder público a ocupação de um terreno ou imóvel que não cumpre sua função social. A tática de ocupação é uma ação direta de massas. Aliado a isso, no repertório de ações do MTST, também temos protestos, ocupação de órgãos públicos, fechamento de BRs e vias, trancaços e afins. Todas essas são ações diretas. É uma simples falsidade apresentar a questão como “anarquistas pró-ação direta” e “MTST antiação direta”.

O núcleo desse falso discurso é considerar como ação direta apenas, ou fundamentalmente, quebrar determinadas coisas – em geral, vidraças de bancos e lojas – e enfrentar a polícia em protestos. Aqui, novamente, é preciso elucidar o debate. O PCB, também muito atacado pelos anarquistas na internet, não criminaliza qualquer ação, mas não participa de ações como a quebra de vidraças de bancos em protestos, da maneira como vem sendo feita desde o 29M. Por que não? Vejamos.

Do ponto de vista da agitação, essa ação comprovadamente atrai mais pessoas para os atos e instiga radicalidade nas massas? Não. O próprio tamanho dos blocos anarquistas mostra o baixíssimo, ou nulo, efeito em atrair a base popular com essa ação. Do ponto de vista de prejuízo ao capital, essas ações têm efeito? Não. É totalmente irrelevante para os bancos e não oferece prejuízo. Os trabalhadores do banco, no dia seguinte, é que vão limpar a sujeira enfurecidos.

Se não serve para atrair mais pessoas para o ato, não serve para radicalizar os presentes e muito menos para causar prejuízo ao capital, qual a utilidade? Concretamente, na prática e na maneira como está sendo feita até agora, nenhuma. Quando esse debate é feito, alguém corre para dizer “está com pena de banco”. Não, não estou com pena de banco. Mas não consigo ver sentido em arriscar ser preso em uma ação que não tem impacto na consciência e organização do povo e não causa prejuízo ao capital.

Ainda cabe destacar que, pela característica de vestimenta desses blocos anarquistas, o trabalho de infiltração da polícia é facilitado. Recentemente, um autonomista que vivia no seu Instagram defendendo posturas super-radicais, chamando todos de reformistas e postando receita de coquetel molotov e bomba caseira, foi preso por um PM à paisana em um ato. Bastou ao PM colocar uma roupa preta e cobrir o rosto com máscara que ninguém do bloco “autônomo” o reconheceu ou atrapalhou seu trabalho (às vezes é possível ser autônomo até do básico de segurança e inteligência).

Existe funcionalidade em ações de quebrar lojas e bancos em protestos? Sim. De maneira geral, em três situações. A primeira ocorre quando a escala de ações é tão ampla, a “destruição” tão estendida que, na prática, setores da burguesia têm algum prejuízo e é impossível abafar o que aconteceu (na Europa, na esteira da crise de 2008, tivemos vários fenômenos assim). Quebrar 3 ou 5 agências bancárias é irrelevante. Quebrar 200 ou 400 é um ato chamativo e de massas. E aqui, novamente, entra uma contradição: esse tipo de “ação direta” para gerar algum impacto a burguesia precisa ter muito respaldo de massa, mas hoje, no Brasil, os que defendem essa tática como o máximo exemplo da radicalidade não buscam criar uma ampla base de massas.

O segundo cenário, visível em São Paulo entre 2014-2016, é quando o Estado busca esvaziar os atos de rua a partir da violência. Os manifestantes, como resposta, produzem várias ações contra lojas, bancos, vitrines etc. Os comerciantes, preocupados com os lucros, pressionam o governo a acabar com a “quebradeira”. O governo dobra a aposta, aumentando a repressão na ideia de que o terror acabe com os protestos. As “quebradeiras” continuam e a pressão na opinião pública contra as cenas de violência do Estado dificultam a tática de terror. Chega um momento em que o Estado susta a repressão na ideia de retomar a narrativa de que garante o direito de protesto “desde que seja pacífico”.

Em casos assim, concretamente, as ações contra estabelecimentos comerciais têm efeito prático. Mas, novamente, esse efeito só acontece em uma escala de massas e não em pequenos grupos. E nos atos recentes, o que temos visto, ao contrário, são “autônomos” atacarem primeiro bancos e lojas e o Estado usar isso como justificativa para repressão.

O último exemplo é muito visto na América do Sul, em especial no Chile e Colômbia esse ano. Quando a polícia ataca, buscando garantir o recuo em segurança da maioria, as linhas de frente, com respaldo de massa, fazem a resistência à polícia atacando lojas e ateando fogo em vários locais. A ideia, com essas ações, é criar um clima de caos e dificultar as ações coordenadas da polícia.

Um olhar atento aos episódios da Colômbia esse ano, por exemplo, mostra essas linhas com milhares de pessoas garantindo o recuo da maioria. São ações defensivas, em vários pontos, com linhas amplas (e não com 40 ou 50 gatos pingados) e com uma claríssima função tática. Nesse exemplo, como nos outros dois, também estamos falando de ações com respaldo de massa. No Brasil, aqueles que buscam legitimar suas ações fazendo referência aos vizinhos da América Latina, ou estão enganados ou enganando, neblinando as diferenças de tática e função.

É fundamental que os comunistas façam o debate sobre a radicalidade, combatendo o mito anarquista de que existe uma polarização entre “pacifismo” e “radicalismo”. Hoje, o debate real é entre três posições: o radicalismo sem base popular, sem função tática e essencialmente simbólico dos anarquistas; o pacifismo e o eleitoralismo do PT e associados; a defesa de um radicalismo de massas buscando afetar a burguesia, parando a produção e circulação de mercadorias, como defendem os comunistas (os poucos que levantam a bandeira da greve geral).

É preciso colocar no debate público questões centrais para evitar que as pessoas, especialmente os jovens, tomadas pelo sentimento de impaciência, caiam no discurso autonomista. Primeiro, temos sempre que questionar: o que os autonomistas estão fazendo para crescer os atos de rua, dar amplitude de massas para suas ações, organizar mais setores da juventude e da classe trabalhadora? Muito interessante o debate abstrato sobre o que fazer nos atos. A questão central, contudo, é quem está fazendo o trabalho de base real com a classe.

Que exemplos temos de ação de autonomistas tocando a luta por moradia popular, realizando ações de solidariedade de classe (como no âmbito do combate à fome), construindo cursinhos populares, associações de moradores, centros de cultura, coletivos de trabalhadores, sindicatos e afins? O que estão fazendo para crescer os atos e ter mais força para intervir nos seus rumos?

Em segundo lugar, qual é a ação dos anarquistas e autonomistas para construir uma greve geral e paralisações causando prejuízo real à burguesia? Recentemente, em um diálogo com um jovem no Instagram, ele disse que quebrar vidraças de bancos é “belo e moral”. Falei que não tenho nada contra, mas isso não oferece prejuízo ao capital, enquanto criar uma célula sindical no banco, organizando a resistência dos trabalhadores às metas desumanas de desempenho e o assédio moral, causa bem mais problemas e perdas ao banco. A resposta foi sintomática: “concordo, mas o sindicalismo hoje está morto”. Esse tipo de ação pseudo-radical aparece como uma espécie de substituição do trabalho de massa.

Sim, o trabalho de massa é lento, demorado, sem glamour, às vezes aparentemente burocrático e maçante. Mas é ele, quando bem-sucedido, que consegue oferecer resistência real ao capital. É preciso perguntar aos anarquistas e autonomistas qual o saldo que tivemos em termos de organização popular e consciência de classe entre 2013-2016, quando o autonomismo corria forte em vários setores da juventude e dos trabalhadores precarizados dos grandes centros urbanos.

Por último, cabe muito cuidado com as falsas polêmicas e ataques de setores autonomistas – e policiais infiltrados nesse bloco. É fundamental desenvolver práticas de inteligência em estados nos quais há um histórico forte de infiltração policial e grupos autonomistas. Deslocar militantes à paisana para filmar esses blocos, identificar possíveis P2 e infiltrados do Estado, garantir que não prosperem mentiras na internet tendo material para provar o que aconteceu.

Algumas pessoas, acostumadas com a lógica da lava-jato, acreditam que não é preciso provas, mas apenas convicções. Não consideram que é o acusador que tem que provar a verdade da sua acusação, mas o acusado, culpado a priori, é que tem que provar sua inocência. Para essas pessoas, e outras de boa vontade, é necessário ter inteligência e buscar desvelar a mentira rapidamente. Não existem dúvidas que as provocações aos blocos comunistas vão continuar crescendo.

Os atos de rua e a ação dos comunistas a longo prazo

Por fim, olhando para o cenário mais imediato, os campos das esquerdas vivem uma profunda transformação no Brasil. Durante o período 2014-2017, configuraram-se nitidamente três campos. O campo do petismo e associados, formalizado na Frente Brasil Popular; o campo liderado pelo PSOL/MTST, que agregava a maioria dos setores da esquerda socialista e comunista formalizado na frente Povo Sem Medo; e um terceiro campo, que implodiu impulsionado pelo PSTU, seguido por grupelhos trotskistas.

Por caminhos que não vale a pena rememorar aqui, a Frente Povo Sem Medo, embora ainda exista no papel, não é mais real na prática. Transformou-se primeiro em um avatar do PSOL e depois foi engolida pelo petismo. O petismo, a máquina eleitoral mais eficiente da história republicana brasileira, devorou o projeto de reformismo via mobilização popular expressado por Guilherme Boulos no auge da Frente Povo Sem Medo.

Do ponto de vista de uma análise política séria, o PSOL perdeu uma iniciativa histórica de demarcação na esquerda brasileira. Hoje, é mais um partido de esquerda como o PT também é um “partido de esquerda”. No máximo, o PSOL é visto como uma organização com propostas “mais à esquerda” que o PT, mas até esse gradiente, em alguns estados, começa a sumir.

Temos, como indica a situação atual, um grande campo difusamente de esquerda liderado pelo PT. Caso Lula ganhe em 2022, consiga assumir e governar, podemos ter mudanças rápidas, talvez com uma reorganização de campos. Contudo, pensando no hoje, é isso que temos. Os comunistas não podem apenas ser agitadores de rua, buscando fortalecer as manifestações e radicalizá-las. Claro, essa tarefa é fundamental, mas é preciso apontar para além disso.

É preciso, desde já, buscar criar as condições para surgir no Brasil um campo político radical, anti-imperialista e antiliberal com protagonismo dos comunistas. Com o PSOL cada vez menos socialista – e com mais liberais no partido e em posições de destaque –, abre-se uma avenida grande para os comunistas fazerem política e se colocarem como a alternativa antissistêmica com maior visibilidade no cenário político.   

Se as organizações da esquerda revolucionária não quiserem ser engolidas pelo petismo, urge buscar construir uma alternativa imediata. Até agora, no entanto, a tendência tem sido aceitar a capacidade renovada de dirigir as esquerdas mostrada pelo petismo via força eleitoral, esperando um momento melhor para uma “postura mais radical”, como parece ser o caminho de muitas tendências do PSOL, ou simplesmente não ter uma política clara e buscar se autoconstruir e acumular forças individualmente.

As duas posições, no segundo semestre de 2022, caso tudo se mantenha constante, devem desabar. Na Venezuela, o Partido Comunista do país (PCV) se separou do campo político liderado por Nicolás Maduro e seu partido, o PSUV, e busca construir uma alternativa própria. Claro que essa iniciativa, hoje, é minoritária. Não poderia ser diferente. Mas já constrói as bases de uma radicalização popular e os ataques do Presidente Maduro ao PCV (inclusive mobilizando o aparato do Estado) mostram que eles estão preocupados com a Alternativa Revolucionária Popular (ARP), liderada pelos comunistas da Venezuela.

O Brasil precisa de algo semelhante ao ARP. E não falo, que fique claro, de uma frente eleitoral. Dificilmente a construção de um novo campo político vai conseguir ter expressão eleitoral já para 2022. Trata-se, de imediato, de uma construção política, ideológica e organizativa buscando a reorganização da classe trabalhadora e das forças revolucionárias no curto, médio e longo prazo. Como disse a resolução do XV Congresso do PCB (disponível no site do partido),

67) Apontamos ainda para a necessidade de constituição de uma frente política de caráter permanente, organizada em torno de um programa capaz de dar unidade às lutas anticapitalistas e de oposição às manifestações do imperialismo no Brasil e no mundo. Tal articulação, a que denominamos Frente Anticapitalista e Anti-imperialista, não pode ser confundida com uma frente eleitoral. A vitória eleitoral e as possibilidades de governabilidade de forças de esquerda somente ocorrerão se estiver fincada sobre um forte movimento de massas. Portanto, o projeto de constituição da Frente Anticapitalista e Anti-imperialista depende da formação de um amplo movimento de caráter permanente, estruturado por partidos políticos, organizações de massa e movimentos populares reunidos em torno do programa contra-hegemônico, no qual esteja prevista a ruptura com o capitalismo.

Os elementos que colocamos acima, obviamente, não são os únicos necessários, mas buscamos focar nesses para ajudar no debate sobre os passos para a nossa Revolução Brasileira. Vamos ao debate! 

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A coletânea Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI, organizada por Jones Manoel, conta com diversas intervenções do renomado estudioso Domenico Losurdo, entre artigos, transcrições de palestras e entrevistas.

Tendo como conceitos centrais os temas do imperialismo, do racismo e da dominação colonial, a obra apresenta uma compreensão estratégica da luta de classes internacional durante o século XX e sua continuidade no século XXI. Das ligações teóricas entre o regime nazista e os Estados Unidos até a chamada “indústria da mentira” em operação nos recentes conflitos na Síria e no Iraque, os métodos da dominação colonial são expostos e integrados a uma visão histórica do desenvolvimento do capitalismo sob hegemonia estadunidense.  

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Jones Manoel apresenta o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI, de Domenico Losurdo, organizado por ele para a Boitempo.

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Jones Manoel é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular, passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Organizou pela Boitempo o livro Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI (2020), coletânea com artigos, transcrições de palestras e entrevistas de Domenico Losurdo. Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em Três notas sobre a ação dos comunistas nas ruas e no movimento de massas

  1. Gabriel Reis // 11/08/2021 às 7:15 pm // Responder

    Uma pena que você só ressalta no PSOL o que você quer Jones. Sua caracterização é superficial e desconsidera correntes e movimentos dentro do PSOL que estão em peso nas ruas como o MES/Emancipa/Juntos e outros.

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