Uma leitura necessária, mas profundamente dolorida

O livro 'A nova segregação: racismo e encarceramento em massa', de Michelle Alexander, revela como a discriminação legal antes instituída pelos 'códigos negros' foi substituída por uma política criminal que age como filtro de segregação da população negra estadunidense e cria um sistema de subcastas.

 

Chegou nosso primeiro livro do ano! E que livraço… A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, de Michelle Alexander, é a explosiva obra que revelou os alicerces do racismo estrutural no coração da democracia liberal moderna. O livro desafiou a noção de que o governo Obama assinalava o advento de uma nova era pós-racial, e é considerada por muitos a “bíblia laica” do movimento Black Lives Matter. Uma das principais inspirações para o documentário A 13ª Emenda, da Netflix (do qual a autora participa), o livro chega ao brasil em edição cuidadosa com tradução de Pedro Davoglio, revisão técnica e notas de Silvio Almeida, prólogo de Cornel West e vem ainda acrescida de uma apresentação inédita escrita por Ana Flauzina. Confira abaixo o texto escrito por Alessandra Devulsky para a orelha do livro. 

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Por Alessandra Devulsky.

O encarceramento em massa de negros nos Estados Unidos é um fenômeno conectado ao passado escravocrata e também debitário de um modelo econômico excludente. Em A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, Michelle Alexander demonstra que a interpelação desse contingente de homens negros por meio das políticas criminais, embora tenha contornos constitutivos de classe, representa a criação de uma subcasta racializada.

A imobilidade social permanece mesmo após a reconquista da liberdade, atestando o caráter indelével do registro criminal, que, somado ao marcador racial, inviabiliza a superação dos fatores ligados à prisão. O cárcere pode até ter um prazo para findar, mas as consequências da passagem do negro pelo sistema prisional constituem uma pena permanente.

A discriminação legal antes instituída pelos “códigos negros” é substituída por uma política criminal que age como filtro de segregação da população negra estadunidense e cria um sistema de subcastas.

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Ademais, a existência de um maior número de negros encarcerados ou em liberdade condicional hoje do que de escravos no período de abolição da escravidão nos Estados Unidos evidencia um perigoso elo entre o capital gerenciador das prisões e o Estado. No Brasil, de passado igualmente escravocrata, mais de 60% dos detidos no sistema prisional são negros, indicando que o combate ao racismo passa pela reforma do sistema prisional tanto quanto por uma profunda transformação das relações raciais.

Se um negro estadunidense tem possibilidade treze vezes maior de ser encarcerado em prisões estaduais pelo uso de certas drogas do que um branco, resta claro que a raça é um vetor mais importante do que o próprio uso do entorpecente. São pais e companheiros cujo afastamento provoca a deterioração do ambiente familiar – ocasionando indiretamente o aumento exponencial de prisões que servirão para segregar uma segunda ou terceira geração de encarcerados na mesma família. Diante desse quadro, é preciso indagar: a que serve a inviabilização material da vida dessas pessoas? O que essa segregação representa na sociedade? O que ela diz sobre nós? Essas são algumas das perguntas enfrentadas por Michelle Alexander neste livro. Uma leitura necessária, mas profundamente dolorida, que nos instiga a confrontar o racismo a partir e para além de sua existência institucional.

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No vídeo abaixo, produzido pela TV Boitempo, filósofo do direito e revisor técnico do livro Silvio Almeida apresenta a tese central da obra e discute a importância e a atualidade de sua publicação no Brasil.

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Alessandra Devulsky é advogada, professora universitária e diretora executiva do Instituto Luiz Gama. É mestre em direito político e econômico pela Universidade Mackenzie e doutoranda em direito econômico e financeiro pela USP. É autora do artigo “Estado, racismo e materialismo” do dossiê sobre “Marxismo e a questão racial”, coordenado por Silvio Almeida para o número #27 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda.

1 comentário em Uma leitura necessária, mas profundamente dolorida

  1. Benvinda a publicação! Caminhamos nesse sentido há muito tempo, verdadeiro projeto de “limpeza étnica”, garantido por “lei e pelo Direito”. Apenas ressalto que Loic Wacquant, já antecipava isso em “Prisões da Miséria” e outros textos.

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