Uma cidade e a outra (e a outra) | Mauro Iasi homenageia China Miéville

Um micro conto em homenagem à China Mieville e seu "A cidade e a cidade"

mauro iasi miéville[Esboço da arte de capa de Fabio Cobiaco para a edição brasileira de A cidade & a cidade, de Chine Miéville]

Por Mauro Luis Iasi.

O conto a seguir foi escrito por Mauro Iasi após a leitura do romance de ficção científica A cidade & a cidade, de China Miéville. Elaborada como homenagem ao premiado escritor e militante socialista inglês, a curta narrativa abaixo se passaria logo depois do que é descrito no livro. Qualquer semelhança com fatos ou possibilidades abertas pela nossa conturbada conjuntura “será negada veementemente em juízo” pelo autor… Boa leitura! Advertência: o texto abaixo não contém “spoilers” comprometedores, mas pra quem ainda não conhece o livro e o autor, recomenda-se vivamente que o faça, antes ou depois de ler o conto de Mauro Iasi – até porque vem aí em junho o aguardado Estação Perdido, romance que fez de China Miéville um escritor mundialmente aclamado. (Saiba mais sobre quem é Miéville clicando aqui).

***

A manhã nascia sem esperanças em Beszel. Ambos os lados da cidade ainda traziam em seu corpo as marcas da última crise e as pessoas hesitavam por micro-segundos antes de desver algo, como antes faziam quase que naturalmente.

Corwi tomava seu chá aromatizado ao estilo de Ul Quoma, enquanto amaldiçoava mentalmente seu antigo chefe, Borlú, que a havia viciado naquela beberagem. Olhava sem olhar por entre os prédios da rua Con ul Cai, na pequena Ul Quomatown, tamborilando seu dedo nervosamente na mesa. Olhou de relance para os colegas que estava ao lado da porta, indicando o homem que tentava sair rapidamente sem ser notado. Os policiais o abordaram rapidamente e o levaram do café.

A policial o interrogaria depois. As detenções das organizações unificacionistas viraram quase rotina em Beszel e Ul Quoma, depois da grande crise. Um clima de tensão e desconfiança cobria as duas cidades. Agora não era apenas “a chuva e a fumaça de lenha” que viviam nas duas cidades, como dizia o velho ditado. Agora também se impunha um medo e um terror que pairava como uma neblina, sem respeitar as fronteiras, transitando entre as ruas sobrepostas.

A detetive caminhava sem pressa. Os interrogatórios a cansavam. Como poderia esquecer que ela sabia muito mais do que aqueles seres assustados ou raivosos. Virou sua cabeça para um prédio que desviu logo em seguida, pois estava em Ul Quoma, assim como a mulher que agitada entrava por sua porta tentando desvê-la.

Todos já haviam se acostumado com a onipresença da Brecha. Sabiam que ela estava lá e qualquer descuido apareceria como um anjo vingativo para levar o incauto para o nada. No entanto, a Brecha havia se manifestado nos casos de contrabando, em acidentes nas rodovias, ou no desespero de um criminoso perseguido que cruzava uma área compartilhada e cometia brecha, por vezes sem notar. Os acontecimentos recentes, haviam produzido nela uma sensação estranha. A Brecha continuava aquele poder desconhecido, mas estava lá Borlú. Agora a Brecha tinha um rosto, lembranças. A detetive Corwi paralisou seu pensamento como receando cometer brecha em sua cabeça, cruzando uma fronteira proibida de sentimentos contraditórios.

As duas cidades se sobrepunham no mesmo espaço, unidas e separadas por fronteiras que estavam longe de ser definidas, cheias de áreas compartilhadas, de campos de  dissensi, e mesmo nas áreas totais o risco de não desver à tempo, ou um acidente, e a Brecha cairia sobre você como uma sombra do destino te arrastando.

As cidades haviam sofrido a mesma crise, mas a viveram de formas diferentes. Enquanto em Ul Quoma os acontecimentos produziram um efeito de abertura relativa, questionava-se mais o governo, a imprensa passou a ter um papel mais independente, as estruturas rígidas da militsya estavam questionadas e políticos tinham que dar explicações; em Beszel vivia-se um clima de fechamento político. As grandes empresas envolvidas no escândalo acobertavam o caso e os políticos envolvidos encontravam maneira de se esconder sob o manto da crise, justificando um fechamento político sem precedentes.

Os movimentos que se identificavam como unifis, que sonhavam com uma só cidade, saudosos dos tempos pré-clivagem, assim como um certa quantidade de movimentos de extrema direita, neo-nazistas e outros, se encolhiam, mas seu recuo era aparente. Seus verdadeiros chefes estavam protegidos nos acordos das grandes corporações e no governo. Algumas peças eram descartáveis, para que o centro de comando se preservasse.

Democracia e Ditadura eram duas formas tão invisíveis como as fronteiras que separavam as cidades, no entanto tão reais como elas. Seus verdadeiros donos estavam em algum lugar além das duas cidades e das formas políticas que convém em cada momento.

Todos os habitantes, seja de Ul Quoma ou Beszel, cresceram sabendo que haviam governantes, poderes estabelecidos, a militsya  ou a policzai, e um poder maior, acima de todos, zelando para que as fronteiras invisíveis entre as duas cidades não fosses cruzadas. A polícia de cada cidade controla os cidadãos, os governos de cada cidade que é uma só, controla a polícia, a Brecha… quem controla a Brecha?

Nenhum cidadão de Beszel se permitia esta pergunta. Era uma força superior à qual não cabia os limitados conceitos de soberania ou legitimidade. Caso as cidades perdessem o controle, ameaçando a ordem que surgiu com a clivagem, este poder se imporia sem os limites de ordem jurídica, política ou moral. Um poder em estado puro.

O que atormentava a detetive Corwi era que ela havia cruzado uma fronteira invisível, nestas cidades tão cruzadas por fronteiras. Agora a Brecha tinha um rosto. Por mais fantasmagórico e impalpável fosse este poder, a dúvida que germinava em sua mente era essa: aqueles que compõem a Brecha têm dúvidas? A Brecha pode errar?

Imediatamente um terror tomou conta da jovem policial. Como se uma sombra penetrasse em seu mais profundo pensamento. Ela se viu olhando para si mesma atemorizada… como posso pensar isso. Tentou despensar seu pensamento quase que instantaneamente. Respirou fundo o ar frio de Beszel e caminhou determinada para o Distrito.

Em algum lugar invisível entre as duas cidades e em cada uma delas, o inspetor Borlú olhava para o celular em sua mesa. Quase que imediatamente despensou a vontade de ligar.

A Brecha está em cada um de nós.

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Pra quem se vira no inglês, vale a pena assistir a esta conferência de China Miéville sobre “os limites da utopia” ministrada no dia 22 de abril em Madison, Wisconsin:

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

2 comentários em Uma cidade e a outra (e a outra) | Mauro Iasi homenageia China Miéville

  1. Gostei da fanfic. Só avisem que o conto tem spoiler do livro.

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