A “Ideologia de gênero” e as ameaças à democracia

flávia biroli_ideologia de gênero_1Por Flávia Biroli.

A democracia e os direitos individuais estão sendo ameaçados por ofensivas contra o que vem sendo chamado de “ideologia de gênero”. Trata-se da ação retrógrada, orquestrada, de alguns grupos religiosos na política. Embora se digam contra uma “ideologia”, atuam para frear e interromper a consolidação de valores básicos da democracia, como o tratamento igual aos indivíduos independentemente do que os singulariza e a promoção, no ambiente escolar, do respeito à pluralidade e diversidade que caracterizam as sociedades contemporâneas.

Em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores, esses grupos vêm atuando para eliminar das diretrizes educacionais orientações para a valorização e respeito à diversidade sexual e para a superação das desigualdades de gênero. A própria palavra “gênero” vem sendo sistematicamente eliminada nos casos em que essa empreitada teve sucesso. O requerimento de informação apresentado pelo deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) em maio de 2015, dirigido ao MEC, é um exemplo bastante claro do que se passa: solicita esclarecimentos sobre o que caracteriza como a “manutenção da ideologia de gênero como diretriz obrigatória para o PNE”, contrariamente ao que teria sido determinado pela apreciação do Congresso Nacional. O deputado, que é membro da Comissão Especial formada na Câmara dos Deputados para análise do Plano Nacional de Educação (PNE), apresenta como inaceitáveis – e característicos do que define como “ideologia de gênero” – os seguintes trechos do PNE:

– Inciso III do artigo 2º, que define como diretriz a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”,

– Estratégia 3.12 da Meta 3, que coloca como objetivo “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação racial, por orientação sexual ou identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”.

Nas democracias ocidentais, sobretudo a partir de meados do século XX, a noção de direito individual foi tensionada e ampliada pela ação de movimentos sociais que denunciaram os limites da cidadania nessas sociedades. Movimentos feministas, movimentos de gays e lésbicas e movimentos antirracistas foram responsáveis pela inclusão, na agenda política, do entendimento de que a garantia formal de direitos iguais universais para os indivíduos não foi suficiente para reduzir a exclusão, marginalização e estigmatização de parte da população. As democracias conviviam, ainda, com preconceitos e arranjos sociais discriminatórios, mesmo quando a lei determinava que os indivíduos eram cidadãos iguais independentemente do sexo, da cor, do estilo de vida. A noção de gênero se define no contexto dessas lutas, na interface entre a atuação dos movimentos sociais feministas e de gays e lésbicas, como um dispositivo para a compreensão e a superação de formas de violência e opressão baseadas na recusa à diversidade das vivências e experiências dos indivíduos. Os estudos de gênero, presentes em diferentes universidades e países do mundo, expõem não apenas essa diversidade, mas o caráter autoritário e coercivo de códigos morais baseados no que seria a realidade incontornável da natureza humana – nesse caso, do sexo biológico. Esses códigos permitem colocar os indivíduos em hierarquias, fazendo com que alguns mereçam respeito, outros não. As experiências de tantas pessoas, seus afetos e os valores que fazem delas quem são concretamente são diminuídos e estigmatizados por não coincidirem com o que teria sido determinado como correto pela “natureza” e/ou por textos de caráter religioso.

Trata-se de questões bem concretas, e não de um embate entre ideias. Os movimentos sociais que têm o gênero como parte da sua agenda denunciaram e continuam a denunciar o fato de que alguns indivíduos, pelas suas características, têm menos chances do que outros de ser respeitados e são alvos de violências e humilhações cotidianas. A violência contra as mulheres está, em grande medida, associada à busca do controle dos homens sobre elas – quando não se comportam de modo que confirma essa ideia, terminando um relacionamento, mantendo uma vida mais autônoma ou vestindo-se de maneiras vistas como não-decorosas, estão mais expostas a agressões. A violência contra a população homossexual se ancora no entendimento de que existem formas corretas de amar e se relacionar com outras pessoas, enquanto outras seriam desvios que marcam os indivíduos negativamente, fazendo com que integrem o grupo dos que poderiam ser violentados e torturados sem que isso gere sobressaltos ou fira a democracia. Os movimentos antirracistas expuseram dinâmicas muito semelhantes. É também uma ideia de superioridade, desta vez impregnada na pele, que justificou historicamente o racismo: o fato de não se ser branco – assim como, nos exemplos anteriores, o de não se ser homem ou heterossexual – justificaria desrespeitos e violências contra quem é circunscrito como “outro”, como portador de uma diferença que ameaça em vez de uma humanidade comum. 

No ambiente escolar, essas formas de discriminação e desvalorização produzem sofrimentos e reduzem o aproveitamento de muitas crianças. É também no processo de socialização, em que a escola tem um papel fundamental, que podem ser ativadas concepções democráticas da vida ou reforçados preconceitos. As crianças são objeto de práticas menos ou mais tolerantes e igualitárias, mas são também sujeitos na sua reprodução. A importância da educação para a igualdade e a diversidade é, portanto, dupla. Ela pode orientar a atuação de professoras/es e alunas/os, de forma que diminua o sofrimento dos indivíduos que veem o valor das suas vidas reduzido – meninas que estão sujeitas a estupro e abuso, meninas e meninos agredidos em razão de sua identidade sexual ou dos arranjos familiares de que fazem parte – e ela nos dá a esperança de que poderemos ter, nas crianças, agentes na construção de relações mais respeitosas, de uma sociedade mais igualitária.

A diversidade de corpos, de valores e de estilos de vida é um fato, e não uma ideia. Ainda que isso seja óbvio para quem se permita olhar ao redor sem anular de antemão as vidas e as experiências de tantas pessoas, é importante assinalar que esse fato está na base de ideais que visam orientar a construção de sociedades mais justas, e não o contrário. O que quero dizer é que o ideal da tolerância nasce, desde bem cedo, no pensamento liberal moderno, do fato da diversidade e da pluralidade nas sociedades. A diversidade permanece mesmo quando não há tolerância: o resultado de ações retrógradas como as que estão sendo aqui discutidas é que os “outros” estarão mais expostos ao sofrimento, à opressão e à violência.

A laicidade do Estado – a separação entre Estado e religião – foi uma solução histórica para essa diversidade, que se apresenta também como pluralidade de crenças e de credos. A laicidade é um princípio fundamental da democracia porque permite que essa diversidade se apresente sem que o Estado assuma e promova a superioridade de um grupo relativamente a outro. Quando a religião orienta políticas de Estado, rompe-se com a ideia de que os indivíduos merecem igual respeito e têm igual valor na sociedade – os valores, crenças e estilos de vida de alguns fariam deles o povo eleito, e a democracia não resiste a essa visão exclusivista e excludente. Ela produz intolerância. E a intolerância, volto a dizer, é bem mais que uma ideia, é a justificação e a aceitação do tratamento desigual, da humilhação e da violência contra aqueles que “não vivem como acho que deveriam viver”.

Acredito que seja importante também uma palavra, breve, sobre o uso do termo ideologia nessa investida contra os direitos individuais e a democracia no Brasil de hoje.

Em algumas abordagens no pensamento político, a noção de ideologia se aproxima da ideia de mistificação, ilusão, inversão da realidade. Em outras, prevalece o entendimento de que a ideologia corresponde a um conjunto de sentidos, de ideias, que constituem nossa relação com o mundo e fazem de nós quem somos. O primeiro caso pressupõe uma antítese bem definida entre a realidade objetiva e os significados a ela atribuídos. É nesse sentido que, no senso comum, pode-se atribuir a alguém a pecha de ideológico quando distorce os fatos em vez de ater-se à “realidade” das coisas. O segundo já pressupõe o entendimento de que a relação com o mundo social é sempre atravessada por sentidos que nos precedem, e que estão em disputa. Não há momento ou circunstância em que a realidade se dê a ver sem estar impregnada de significados e de valores. É numa realidade que não é nem falsa nem verdadeira, mas socialmente significada, que nos constituimos como indivíduos.

Essa breve menção ao debate sobre ideologia nas Ciências Sociais – que se apoia na análise de Terry Eagleton (Ideologia: uma introdução, publicado no Brasil pela Boitempo e pela Unesp) – deve incluir também uma outra dimensão, que entendo atravessar tanto os entendimentos da ideologia como mistificação quanto aqueles que ressaltam seu caráter constitutivo: a ideologia tem função legitimadora, confirmando e mesmo naturalizando perspectivas. Vejo as ofensivas contra a “ideologia de gênero” como a busca de naturalização de posições – as visões bem situadas e particulares de alguns, no caso de grupos religiosos, apresentadas como se fossem universais. Nesse caso, o recurso à ideia de que existe uma natureza/verdade e uma ideologia/falsidade é o dispositivo central para a universalização de uma posição bem situada.

Talvez se possa considerar que documentos e esforços internacionais pela promoção da igualdade de gênero e do respeito à diversidade sexual, como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1979 e ratificada pelo Brasil em 1984, e a Campanha pela igualdade e direitos da população LGBT, lançada pela ONU em 2014, assim como o acúmulo sistemático de estudos produzidos nas mais diferentes universidades sobre a construção social das identidades de gênero, sejam parte de uma disputa ideológica e sejam, também eles, bem situados. Sim, em todos esses casos não se trata de registrar desígnios da natureza ou de assumir uma posição de neutralidade: assume-se neles uma posição a favor da igualdade, do respeito à diversidade e da superação da opressão. Essa posição fere os privilégios daqueles que talvez se sintam superiores, e que certamente obtêm vantagens, ao desvalorizar os “outros” e exercer controle sobre aqueles, e em especial aquelas, que lhes seriam inferiores.

O que está em questão é se teremos diretrizes educacionais orientadas para a igualdade, a tolerância e a diversidade ou fundadas em noções de superioridade, em visões exclusivistas e excludentes. De maneira mais ampla, o que está em questão nesse momento é a nossa democracia e a capacidade que teremos, como sociedade, de garantir o respeito aos direitos individuais.

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Para aprofundar a reflexão sobre as questões de gênero, o impacto do feminismo na teoria política e as diferentes matizes e debates em torno da luta e da teoria da emancipação das mulheres, recomendamos a leitura de Feminismo e política: uma introdução, de Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, que oferece um inédito e didático panorama do feminismo hoje.

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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).

7 comentários em A “Ideologia de gênero” e as ameaças à democracia

  1. Robson Mendes // 04/07/2015 às 8:00 pm // Responder

    Professora, me desculpe, somos Pais de cinco filhos, e, eu e minha esposa, queremos ter o direito de educar nossos filhos, e não entendemos que seja um papel da escola direcionar uma escolha, que in natura já existe, pois nascemos homem ou mulher, não podemos esquecer, e não o esquecemos, de ensinar também aos nossos filhos o respeito pelos outros e por suas opções, por isso, somos contrários a o que estão tentando colocar na PNE, e não só isso, divulgamos e e faremos o possível para que não seja aprovada.

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    • “Nascemos homem ou mulher” não é ideologia de gênero para você? Para mim é um exemplo claríssimo. A própria biologia já conhece muito mais do que o XX e XY sobre os quais nos falaram no ensino médio, e a discussão nem sequer pára na biologia, visto que existem populações, inclusive humanas, que vão contra tudo o que é considerado senso comum a respeito de gênero.

      Quem realmente quiser eliminar a ideologia de gênero deve começar por rejeitar essa divisão “homem ou mulher” que não faz o mínimo sentido quando inspecionada mais de perto.

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  2. Sou a favor da não violência a quem quer que seja. Mas entendo que há uma diferença muito grande entre eu ensinar que não se deve distratar um fumante e eu querer empurrar güela abaixo que fumar é bom ou legal etc.
    Nesse caso onde fica a liberdade de consciência? seria a ditadura do homossexualismo!!!!!

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    • Uma comparação nada apropriada. Ninguém nasce fumante. Pessoas começam a fumar perversão do paladar ao ficar por muito tempo exposto à fumaça do tabaco, ou se esforçam por conseguir fazer isso por que uma parcela da sociedade passa a ideia de que isso é algo interessante. Já a sexualidade, o que cientificamente já se comprovada é que pessoas nascem como uma sexualidade definida, havendo até diferenças cerebrais entre um pessoa heterossexual ou homossexual. O homossexual não o é porque alguém lhe tenha dito que é bom, mas por uma tendência biopsíquica a gostar de uma pessoa do mesmo sexo.
      http://www.joaodefreitas.com.br/sexualidade-nao-opcao.htm

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      • Há que se questionar se tais pesquisas de fato são científicas ou pseudo científicas. Cada caso é um caso. Cada pesquisa é uma pesquisa. Existem com certeza pesquisas excelentes na área. Não tenho dúvidas de que existem também pesquisas péssimas, travestidas de científicas. Há não muitas semanas atrás, uma colega professora de minha escola me disse que existem pesquisas que comprovam que todo homem (sexo masculino) é um estuprador em potencial. Por causa da testosterona. Fala sério! Imagina que tipo de pesquisa comprova uma coisa dessas? Erros metodológicos, erros estatísticos, erros conceituais, erros de desenho, de condução, e de interpretação de resultados, etc etc etc.

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    • Uma comparação nada apropriada. Ninguém nasce fumante. Pessoas começam a fumar por perversão do paladar ao ficar por muito tempo exposto à fumaça do tabaco, ou se esforçam por conseguir fazer isso porque uma parcela da sociedade passa a ideia de que isso é algo interessante. Já a sexualidade, o que cientificamente já se comprova é que pessoas nascem como uma sexualidade definida, havendo até diferenças cerebrais entre um pessoa heterossexual e uma homossexual. O homossexual não o é porque alguém lhe tenha dito que é bom, mas por uma tendência biopsíquica a gostar de uma pessoa do mesmo sexo.
      http://www.joaodefreitas.com.br/sexualidade-nao-opcao.htm

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  3. Fiquei com a impressão que o artigo fala fala e não diz nada. Para mim as questões que ficam são, por exemplo: como a tal ideologia de gênero aparece nas legislações? A autora, Flávia Biroli, comentou um pequeníssimo trecho de uma única legislação. Não me parece que toda a comoção social (ou “comoção social”) se deu em cima de coisas meramente como o que aparece descrito naqueles exíguos trechos que Flávia colocou neste artigo. Temos notícia por exemplo de um tal “kit gay” (nome dado pelos Bolsonaro e cia) e de revistinhas que mostram como fazer sexo, para crianças de 6 anos, inclusive com buraquinhos na revista para que o menino coloque o dedo, e aí o dedo dele se transformaria em um pênis a ser introduzido no buraquinho da página seguinte, que seria a vagina do desenho na página seguinte. Segundo Jair Bolsonaro, haveria inclusive a recomendação de movimentos friccionais repetitivos. Enfim, isso tudo é piração dos Bolsonaro e cia ou há algum fundo de verdade nisso? Esse tipo de questão não aparece neste artigo. Infelizmente. Ou seja: ou de fato se escreve um artigo a respeito do que é a Ideologia de Gênero conforme defendida pelos que estão à frente disso, ou então não se escreve artigo nenhum. Se é para ficarmos mal informados, deixem que a rede Globo e cia façam isso, porque eles sim são profissionais do engodo e da desinformação.

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