O trabalho de base

15 05 02 Lincoln Secco O trabalho de base[Concentração da manifestação de 13 de março de 2015, na Av. Paulista em São Paulo]

Por Lincoln Secco.

Em julho de 1919 Filip Mironov ousou escrever uma carta aberta a Lenin onde reportava que os camponeses da região do Dom gritavam “Queremos sovietes, fora os comunistas”. Claro que se referiam aos “comunistas” que oportunamente aderiram depois de 1917. Mironov tinha sido o responsável pela resistência ao avanço das tropas brancas do General Krasnov. Em 1920 foi preso e assassinado pelo governo bolchevique. Em 1960 o Exército Soviético o reabilitou.

O dilema daquele cossaco pobre que se fizera chefe militar foi o da esquerda histórica desde a Revolução Francesa. Jacobinos sob Napoleão, comunistas sob Stalin e anarquistas na Rússia ou na Espanha tinham que escolher entre o déspota progressivo ou a derrota para inimigos muito piores.

Longe estamos de situação parecida no Brasil. Nenhum grupo de esquerda tem aquelas qualidades que só o momento histórico e as escolhas humanas podem forjar. Ainda assim, vivemos uma situação política muito grave. Desde 1964 a Direita não saía às ruas. O governo caminhou tanto à direita que perdeu parte do apoio que tinha nos movimentos sociais e não recebeu nenhum alívio de seus opositores do mundo oficial da política.

O que deveriam fazer os novíssimos movimentos populares diante de uma ameaça de impeachment da presidenta eleita?

TRABALHO DE BASE

Antes de mais nada cabe dizer que, individualmente, ninguém deveria permanecer indiferente à cassação de um mandato legítimo. O atual governo tem o direito de cumprir seu mandato, ainda que o atual governo seja conciliador e não tenha percebido que o pacto social rentista que outrora o sustentava se quebrou.

Mas a pergunta não se refere a indivíduos e sim a coletivos.

Os novíssimos movimentos fazem aquilo que o PT abandonou faz muito tempo: trabalho de base. Por isso, a ascensão do Movimento Passe Livre no período de junho de 2013 a janeiro de 2015 só surpreendeu quem estava preso ao país oficial. Desde 2005 ele operava longe dos gabinetes da esquerda bem empregada.

Como ele, muitos coletivos e movimentos fazem seu trabalho silencioso nas periferias. Se despontarem aqui ou ali na cena política não será por obra das redes sociais. Na maioria dos casos não atuam com pautas amplas, concentram-se numa única de grande capacidade de mobilização local ou até nacional. Sua organização horizontal e sua utopia não acorrentam seus membros. Eles e elas formam ali esculturas sociais fora do circuito dos partidos de esquerda. A política oficial está numa frequência, eles e elas em outra.

COBRANÇAS

Constantemente tais movimentos são cobrados à direita e à esquerda. E os black blocs? Irão à marcha antifascista? São contra a Copa do Mundo? Ao atacar a prefeitura deste partido não colaboram com o governador daquele outro? Por que não se engajam na campanha pela água? Por que abriram a porta do inferno em junho de 2013? O que pensam do programa Mais Médicos? Por que não dão mais entrevistas?

A mais nova pergunta, caso a luta política venha a se acirrar será: são a favor do governo federal ou ficarão passiva e objetivamente ao lado dos fascistas?

A resposta mais óbvia é manter a autonomia. É que esses movimentos, diferentemente daqueles tradicionais da esquerda (sindicalismo, MST, MTST etc) não têm nenhuma relação orgânica com os governos petistas. Os movimentos sociais citados são parte importante de nossa história e têm todo o direito (talvez, o dever) de lutar pelo governo que ajudaram a construir.

Mas os novíssimos movimentos podem dizer tranquilamente que quem criou a crise política atual e tem que enfrentá-la é o próprio PT. Portanto, é incabível que eles se associem a um partido e a um governo cuja maioria condenou as manifestações populares dos últimos anos e, em alguns casos, apoiou a repressão a elas.

Muitos neopetistas defendem abertamente a prisão de “vândalos”. Não deixa de ser sugestivo que o único aspecto positivo que a grande imprensa destacou ao mesmo tempo nos dois protestos de 13 e 15 de março foi o caráter “pacífico”. Embora as selfies com a tropa de choque e a apologia da Ditadura Militar não deixem de causar dúvidas… Apenas no dia 15 foram presos em São Paulo alguns “carecas” fascistas, logo soltos. Nenhuma palavra sobre Rafael Braga, o preso símbolo de junho de 2013.

RECUO ESTRATÉGICO

Apesar disso, os novos movimentos não deveriam ficar indiferentes à conjuntura. O ciclo recessivo de uma economia estruturalmente semi-estagnada, a nova estratificação social e as tensões políticas nas ruas também atingem o trabalho de base.

O lutador de rua é preso como criminoso comum, vândalo, associação criminosa e, possivelmente no futuro por terrorismo. Se até dirigentes petistas são selecionados entre a totalidade dos políticos corruptos do país para serem exemplarmente julgados, o que esperar para quem não possui a rede de apoio jurídico e parlamentar dos partidos estabelecidos?

A combinação de economias exportadoras de matérias-primas, demanda mundial crescente por elas e governos de centro-esquerda entrou em crise no Brasil, Argentina, Equador, Venezuela e talvez até na Bolívia. Em Honduras e Paraguai, extremamente periféricos, nem chegou a funcionar. A demanda dos países ricos pelas commodities esbarra, todavia, no fato de que aqueles governos latinoamericanos eram permeáveis também à mobilização popular por maiores compromissos do Estado com saúde, educação, transporte, agricultura familiar e livre de transgênicos e contra grandes obras destinadas à geração de energia para a economia primária exportadora e à construção de corredores de escoamento dos produtos exportáveis. Ainda que tais governos mantivessem intacto o grande capital.

Diante disso, o trabalho de base enfrentará maior hostilidade policial quando levar a protestos públicos, ocupações e manifestações nas ruas. O que fazer? A resposta não pode estar neste texto e sim na própria dinâmica dos novíssimos movimentos sociais. Eles continuarão seu trabalho silencioso na infraestrutura da sociedade civil. A aposta é que depois de junho vivemos um novo ciclo político no Brasil. A luta dos partidos continuará e alguns deles, se souberem fazer um aggiornamento à esquerda, continuarão importantes na superfície, mas como um corpo sem alma.

Mas no subterrâneo da política, há um espírito vibrante, ainda sem um corpo social. Como um espectro que nos ronda.

***

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente durante o ano de 2011. A partir de 2012, tornou-se colaborador esporádico do Blog.

7 comentários em O trabalho de base

  1. LUÍS GUILHERME TARRAGÔ GIORDANO // 03/04/2015 às 11:27 am // Responder

    (…) “A mais nova pergunta, caso a luta política venha a se acirrar será: são a favor do governo federal ou ficarão passiva e objetivamente ao lado dos fascistas? (…)
    O texto ajuda a confundir mais ainda, e o último dado pelo mesmo acima citado deve ser rejeitado por todos aqueles que pretendem lutar para construir uma alternativa independente do proletariado ao conjunto do regime político. Desgraçadamente! assemelha-se ao lema do pior período da ditadura militar, que foi no governo Médici: “AME OU DEIXE-O!” Ou seja, ou você é a favor do governo neoliberal de Dilma/PMDB/Levi, ou você está alinhado ao lado dos fascistas. Os trabalhadores são agora colocados numa camisa de força os quais são obrigados a suportar toda vez que se abrem os processos eleitorais, aonde as candidaturas são impostas aos eleitores, com definição antecipada de quem deve ser escolhido, entre os “principais” candidatos. Ou se apoia um governo que ataca brutalmente as condições de vida das massas para transferir a riqueza produzida pelos trabalhadores para meia dúzia de pançudos capitalistas!, ou você está alinhado aos fascistas! Ora, essa fórmula é surrada, estamos diante de um ultimato nada original. O stalinismo já realizou esta criminosa política na Revolução Civil Espanhola, só para citar aqui um dos inúmeros crimes cometidos por esta verdadeira excrescência contra-revolucionária! O pedantismo do autor é ímpar, e a confusão do texto ou é deliberada, ou é produto de uma ignorância completa! A rejeição ao bolchevismo é gritante, o que nos obriga a adjetivá-lo como uma mistura de anarquismo, stalinismo, e total descompromisso histórico e político. É melhor ficar com León Trótsky, e uma das suas tantas brilhantes obras: AS LIÇÕES DE OUTUBRO. Não à camisa de força entre a falsa polarização direita e esquerda! Por um programa e uma política anticapitalista, como primeiro passo para desenvolver a consciência das massas rumo à luta por um governo próprio dos trabalhadores!

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  2. LUÍS GUILHERME TARRAGÔ GIORDANO // 03/04/2015 às 11:31 am // Responder

    ERRATA do comentário: Aonde lê-se “último dado”, leia-se “ultimato”.

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  3. Boa reflexão de Lincoln Secco. Apenas uma pequena ressalva: há partidos, assim como sindicatos e movimentos sociais, que ainda, como sempre, fazem trabalho de base. Precisamos evitar o risco de idealizações, afinal, o próprio PT se fundou num sólido trabalho de base. É preciso refletir sobre as estratégias dentro das quais o trabalho de base se insere, antes como agora.
    Mauro Iasi

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  4. MURISTOCRACIA (o governo dos ratos)
    Albany Castro Barros (*)

    Em artigo publicado no Diário de Pernambuco, falei da origem greco-latina da palavra muristocracia, que significa o governo dos ratos para os ratos. Concitei o povo a reagir, organizar-se, cavar trincheira, visando combate aos muristocratas, a pior espécie de políticos de que se tem notícia. Aos malandros, pela periculosidade que representam, não se deve dar trégua. Eles se comprazem em empobrecer os cidadãos, pelo roubo; levá-los a pobreza, à miséria. Sabem que a indigência amolece, degrada a coragem, conduz o homem à eterna paciência, à indiferença, à capacidade de insubordinar-se. Mas a sociedade já desperta contra a pestilência que assola o país. Tem consciência que, quando os maus políticos roubam o Tesouro, estão roubando todos os 200 milhões de habitantes do país. Por isso são piores que bandidos comuns, que dirigem seus golpes contra uma única pessoa. Os muristocratas, de tão cínicos, não se comparam aos ladrões da Inglaterra do século 16, que roubavam para saciar a fome, e, mesmo assim, eram enforcados em grupos de vinte, conforme dá conta Thomas More, em Utopia. Estão longe do caráter e da sabedoria do rei de Macários, que jurou em sua coroação, como diz More, nunca ter no seu tesouro quantia superior a mil libras. Eles são insensatos, vaidosos de sua inteligência, das leis que criaram e criam para salvar a si próprios das garras da justiça, para blindá-los contra investigações policiais e processos judiciais. Protegem-se mutuamente, absolvem-se, quando flagrados em delito.
    Eles são os mesmos contumazes na corrupção, monstruosos, desprovidos de sentimentos, animais sem alma. Nem lhes dói quando alguém morre por falta de atendimento médico, na porta de um hospital, ou de fome e frio, na noite a céu aberto. São mil vezes piores e mais desprovidos de ética que Abel Magwitch, personagem de Grandes Esperanças, obra de Charles Dickens. Magwitch doou a fortuna para fazer nobre e honrado o garoto Pip, que lhe ajudara a fugir da forca, rompendo com uma lima as correntes que lhe prendiam as pernas. Os ratos muristocráticos, ao contrário, deixam sem escolas milhões de crianças, em razão de seus atos. Sustentam-se na injustiça, na pilhagem, no confisco, na mentira, na perversidade. Para eles, a dignidade dos governantes não está em governar homens livres, ricos, felizes, mas reinar sobre miseráveis, tolos, ignorantes, analfabetos. Os bandidos do Tesouro em nada se assemelham ao personagem Raskolnikov, de Dostoiévski, que assassinou as velhas porque grandes homens , generais, imperadores, também eram criminosos, também matavam inocentes. Os assaltantes do dinheiro público jamais terão a grandeza de Jean Valjean, ladrão humano, honrado, forjado na inteligência de Victor Hugo, injustamente condenado às galés por ter roubado um pão. Eles não têm limites. Enquanto toda sorte de misérias acontece às suas vítimas, cobrem-se de diamantes e consideram-se pequenos deuses.
    Arrogantes que são, não reconhecem a alegria que tem o espírito na contemplação da verdade, da honradez, da justiça, das coisas simples.
    Eles se comprazem na ladroagem, na riqueza fácil, no estelionato político.
    Riem do homem pobre, honesto, que trabalha até 14 horas por dia para levar cidadania e dignidade à família. Os muristocratas brasileiros, por pertencerem à elite política, incentivam outros criminosos, os não blindados, na medida em que lhes servem de espelho.
    Contribuem, assim, para o aumento da criminalidade e da insegurança. Que fazer diante de tanta covardia? Como combater esses inimigos da nação? Como salvar as vidas dos que estão a morrer por suas culpas? Como tornar respeitáveis as instituições públicas, se os ratos continuam fortes, desvairados, endêmicos? Para livrar o país dos corruptos, faz-se necessária uma revolução ético-moral e cultural. Faz-se necessário o povo na rua, pacífico, ordenado, consciente, protestando, exigindo punição para a imensa legião de malfeitores. Faz-se necessário o engajamento de todos os homens de bem, empresários, trabalhadores, sacerdotes, pastores, estudantes e, sobretudo dos miseráveis, desafortunados e injustiçados. Acorda povo brasileiro, as aves de rapina despertam cedo.
    (*) advogado e escritor revoltado com a roubalheira no Brasil

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  5. Fantástico texto, obrigado pela contribuição!

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  6. Questões Relevantes // 12/04/2015 às 9:36 am // Responder

    Lincoln Secco consegue a façanha de ser mais errado que Safatle. Estes dois apologistas do conflito, estes dois “sonhadores” da ditadura que liderarão com o “aggiornamento à esquerda”, fazem uma leitura estranha da realidade e estranha à realidade.

    Exagero? Vejamos este trecho:

    “A combinação de economias exportadoras de matérias-primas, demanda mundial crescente por elas e governos de centro-esquerda entrou em crise no Brasil, Argentina, Equador, Venezuela e talvez até na Bolívia. Em Honduras e Paraguai, extremamente periféricos, nem chegou a funcionar. A demanda dos países ricos pelas commodities esbarra, todavia, no fato de que aqueles governos latinoamericanos eram permeáveis também à mobilização popular por maiores compromissos do Estado com saúde, educação, transporte, agricultura familiar e livre de transgênicos e contra grandes obras destinadas à geração de energia para a economia primária exportadora e à construção de corredores de escoamento dos produtos exportáveis. Ainda que tais governos mantivessem intacto o grande capital.”

    Por que esta análise é uma coleção de bobagens? Vamos lá:

    1) Os governos citados, todos eles, entraram em “crises anunciadas” por todos que sabem que, na discussão entre a ideologia e a matemática, a segunda sempre acaba com a razão.

    2) A demanda dos países ricos, no que toca à energia e escoamento, esbarrou em escolhas ideológicas erradas, incompetência gerencial e falta de planejamento. No Brasil, por exemplo, os programas sociais não tiveram qualquer impacto negativo nestas áreas. Nem tampouco os gastos com saúde e educação lhes tiraram verbas. Esta é uma conclusão que desqualifica o autor para qualquer debate sério. Os problemas foram todos gerados por decisões equivocadas dos governos de turno. A culpa é deles, não dos países ricos. O nome disso é incompetência.

    3) Citar agricultura familiar na frase foi meramente uma carona ideológica. Este tema, no período analisado, foi irrelevante até como assunto.

    Há análises mais lúcidas no próprio campo da esquerda, como a de Antônio David decupando discurso de Safatle e analisada no artigo “COMPANHEIRO, VOU FAZER SUA AUTOCRÍTICA”: http://goo.gl/m1hzWv

    Há também uma contraposição comentada de dois artigos, um deles de Lincoln Secco, que pode ser lida aqui: O REACIONÁRIO E O LIBERTÁRIO: QUEM É QUEM?: http://goo.gl/FJZs0I
    Fica o convite para a leitura.

    Paulo Falcão.

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