Neodesenvolvimentismo e Estado neoliberal no Brasil

13.12.02_Neodesenvolvimentismo e estadoPor Giovanni Alves.

Os limites do neodesenvolvimentismo expõem um paradoxo curioso: governos pós-neoliberais, comprometidos programaticamente com o crescimento da economia e com a redistribuição de renda, preservaram e reforçaram nos últimos dez anos, os pilares do Estado neoliberal no Brasil. Na verdade, a persistência do Estado neoliberal no Brasil se contrasta com a perspectiva de mudança social alimentada pelo capitalismo neodesenvolvimentista. Nesse sentido, algumas observações metodológicas tornam-se necessárias: primeiro, distinguir heuristicamente, de um lado, governo e, de outro lado, Estado político do capital. Depois, caracterizar o Estado político em sua etapa desenvolvida como sendo constituído por um Estado restrito ou sociedade política, incluindo nessa dimensão restrita, sua estrutura burocrática; e por um Estado ampliado ou sociedade civil e seu sociometabolismo. Estas ferramentas conceituais são importantes para desvelarmos criticamente os limites e os paradoxos do neodesenvolvimentismo, primeiro, como novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil e depois, como frente política inspirada na ideologia do lulismo.

Nossa hipótese é que nos últimos dez anos de Lula e Dilma tivemos governos pós-neoliberais propriamente ditos que adotaram programas de crescimento da economia com aumento do gasto público e redistribuição de renda. É nesse sentido mais incisivo da programática política que eles podem ser considerados governos pós-neoliberais distinguindo-se, por exemplo, dos governos neoliberais da década de 1990. Desprezar a particularidade da nova conformação política neodesenvolvimentista, reduzindo-a, no plano de governo, ao neoliberalismo, como faz a extrema esquerda, é não apreender as nuances da luta de classes e os tons de cinza da dominação burguesa no Brasil.

Na verdade, as políticas de transferências de renda e gasto público visando diminuir as desigualdades sociais e fortalecer o mercado interno, distingue, por exemplo, o projeto neodesenvolvimentista do projeto neoliberal propriamente dita adotado na década de 1990 por FHC. Existem também diferenças entre neodesenvolvimentismo e neoliberalismo com respeito a políticas de combate a crise do capitalismo global, um tema importante tendo em vista que, o período do lulismo é o período da crise estrutural do capital. A frente política do neodesenvolvimentismo no ultimo governo Lula e Dilma recusou-se, por exemplo, a adotar políticas de austeridade, embora mantenham o tripé macroeconômico neoliberal (metas de inflação, câmbio flexível e superávit primário). Finalmente, existem diferenças entre a política do neodesenvolvimentismo e a política no neoliberalismo no plano geopolítico internacional. O primeiro – a diplomacia do neodesenvolvimentismo – alinhou-se aos BRICS e adotou uma postura independente com respeito à política exterior norte-americana (o que a distingue do alinhamento automático com os EUA operada pela diplomacia dos governos neoliberais).

Por outro lado, observamos, ao mesmo tempo, que os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma não alteraram essencialmente o metabolismo político do Estado neoliberal instaurado na década de 1990 no Brasil, seja em sua dimensão restrita, como sociedade política e estrutura burocrática; seja em sua dimensão ampliada: a sociedade civil e seu sociometabolismo. Enfim, os governos pós-neoliberais, imbuídos do espirito do lulismo e em nome da governabilidade, optaram pragmaticamente por reproduzir o Estado neoliberal herdado da década de 1990; e pior, preservar essencialmente o Estado brasileiro de feição oligárquico-burguesa oriundo da ditadura militar.

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As categorias “pós-neoliberal” e “neodesenvolvimentismo” que utilizamos para caracterizar o capitalismo brasileiro dos últimos dez anos, estão profundamente amesquinhadas em sua forma de ser pela força das trágicas circunstancias históricas de duas transições politicas conservadoras ocorridas no Brasil nos últimos trinta anos.

Primeiro, tivemos a longa transição para a democracia política ocorrida com a crise da ditadura civil-militar (1979-1985). Apesar da Constituição-cidadã de 1988, preservaram-se as estruturas da sociedade política oligárquico-burguesa com incrustações autocráticas (o livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira, publicado pela Boitempo Editorial em 2010, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle expõe com clareza a persistência da exceção brasileira apesar da redemocratização politica ocorrida no país).

Depois, tivemos a “transição” política para um novo projeto de desenvolvimento capitalista ocorrido em 2002, após o débâcle do modelo neoliberal implantado na década de 1990 no Brasil. Apesar do caráter pós-neoliberal da intencionalidade política do governo Lula, preservou-se a morfologia política e social do Estado neoliberal no Brasil, herdado da ditadura militar e dos governos neoliberais. Enfim, a força da inércia histórica da ordem burguesa no Brasil com as particularidades concretas de objetivação do capitalismo brasileiro (colonial-escravista e prussiano-dependente de cariz hipertardio), colaborou para as “transações” conservadoras pelo alto, principalmente num país capitalista, elo mais forte do imperialismo na América Latina.

O fenômeno político do lulismo, com seu “reformismo fraco” sem confronto com o capital (como diria André Singer) significa, de certo modo, a afirmação da incapacidade efetiva da esquerda brasileira de cariz social-democrata (o PT, por exemplo) em refundar o Estado político brasileiro tendo em vista principalmente a débil correlação de forças social e política entre capital e trabalho na sociedade brasileira, corroída e corrompida em seu metabolismo social por trinta anos de ditadura militar (1964-1984) e neoliberalismo (1990-2002). O amesquinhamento do reformismo hipertardio brasileiro, sob o nome de neodesenvolvimentismo, é expressão da miséria social e política da sociedade brasileira incapaz de ir além da ordem burguesa senhorial. Enfim, nas condições históricas adversas de enfrentamento social com a ordem do capital, optou-se irremediavelmente pelo trágica linha do menor esforço, preferindo-se operar, em nome da governabilidade, o “reformismo fraco” nas margens estreitas do Estado neoliberal.

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É importante salientar um dos traço “virtuosos” do estilo político do lulismo: combater a miséria sem confronto com o bloco de poder hegemônico do capital. O lulismo é o espírito hegemônico do projeto da socialdemocracia no Brasil que visa hoje compatibilizar, nos marcos da ordem burguesa neoliberal, um projeto de redistribuição de renda e combate a pobreza extrema e pobreza sem confronto com o capital. As virtudes políticas indiscutíveis do lulismo compõem, ao mesmo tempo, os limites do neodesenvolvimentismo. Isto é, o que salientamos como sendo os limites do neodesenvolvimentismo é a incapacidade orgânica da frente política pós-neoliberal que governa o País há dez anos em promover investimentos sociais de amplo espectro na educação, saúde, transporte publico e efetuar reformas sociais capazes de resgatar a dívida social secular, tendo em vista, em última instância, a manutenção e preservação da forma política do Estado neoliberal no Brasil.

Por exemplo, a preservação e manutenção do Estado neoliberal no Brasil se apresenta na notável incapacidade política dos governos pós-neoliberais de romper com o “circulo de ferro” do pagamento de juros e amortização da dívida publica subordinada aos interesses do capital financeiro (o governo federal enviou ao Congresso Nacional a previsão orçamentária para 2014 com a impressionante destinação de R$ 1,002 trilhão de reais para o pagamento de juros e amortizações da dívida, sacrificando todas as demais rubricas orçamentárias, como serviços de saúde, educação, transporte, segurança, assistência, etc.). O neodesenvolvimentismo encontrou seu limite crucial no sistema da divida publica, que exerce hoje um constrangimento sobre o projeto neodesenvolvimentista e sobre o orçamento publico da União. Ao aceitá-la como está, recusando-se, por exemplo, a fazer Auditoria-Cidadã da Divida Publica, em nome do respeito aos contratos, os governos pós-neoliberais optaram, sob a força das trágicas circunstancias históricas, por não questionar a ordem burguesa instaurada na década neoliberal.

Por isso, com a explicitação dos limites do neodesenvolvimentismo, o governo Dilma adota políticas contestadas de privatização do patrimônio público visando operar a lógica da governabilidade do Estado capitalista, nas margens estreitas do Sistema da Dívida. Na verdade, como observa Maria Lúcia Fatorelli, do Movimento pela Auditoria-Cidadã da Dívida Pública, a exigência de crescentes volumes de recursos para o pagamento de juros e amortizações da dívida tem impedido a realização dos investimentos necessários, o que tem sido utilizado como justificativa para a contínua e inaceitável entrega de patrimônio estratégico e lucrativo. Portanto,

“para continuar alimentando o sistema da dívida em âmbito nacional e regional, o governo sacrifica o povo com pesados tributos, ausência de retorno em bens, serviços e investimentos, e ainda rifa o patrimônio público”.

Na verdade, a blindagem financeira do orçamento público, do neoliberalismo ao neodesenvolvimentismo, é a garantia de que o Estado neoliberal, herdado de Collor e FHC e preservado nos dez anos de Lula e Dilma, tem mesmo por função estabilizar o valor dos ativos das classes proprietárias que compõem o bloco de poder neoliberal. Ao comprometer-se na “Carta ao Povo Brasileiro” a respeitar os contratos e, portanto, a não contestar a legitimidade do processo de privatização ocorrido sob os governos neoliberais, o governo Lula, fez uma escolha imbuído de pragmatismo politico – traço visceral do lulismo –, visando buscar a governabilidade mantendo (e fortalecendo) a estrutura política do Estado neoliberal no Brasil.

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Na verdade, o Estado neoliberal no Brasil constituiu não apenas o sistema da dívida, salientado por Fatorelli, mas constituiu também, por exemplo, os parâmetros da gestão macroeconômica neoliberal da economia (o tripé constituído pelas metas de inflação, câmbio flexível e superávit primário); ou ainda o sistema político e o cipoal de controle do gasto público (por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal); e o sistema das mídias hegemônicas – os meios de comunicação de massa, o oligopólio do quarto poder midiático que manipula a opinião pública. Eis, deste modo, os elementos compositivos do sistema intocável de constrangimentos estruturais do Estado neoliberal. O Estado neoliberal ergueu-se sob a base oligárquico-autocrática da Estado político do capital herdado da ditadura civil-militar. Existe uma linha de continuidade do sistema de dominação burguesa oligárquico-autocrática instaurada pela ditadura-militar e o Estado neoliberal no Brasil, preservado pelos governos pós-neoliberais.

Portanto, sob os constrangimentos da mundialização do capital no elo mais forte do imperialismo na América Latina, os governos pós-neoliberais deixaram intactos, deste modo, o complexo de sistemas de poder hegemônico e dominação burguesa no Brasil instaurado pela ditadura militar e apropriados pelo neoliberalismo nos últimos cinquenta anos de civilização brasileira.

Entretanto, o Estado político do capital preservado e mantido pelos governos pós-neoliberais no Brasil sustenta-se não apenas nos elementos sistêmicos discriminados acima (sistema da dívida, sistema da macroeconomia neoliberal sistema político e sistema mediático), mas implica também a própria estrutura burocrática do Estado brasileiro e o sistema de controle do metabolismo social herdado da ordem neoliberal.

Portanto, nossa hipótese principal é que o limite crucial da economia política do neodesenvolvimentismo é a sua incapacidade de ir além da forma política do Estado neoliberal, o novo Estado político do capital nas condições históricas do capitalismo flexível. Na verdade, os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma, não apenas preservaram e mantiveram a estrutura sistêmica do Estado neoliberal, mas a aperfeiçoaram, introduzindo, por exemplo, no corpus burocrático oligárquico do Estado brasileiro, novos modus operandi da modernidade flexível do capital (é o caso, por exemplo, da organização do trabalho da administração publica, a gestão flexível sob o espirito do toyotismo). Enfim, os governos pós-neoliberais mantiveram a estrutura orgânico-burocrática do Estado político, não alterando a dinâmica administrativa da máquina pública lastrada no poder do capital.

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É importante salientar que o Leviatã brasileiro mantem uma estrutura corporativa centralizadora que acumula vícios de praticas patrimonialistas sedimentadas em décadas de Estado oligárquico-burguês no Brasil. Embora os governos pós-neoliberais tenham buscado restaurar a estrutura administrativa do Estado brasileiro, sucateado durante a década neoliberal, ampliando, por exemplo, o quadro de funcionalismo publico, adotaram, ao mesmo tempo, a título de modernizar a maquina pública corrompida e ineficiente, métodos de gestão de matriz toyotista, informatização e centralização de processos de controle que reforçaram os vícios autocrático-burocráticos da máquina politico-estatal brasileira.

Deste modo, o lulismo optou por “modernizar o atraso”, recusando-se a promover uma democratização efetiva do aparelho estatal. Pelo contrário, observa-se a sobrevivência das antigas estruturas burocrático-administrativas do Estado brasileiro oriundo da ditadura militar. Como observou Gilberto Bercovici:

“a Constituição democrática de 1988 recebeu o Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Decreto-Lei 200/1967 no bojo do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), elaborado por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (11964-1967).”
(“’O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967”, O que resta da ditadura, p.78)

Portanto, do Estado Novo varguista (1937-1945) à ditadura civil-militar (1964-1985), não se alterou em seu âmago burocrático, a estrutura da maquina estatal no Brasil que serve há séculos à reprodução da ordem burguesa autocrática. O Estado brasileiro, distante do território nacional-popular (que o diga a construção de Brasília em 1961), é a expressão histórica suprema do poder político centralizado do capital nas condições de um capitalismo dependente hipertardio que formou-se enquanto Estado-nação reagindo contra (e compondo-se, ao mesmo tempo) com oligarquias regionais patrimonialistas. Deste modo, cultivou-se uma cultura burocrática ambivalente que, se por um lado admite a corrupção e trafico de influência entre interesses oligárquicos parciais, por outro, adota procedimentos de racionalização da máquina estatal e modernização da gestão da administração pública que aprofundam a alienação do trabalhador público e dos cidadãos-usuários dos serviços públicos.

A modernização tecnológica e organizacional do Estado brasileiro contribuiu efetivamente para reforçar os traços autocráticos do metabolismo politico do poder estatal alienado dos cidadãos-usuários do serviços públicos. Na verdade, todas as subversões ocorridas na história brasileira, do Estado Novo de Vargas ao Estado autocrático-militar instaurado em 1964, aperfeiçoaram a máquina estatal, em vez de a despedaçarem ou democratizarem. Os partidos que, cada qual por seu turno, lutavam pela supremacia, viam no ato de posse desse enorme edifício estatal a presa principal do vencedor, obcecado pelas figurações do inimigo, no limite, a própria nação, que precisa ser protegida contra si mesma – o povo, incontrolável e ameaçador.

Mesmo o neoliberalismo, ao manter a máquina burocrática, apesar de enfraquecê-la no tocante às políticas publicas, reforçou seus vieses de controle autocrático imbuído do imperativo gestionário. Os governos pós-neoliberais preservaram a máquina burocrático-militar, modernizando-a. Por exemplo, a adoção flagrante da gestão toyotista na administração pública é um exemplo de modernização conservadora do edifício estatal.

A Reforma Administrativa conduzida pelos governos neoliberais visava incorporar a lógica empresarial como prática administrativa do corpo burocrático estatal, mantendo-se no entanto, o modelo oligárquico na organização. O governos pós-neoliberais operam no interior do Estado neoliberal constituído a partir da Reforma Administrativa neoliberal. O caso do Poder Judiciário brasileiro é exemplar da modernização conservadora da res publica. Por exemplo, a adoção pelo CNJ (Conselho Nacional da Justiça) de práticas de gestão por metas, por exemplo, transformando tribunais em linhas de produção de sentenças, expressa o primado da gestão empresarial na coisa pública. Na verdade, o exemplo reforça o “princípio de subsidiariedade” incorporado na Constituição outorgada pelos militares em 1967 e 1968, que entendia o Estado como subsidiário da iniciativa privada. O próprio marechal Castelo Branco afirmou em sua mensagem ao Congresso Nacional em 1965 que desejava com a reforma administrativa, “obter que o setor público possa operar com a eficiência da empresa privada”.

A lógica de organização adotada pela modernização da administração pública sob a Reforma Gerencial inspirada em Bresser Pereira e preservada sob os governos pós-neoliberais incorporou o espírito da gestão empresarial que busca maximizar o lucro da empresa estatal, ao invés da persuasão do interesse público. Salienta Gilberto Bergovici (no livro O que resta da ditadura):

“A chamada ‘Reforma do Estado’ da década de 1990 não reformou o Estado […] não modificaram a administração pública ainda configurada pelo Decreto-Lei 200/1967, apenas deram uma aura de modernidade ao tradicional patrimonialismo que caracteriza o Estado brasileiro.” (p.89)

Paulo Arantes, nesse mesmo livro, é mais incisivo ainda quando afirma:

“Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela reforma administrativa de 1967, a constituição de 1988 incorporou todo aparelho estatal estruturado sob a ditadura”. (“1964, o ano que não terminou”, O que resta da ditadurap.221)

Portanto, existe uma linha de continuidade candente, com respeito à organização estatal-burocrática, entre Estado neoliberal e ditadura civil-militar. A reforma gerencial do Estado ocorrida nos governos neoliberais da década de 1990 e herdado pelos governos Lula e Dilma, apenas confirmam a normalidade brasileira restaurada.

Deste modo, podemos caracterizar o Estado neoliberal no Brasil como sendo um Estado politico-oligárquico, produto de reformas administrativas de cariz modernista (como adotadas no governo FHC) que encontra-se constrangido pelos interesses do capital financeiro e pelos interesses privados do bloco de poder (empreiteiras e grandes empresas oligopólicas nacionais e internacionais do ramo industrial-financeiro, agro-industriais e dos serviços). Na verdade, o Estado neoliberal é uma tecnologia de poder que, como observou Paulo Arantes, destina-se a “garantir a segurança jurídica da plataforma de valorização financeira em que nos convertemos no quadro da atual divisão internacional do trabalho da acumulação” – segundo ele, um regime de acumulação sob dominância financeira marcado pela discricionariedade, pelo compadrio e pelo privilégio.

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O Estado neoliberal é um Estado político corrompido pelas próprias condições da acumulação capitalista que envolve cada vez mais o Estado nas estratégias de espoliação (acumulação por espoliação). Nas condições de crise de valorização, a transferência de renda para setores parasitários rentistas por meio do Estado neoliberal tornou-se crucial para o grande capital – nesse caso, o Estado neoliberal apresenta-se como verdadeira “máquina de sugar fundos públicos”.

A cultura estatal-burocrática constitutiva do Brasil moderno impediu que tanto a esquerda quanto a direita pudessem efetivar uma crítica contundente do Estado político do capital – inclusive de seu sistema de representação política (que não discutimos aqui). Ou ainda: do Estado do capital como sistema de controle do metabolismo social – o Estado ampliado –, que iremos tratar no próximo artigo, quando discutiremos as classes sociais no neodesenvolvimentismo. O que explica, de certo modo, a incapacidade – pelo menos no plano da programática social e política – de apreender uma alternativa sociometabólica ao capital como modo estranhado de controle social.

A esquerda estatista tornou-se expressão ideológica da incapacidade hegemônica de ir além do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social. O melhor exemplo são os neokeynesianos que cultuam o Estado político para se contraporem às forças do mercado, colocando como força moral capaz de reformar ou humanizar o capitalismo. Eles não discutem, por exemplo, a “extinção” do Estado político, isto é, sua democratização radical. Pelo contrário, desprezam o metabolismo social estranhado que o Estado político representa em si e para si. Por outro lado, a direita oligárquica cínica, critica o Estado para afirmar o mercado como abstração alienada, ocultando que hoje o capitalismo acumula a maior parte de sua riqueza abstrata utilizando-se do Estado político. O Estado só é mínimo para o trabalho, mas é máximo para o capital.

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Portanto, a título de síntese, podemos caracterizar o Estado neoliberal brasileiro em sua dimensão restrita de sociedade política, incluindo a estrutura político-burocrática, como sendo constituído

  1. por um Estado oligárquico-corporativo que, a partir da década de 1990, fortaleceu-se como forma política, passando por um processo de modernização conservadora, caracterizada pela racionalização de procedimentos e controle, com introdução de sistemas informacionais e formas de gestão de cariz toyotista;
  2. por um Estado político constrangido pelo capital financeiro (o sistema da dívida pública) que mantém no cerne macroeconômico o tripé neoliberal: cambio flexível, metas de inflação e superávit primário. É importante salientar como pilar estrutural da nova ordem capitalista financeirizada, o sistema político e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que constrange o orçamento público priorizando, deste modo, o pagamento da dívida pública;
  3. por um Estado político burguês-patrimonialista permeável aos grandes interesses privados de grupos econômicos e políticos. Por exemplo, as renúncias fiscais da frente política do neodesenvolvimentismo contribuíram para enfraquecer a capacidade do Estado brasileiro de mudar a dinâmica do reformismo fraco atendendo a demandas sociais.

Por ser permeável aos interesses dos grupos econômicos privados, o Estado neoliberal fragiliza-se como res publica. Por exemplo, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman, diante das críticas da oposição sobre o descontrole fiscal do governo Dilma, afirmou em entrevista no jornal Folha de São Paulo de 05/11/2013:

“O problema do fiscal não é a despesa, é o baixo crescimento, conjugado com uma política agressiva de desonerações ao setor privado.”

Diz ela que em 2012 o impacto da desoneração federal foi de R$ 49,8 bilhões, ante os R$ 10,2 bilhões registrados em 2011. Em 2013, a desoneração federal vai atingir os R$ 80 bilhões! Ao mesmo tempo, manteve-se em dez anos o gasto com pessoal (4,6 em 2003 e 4,3 em 2013) – o que expõe a lógica da lean production [produção enxuta] aplicada ao Estado político; e aumentou-se a transferência de renda para programas de combate a pobreza e pobreza extrema, de 7,1% para 9,5% do PIB – o que explica, deste modo, o capital político do lulismo cuja lastro social encontra-se no proletariado pobre, base eleitoral hoje do Partido dos Trabalhadores.

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Leia tembém, Os imites do neodesenvolvimentismo, e a série “Neodesenvolvimentismo e precarização do trabalho no Brasilde Giovanni Alves, no Blog da Boitempo.

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O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

7 comentários em Neodesenvolvimentismo e Estado neoliberal no Brasil

  1. Lindo, ótimo. Porém, a esses ‘tons de cinza’ a ‘extrema esquerda’ (extrema esquerda?) vem alertando há um tempo razoável. Aliás, essa mesma ‘extrema esquerda’ não desconhece os parcos avanços dos governos do PT. A questão central está toda esmiuçada no artigo; mas, novidade, não é.

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  2. Excelente artigo! Creio que a distinção entre Governo pós-neoliberal e Estado Neoliberal seja um fator de extrema importância e uma superação das análises, tanto de defesa quanto de crítica aos governos do PT. Tanto a extrema esquerda oposicionista quanto à esquerda apoiadora, pelo menos nos textos que tenho conhecimento, não consegue distinguir esses dois fenômenos.

    Queria, se possível, que o Professor elencasse alguns elementos que levaram-o apontar uma modernização do Estado neoliberal com elementos toyotistas, no período dos governos neodesenvolvimentistas, pois achei bem interessante…

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  3. Excelente artigo! Creio que a distinção entre Governo pós-neoliberal e Estado Neoliberal seja um fator de extrema importância e uma superação das análises, tanto de defesa quanto de crítica aos governos do PT. Tanto a extrema esquerda oposicionista quanto à esquerda apoiadora, pelo menos nos textos que tenho conhecimento, não consegue distinguir esses dois fenômenos.

    Queria, se possível, que o Professor elencasse alguns elementos que levaram-o apontar uma modernização do Estado neoliberal com elementos toyotistas, no período dos governos neodesenvolvimentistas, pois achei bem interessante…

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  4. PÓS-NEOLIBERALISMO: FIM DO CAPITALISMO (?)

    Karl Marx acreditava que o capitalismo não subsistiria enquanto classe sociopolítica, exatamente por trazer, em si, como uma espécie de paradoxo essencial; como uma espécie de contradição interna; de unidade de contrários, a capacidade de, ao mesmo tempo, se desenvolver e desagregar membros sob a forma da produção da exclusão social; sob a forma da concentração de riquezas, cada vez mais, nas mãos de poucos e, portanto, enquanto “sociedade política”, nesse sentido, naturalmente seria incorporada pela “sociedade civil”, ou seja, desapareceria.
    Marx, dentro dessa perspectiva, não somente previu o fim do capitalismo, mas também idealizou o surgimento natural das sociedades socialistas, que, em contrapartida, a corrente não socialista afirma ser completamente utópica, ou seja, um ideal nunca, de fato, capaz de ser atingido na prática.
    Com base nos preceitos de Marx, as sociedades do século XX viram surgir, em diferentes continentes, como tentativas de se construir uma alternativa social frente ao capitalismo, diferentes formas de sociedades ditas comunistas e/ou socialistas, como a das chamadas repúblicas socialistas soviéticas (já decaídas no final do século XX), a da China, a e de Cuba e também muitas outras.
    Muitas dessas sociedades, todavia, receberam e, ainda hoje, recebem críticas substancias em relação não somente as suas reais viabilidades enquanto sociedades Socialistas, mas, também, quanto as suas fidedignidades aos ditos ideais de “sociedade perfeita” preconizados por Marx.
    Essas críticas não são somente feitas por parte dos representantes das alas Capitalistas, mas, também, ainda que em minoria inexpressiva, por parte dos que se dizem Marxistas, Neomarxistas e/ou Marxistas ortodoxos.
    A questão, nesse sentido, que por hora aqui se levanta, é:
    Se, como preconizou Marx, o capitalismo naturalmente desapareceria e daria lugar ao socialismo, não teriam essas ditas sociedades socialistas e/ou comunistas, erigidas no séc. XX, nas suas grandes maiorias, fracassado nesse ideal por terem sido justamente erigidas precocemente, antes do tempo, ou seja, terem sido erigidas antes das etapas previstas por Karl Marx para o suposto fim do capitalismo?
    E mais: estaria Marx certo quanto a essa questão sobre o fim do capitalismo?
    Cremos que, ao caminharmos em direção a resolução da segunda questão, a mais essencial, consequentemente estaremos também construindo meios plausíveis para a “problematização” da primeira, ainda que esse não seja, aqui, propriamente o nosso real e maior objetivo.
    Ainda assim, vamos a ela…
    Gramsci, com toda a sua magnitude intelectual, nos faz ver o problema sobre o dito suposto “fim do capitalismo”, preconizado brilhante e epistemologicamente fundamentado por Karl Marx, através de outro ângulo; por outra via; por outro sentido.
    Gramsci simplesmente inverte o “conceito de Sociedade civil” preconizado por Marx e, justamente ao inverter essa compreensão do conceito de “sociedade civil”, diferentemente de Karl Marx, fala-nos sobre o poder que a “sociedade política” tem, mesmo sendo quantitativamente inferior em relação à “sociedade civil”, de, através do controle e domínio da superestrutura (valores, cultura, etc.), transformar e solidificar os seus valores essenciais em conteúdos éticos de Estado, ou seja, torná-los e/ou transformá-los numa espécie de corolário de toda a sociedade.
    Nas sociedades do século XXI, principalmente no Brasil e na América Latina, tem ganhado força as teorias Pós-neoliberais um tanto quanto românticas, ou seja, que, entre outras coisas, preconizam que, após as sucessivas crises do capitalismo, em especial aquelas ocorridas na Europa no início do século XXI, as sociedades estão caminhando finalmente rumo à sistematização da equidade social, em escala planetária, pautadas na ideia também de que o fim do capitalismo está próximo, ou seja, reavivando os grandes ideais Marxistas de sociedade.
    Em países como o Brasil, por exemplo, como também em outros da América Latina, as seguidas eleições e reeleições, alcançadas democraticamente, através do voto popular, por presidentes progressistas, ditos de esquerda e, consequentemente, o avanço de políticas publicas significativas nessa direção, como a questão das cotas, por exemplo, ou seja, reservas legais de vagas, em universidades públicas, para etnias historicamente excluídas e para as de pessoas oriundas de diferentes grupos sociais excluídos, já é uma realidade jurídica nessas sociedades.
    Todavia, essa não é a única vertente sobre o sentido do Pós-neoliberalismo. Existe também aquela que, embora muitos a queiram chamar de pessimista, ela é, na verdade, realista, ou seja, não tão romântica e erigi-se justamente com base nos preceitos de Gramsci, apontadas também pelo cientista político italiano Norberto Bobbio, no seu livro “O conceito de sociedade civil” (1995).
    Nesse sentido, com base nos conceitos de “inversão do conceito de sociedade civil” em Gramsci, pode-se dizer, ao contrário da versão romântica sobre o Pós-neoliberalismo, já descritas acima, que, ele, o Pós-neoliberalismo, entre outras coisas, na realidade, ainda que muitos não consigam e/ou mesmo não queiram ver, está sintetizado no axioma de que:
    “Os valores do capitalismo estão sistematizados nas sociedades acidentais pós-modernas, instituídos estes como sendo os seus conteúdos éticos de Estado, de tal modo que os ditos cidadãos, dessas mesmas sociedades, têm internalizado esses mesmos valores em suas psiques, como se os mesmos fosses de fato seus”. (grifo meu)
    Isto é, em outras palavras, estando os indivíduos, dessas sociedades, com esses valores do capital conformados, mas agindo como se deles estivessem, de fato, livres: ou seja, agindo, inconscientemente, em prol deles, conformadamente , crendo-se estarem, todavia, hiper-conscientes.
    Nesse sentido, o Pós-neoliberalismo se traduz, também, como uma inversão de valores em favor da preservação do status quo liberal. Por exemplo:
    1- O cidadão se transforma em consumidor;
    2- O sucesso pessoal vira sinônimo de competência, inteligência e/ou qualidade extrema;
    3- A exclusão social se transforma em sinônimo de incompetência;
    4- A Inclusão social, por outro lado, se torna sinônimo do aumento do poder de consumo que, por sua vez, se confunde com o sentido do alcance de prosperidade ou riqueza;
    Nas questões políticas, o Pós-neoliberalismo segue o mesmo caráter trágico dessa inversão de valores:
    1- Políticas públicas se transformam em sinônimo de caridade;
    2- O Estado, ao invés de criar políticas públicas, cria estruturas para o desenvolvimento do capital e das políticas de consumo;
    3- Os ditos três poderes viram sinônimos de fantoches dos valores do mercado, ao aprovarem e fazerem cumprir leis que mantenham e sistematizem esse “status quo”.
    4- As sociedades capitalistas se unificam em escala global, unificando mercados, castrando qualquer princípio de respeito à diversidade, “Planetarizando ” e/ou Globalizando os processos de exclusão.
    Nesse sentido, diante dessa catástrofe social e humana, alternativas sociais, em tempos de exclusão e desencanto, urgem.
    Todavia, uma possível renovação social pela renovação do entendimento, soa-nos como mais um daqueles ideais que, quase todos, dizem-nos serem completamente utópicos e inviáveis na prática.
    Isso pelo fato de que, a Escola, de onde deveria nascer essa renovação do entendimento, está impregnada, como todas as outras instituições ideológicas do Estado, pelos valores do capital, especialmente por àqueles Individualistas e Meritocráticos, sob as bases do Neotecnicismo.

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  5. Adriano Correa Lima // 29/11/2014 às 4:34 pm // Responder

    Excelente artigo!

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  6. A partir de qual governo começou o neoliberalismo no Brasil? E antes, qual era o modelo? Sempre faço esse questionamento na escola e nunca obtive uma resposta satisfatória.

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    • Cleberson Eduardo da Costa // 14/10/2015 às 11:53 am // Responder

      De uma forma sistemática, a partir do 1º mandato do governo FHC, onde ampliou-se de maneira significativa os processos de privatização das estatais, o implemento de políticas assistenciais paliativas, o fomento a criação de ONGs, a ampliação das instituições de ensino privadas, o crescimento das organizações que vendem planos de saúde, etc., ou seja, a redução do Estado a mínimo, deixando-se agir livremente os mecanismos de mercado.

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