Neodesenvolvimentismo e classes sociais no Brasil

13.12.20_Giovannia Alves_Neodesenvolvimentismo e classes sociais no BrasilPor Giovanni Alves.

De 1979 a 1989, com a crise da ditadura civil-militar, a explosão do sindicalismo e a luta pela redemocratização politica, a sociedade civil brasileira assistiu um processo de ascensão das lutas de classes que construiu rudimentos do em-si e para–si da classe. Foi o período histórico de surgimento do PT e da CUT e a construção do sindicalismo de classe, comunidades eclesiais de base e movimentos populares de bairro. O processo social de luta social culminou na candidatura da Frente Brasil Popular em 1989, derrotada pelo candidato conservador Fernando Collor de Mello.

A ofensiva neoliberal da década de 1990 teve não apenas a função histórica de reestruturar o capitalismo brasileiro, mas de desmontar o metabolismo social construída na década passada. A verdadeira ruptura histórica ocorreu na passagem para a nova temporalidade histórica neoliberal dos anos de chumbo de Collor e FHC. Na década de 1990 o novo metabolismo social impulsionado pela ideologia da globalização e ofensiva ideológica do capitalismo global com a queda do Muro de Berlim e debacle da URSS abalou a ideologia socialista de que outro mundo é possível e impregnou a sociedade civil de valores neoliberais do individualismo e consumismo.

Na década neoliberal ocorreu a degradação dos valores do coletivismo e fragilizou-se o trabalho organizado em sindicato e associações, devido a expansão do desemprego e informalidade do mercado de trabalho. Na verdade, a década neoliberal forjou com a crise do mundo do trabalho a sociedade civil neoliberal. Naquele momento, tivemos a profunda insatisfação social das classes subalternas, principalmente do baixo proletariado composto em sua maior parte pelo subproletariado pobre. Alterou-se o padrão de sociabilidade das metrópoles brasileiros com o aumento exasperante da violência social. A degradação da sociabilidade devido o desemprego e a informalidade criou um caldo de irracionalidade social nas metrópoles brasileiras.

Por outro lado, a década neoliberal calcinou corações e mentes, afirmando no espirito da esquerda o pragmatismo politico e sindical que atuava como tendência hegemônica desde meados da década de 1980.   Na verdade, a década neoliberal significou mais uma etapa da revolução passiva que impulsiona a modernização hipertardio brasileira desde pelo menos a década de 1930. No começo da década de 2000, a sociedade civil brasileira desmontada pelo neoliberalismo, ainda conseguiu reagir, de modo espontâneo, à crise do modelo neoliberal, elegendo em 2002 o candidato da oposição: Luis Inácio Lula da Silva. Entretanto, o Brasil de 2002 não era o Brasil de 1989. Naquele momento, a eleição de Lula não era expressão das lutas sindicais e movimentos sociais, mas da inercia do jogo eleitoral nas condições da crise radical do modelo neoliberal da década passada. Apesar do debacle do modelo de desenvolvimento neoliberal, a cultura neoliberal, com seus valores conformistas e individualistas impregnava a sociedade civil.

Dez anos depois, percebemos que os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma não apenas não alteraram a dinâmica sociometabólica do novo capitalismo flexível, mas, pelo contrário, a impulsionaram de forma sistêmica. Nos anos do neodesenvolvimentismo, no bojo do choque de capitalismo ocorrido no Brasil, tivemos a expansão dos valores de mercado e disseminação da cultura do individualismo. Por exemplo, a lógica da gestão toyotista impregnou a organização do trabalho não apenas das empresas privadas, mas também da administração pública. O espirito do toyotismo disseminou-se na totalidade social, contribuindo para a “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital. Instaurou-se o que identificamos no livro “O novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil” como sendo o toyotismo sistêmico. Enfim, a disseminação dos valores-fetiches neoliberais prosseguiu na década de 2000 no bojo da dinâmica política dos governos pós-neoliberais.

A constituição da “nova precariedade salarial” no Brasil, caracterizada pelas novas tecnologias informacionais e gestão toyotista, ocorreu pari pasu com a disseminação do “modo de vida just-in-time” nas metrópoles no bojo da crise de mobilidade urbana em virtude do aumento da frota de veículos privados. Na verdade, o fetichismo da mercadoria ampliou-se e intensificou-se com o choque de capitalismo neodesenvolvimentista que exacerbou a oferta de crédito nas condições do capitalismo manipulatorio, propiciando o primado do consumo com impactos significativos na consciência contingente das massas carentes de modernização – no caso do Brasil, uma modernização periférica hipertardia que, nas condição históricas da crise estrutural do capital, assumiu uma dimensão catastrófica (o novo choque da forma-mercadoria nas condições do capitalismo brasileiro produziu nos anos de neodesenvolvimentismo impactos sócio-ambientais e impactos humanos de amplo espectro).

O poder da ideologia do capital assumiu proporções ampliadas na vida cotidiana do Brasil neodesenvolvimentista. Diante da incapacidade do partido de governo (o PT) formar opinião publica e auto-constituir-se como polo protagônico na luta ideológica, ampliou-se principalmente entre a nova geração (a geração Y), expectativas, sonhos e valores-fetiches de mercado disseminados pela indústria cultural – o que é próprio do “espirito do toyotismo” (vide o livro “Trabalho e Subjetividade”). Na verdade, o aprofundamento do estranhamento social, traço histórico compositivo da modernização periférica brasileira, oriunda de um capitalismo hipertardio dependente  de extração colonial-escravista e cariz prussiano, onde o historicamente novo sempre pagou um tributo ao historicamente velho, contribuiu para um novo salto na expansão do esvaziamento espiritual das massas urbanas expressos no crescimento na era do neodesenvolvimentismo das igrejas neopentecostais e ideologias da nova era e de auto-ajuda. Na verdade, a miséria espiritual tornou-se expressão do esvaziamento da pessoa humana nas condições do capitalismo de modernização catastrófica. Por exemplo, não deixa de ser sintomático que o Brasil tornou-se um dos maiores exportadores de igrejas evangélicas do mundo, sendo, deste modo, expressão do “ americanismo periférico” em fase catastrófica. É importante salientar a proliferação de programas de TV de apelo popular-sensacionalista de conteúdo imbecilizante, muitos deles de caráter fascista, reforçam a miséria espiritual das multidões imersas na condição de proletariedade.

Na medida em que os governos pós-neoliberais renunciaram a intervir democraticamente no sistema de comunicação social sob o controle das oligarquias de direita interessadas na manutenção da alienação cultural, tornaram-se não apenas reféns dos meios de comunicação de massa, mas coniventes com o processo de imbecilização cultural conduzida pela mídia burguesa hegemônica. Apesar disso, o statuo quo midiático sob hegemonia neoliberal não impediu que os governos pós-neoliberais elegessem seus sucessores políticos (Lula reeleito em 2006 e Dilma em 2010).

Por outro lado, nas últimas décadas de neoliberalismo e neodesenvolvimentismo, um contingente de “intelectuais orgânicos” da esquerda brasileira impregnaram-se do horizonte neoliberal ou perspectiva pós-moderna, diluindo, deste modo, a percepção e entendimento de classe, tornando-se incapazes de elaborar, no plano cognitivo, a critica do capital. Por exemplo, PT e CUT expressam nas ultimas duas décadas, a deriva ideológica da esquerda socialista, acompanhando a miséria ideológica da social-democracia européia, desde meados da década de 1980. Deste modo, o traço marcante da ofensiva ideológica do capital foi a perda do referencial de classe – o que denomino de “dessubjetivação de classe”. Isto é perceptível no discurso e prática da principal central sindical do país –  CUT – cujo pólo dirigente hegemônico adotou não apenas posturas neocorporativas, mas renunciou a assumir ideologicamente a perspectiva de classe (e luta de classe), trocando-a pelo discurso de cidadão (a ideia de sindicato-cidadão expõe a rendição ideológica que subverte a perspectiva simbólica da luta de classes).

Ao mesmo tempo, sob influencia da episteme pós-moderna, a própria classe foi fragmentada  em seus elementos compositivos. Por exemplo, o discurso de gênero, etnia/raca, juventude, diversidade sexual, etc, – legítimos como diversidade na unidade concreta do movimento da classe – autonomizaram-se no plano discursivo-ideológico, contribuindo efetivamente para a fragmentação de classe e a deriva da consciência de classe necessária. Enfim, a fragmentação de classe – como operação simbólico-ideológica – é um dos traços candentes da “desertificação neoliberal”, como diria Ricardo Antunes, caracterizando, deste modo, a morfologia social do salariato na temporalidade histórica neoliberal.

Portanto, a dinâmica sociometabolica que surgiu na década neoliberal não se alterou significativamente com o neodesenvolvimentismo; pelo contrario, se afirmou e consolidou-se como sendo o sociometabolismo da barbárie oriundo da década neoliberal. A era do neodesenvolvimentismo não conseguiu resgatar efetivamente a degradação moral-intelectual das massas ocorrida na década neoliberal. A ofensiva do capital na década de 1990 sob o neoliberalismo não foi apenas uma ofensiva do capital na produção, com a reestruturação produtiva; ou ofensiva do capital na política, com a vitoria sucessiva de governos neoliberais de Collor a FHC, mas foi principalmente uma ofensiva ideológica que aprofundou o atraso cultural-ideológico das massas, manipuladas pelos aparatos midiáticos.

Está claro que os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma, reduziram o desemprego e a informalidade do trabalho por conta do crescimento da economia em condições propicias do mercado mundial – pelo menos até 2009; reduziram a desigualdade social por conta das políticas de transferência de renda e gasto público. Entretanto, as mudanças positivas no campo da macroeconomia do trabalho, não alteraram significativamente a nova morfologia e o metabolismo social do trabalho nos anos do neodesenvolvimentismo. Portanto, quando salientamos que os governos pós-neoliberais não desmontaram o Estado neoliberal, significa que nos dez anos de neodesenvolvimentismo no Brasil, persistiu não apenas a sociedade politica oligárquico-burguesa herdada da ditadura civil-militar e da miséria do neoliberalismo, mas persistiu a sociedade civil neoliberal com suas trincheiras ideológicas que impedem o avanço ideológico das massas.

Entretanto, a dominação cultural neoliberal tem se explicitado nos limites do projeto neodesenvolvimentista com sua incapacidade de formar consciência política para alem do prosaísmo da dinâmica eleitoral. Por exemplo, ao tornar-se refém do sistema político – outro elemento do Estado neoliberal no Brasil – os governos pós-neoliberais acomodaram-se às “regras do jogo”, reiterando incisivamente a feição catastrófica  da modernização neodesenvolvimentista.

Como sociedade civil, a cultura neoliberal penetrou fundo nas almas das classes sociais. Na virada para a década de 1990, a ideia de globalização e a proclamação do fim do socialismo teve uma função regressiva no espirito das massas e da sua intelectualidade. A crise dos intelectuais críticos comprometidos com a utopia socialista é um dos elementos do metabolismo social da era neoliberal que prosseguiu sob os anos do neodesenvolvimentismo. O ideal socialista clássico do controle social dos meios de produção foi reduzido, no plano contingente, à utopia salarial do capitalismo organizado capaz de redistribuir riqueza e diminuir a desigualdade social. O neodesenvolvimentismo criou a ilusão de sustentabilidade da perspectiva social-democrata nas condições de crise estrutural do capital – uma social-democracia impregnada de social-liberalismo e amesquinhada ideologicamente pelas forças da ordem senhorial-oligárquica que caracteriza historicamente o capitalismo brasileiro.

O capitalismo global como capitalismo histórica da etapa de crise estrutural do capital, expõe na sua borda periférica a partir da década de 1990, projetos de modernização hipertardia que podem ser considerados formas de “modernização catastrófica” no sentido da catástrofe ambiental e catástrofe humana. É o caso dos BRICS (Brasil, Índia, China e Africa do Sul), “economias emergentes” que crescem  incorporando o padrão capitalista herdado do núcleo orgânico do sistema mundial do capital. A modernização catastrófica dos Brics apenas desloca a lógica do capital em sua dimensão catastrófica do centro para a periferia global. Da Ásia ao Brasil, o modelo de modelo de modernização catastrófica expressa os limites contraditórios  do neodesenvolvimentismo como limites do próprio capital – por um lado, buscam resgatar da pobreza extrema e pobreza milhões de homens e mulheres; mas por outro lado, reiteram o sociometabolismo da barbárie intrínseco à ordem burguesa tardia.

É importante salientar que o Estado neoliberal no Brasil em sua dimensão sóciometabólica constituiu-se no decorrer da década de 1990 no bojo dos imensos deslocamento de capital por conta das privatizações, reestruturação produtiva das empresas e a intensa manipulação midiáticos com os valores do individualismo. Em pouco mais de dez anos, o capitalismo brasileiro integrou-se aos ditames da mundialização do capital sob a dominância do capital ficticio, ocorrendo uma profunda reestruturação social que alterou os meandros da estrutura de classe e estratificação social no Brasil. Após caracterizarmos, em largos traços, o metabolismo social da sociedade brasileira nos anos do neodesenvolvimentismo, isto é, a persistência da sociedade civil neoliberal no Brasil, iremos delinear, grosso modo, algumas importantes mutações ocorridas na estrutura de classes sociais e nas representações políticas das classes e frações de classes no Brasil. Elas expõem os limites do projeto neodesenvolvimentismo no bojo da própria crise estrutural do reformismo social-democrata no plano mundial.

Em primeiro lugar, poderíamos dizer que, com o choque neoliberal da década de 1990, alterou-se o perfil das classes capitalistas com a maior integração dos interesses da burguesia nacional com o capital financeiro global, constituindo, deste modo, uma “burguesia interna” que perdeu o caráter nacional na consecução do desenvolvimentismo capitalista. Na verdade, o projeto nacional da burguesia integrou-se mais ainda na dimensão territorial do global (o que vinha ocorrendo desde fins da década de 1960). Foi essa metamorfose crucial da burguesia brasileira que fez, por exemplo, o PMDB perder – inclusive, literalmente – seu núcleo nacional-desenvolvimentista, que caracterizaram as lideranças históricas de um Ulysses Guimarães ou de um Severo Gomes. Nessas últimas décadas, o PMDB amesquinhou-se ideologicamente, tornando-se o maior partido fisiológico das oligarquias regionais, tornando-se mero partido de barganha da governabilidade da ordem burguesa hipertardia.

Por outro lado, a crise do modelo de desenvolvimento neoliberal em 2002 deslocou uma fração interna da burguesia brasileira – a “burguesia interna”, parte integrante do bloco neoliberal de poder – para uma composição politica com o PT e aliados de esquerda, representando frações do proletariado organizado, tendo como classe-apoio o subproletariado. Deste modo, compôs-se a frente política do neodesenvolvimentismo que sucedeu a frente política do neoliberalismo. Esta é a arquitetura política do lulismo.

Ao mesmo tempo, desde o choque neoliberal da década de 1990, o PSDB passou a representar o partido da burguesia financeira, núcleo orgânico do bloco de poder neoliberal, tendo como sua classe-apoio, a “classe media” conservadora e rentista. Na verdade, o PSDB herdou o novo locus da representação política da burguesia integrada à mundialização financeira; por outro lado, enquanto o PSDB assume à direita a gestão da ordem burguesa, incorporando cada vez mais, o espirito oligárquico do capitalismo senhorial brasileiro, o PT, na medida em que se posiciona cada vez mais para o interior da ordem burguesa, tende a disputar o campo da “classe media” progressista e da pequeno-burguesia democrática e burguesia nacional, outrora base politica do velho MDB, ao mesmo tempo que conserva, com algum desgaste politico, a representação da classe trabalhadora organizada – incluindo camadas médias assalariadas, base originária de sua representação politica (o que explica porque o PT adota cada vez mais um projeto de desenvolvimento democrático-burguês onde seu horizonte estratégico reduz-se ao crescimento da economia com ampliação do mercado interno e redistribuição de renda e combate a pobreza).  

Na verdade, ao adotar o projeto neodesenvolvimentista e a estratégia do lulismo, o PT deslocou de sua base de sustentação social, setores da “classe media” assalariada – principalmente, os trabalhadores públicos – indignados, por exemplo, com a Reforma do Previdência no primeiro governo Lula. Entretanto, manteve apoio de classe operária organizada do setor privado interessada no crescimento da produção e consumo e dos setores populares não-organizados interpelados pelos programas sociais de transferência de renda (o subproletariado como massa pobre era massa de manobra da direita – a grande arte política do lulismo foi provocar esse deslocamento eleitoral com custos para a identidade histórica do partido). Portanto, a frente política neodesenvolvimentista articulou setores da burguesia interna com setores dos trabalhadores organizados, principalmente da velha classe operária, e setores da massa popular. A aliança entre burguesia interna e os “pobres” é o cimento politico-ideológico do lulismo, estratégia politica da governabilidade neodesenvolvimentista que optou, nas condições de crise estrutural do capital e do sociometabolismo da barbárie, em não confrontar os interesses do capital financeiro.

É importante salientar que o deslocamento da base de representação politica do PT ocorrido na década de 2000 com a estratégia política do lulismo, corroeu efetivamente a base histórica do PSDB (o que explica o ódio visceram entre PT e PSDB – é a disputa pela ordem burguesa!).  O novo movimento do PT propiciado pelo lulismo, ao cravar sua inserção na ordem, interpelou não apenas os “pobres”, mas também uma fração importante da burguesia interna interessada no crescimento e acumulação do capital –  sendo ela própria  parte do bloco de poder neoliberal (o que explica os limites da frente política do neodesenvolvimentismo no combate ao Estado neoliberal). Ao mesmo tempo, a engenharia politica do lulismo construiu um arco pragmático de governabilidade, aliando-se com o PMDB, agremiação política esvaziada de seus conteúdos ideológicos e reduzida a interesses oligárquico-políticos (o que permite, deste modo, o jogo da barganha politica pela maioria parlamentar).

Portanto, a crise do neoliberalismo no começo da década de 2000 abriu um fissura no bloco de poder com o deslocamento de setores da grande burguesia que antes apoiaram historicamente a frente política neoliberal para a nova frente política neodesenvolvimentista, permitindo, deste modo, a construção da nova frente política e a chegada do PT e aliados ao governo. Entretanto, neodesenvolvimentismo possui seus próprios limites radicalmente contraditórios:  a arquitetura política não permite contestar o capital, embora tenha que responder pelas demandas sociais dos pobres.

Finalmente, é importante salientar que, na era do neodesenvolvimentismo, ocorreu mudanças importantes na estrutura das classes subalternas, tanto no plano da objetividade social, quanto no plano da subjetividade política, alterando-se, deste modo, com a persistência do sociometabolismo neoliberal, a consciência contingente da classe.

Por exemplo, como salientamos alhures, a nova conjuntura do lulismo implicou a entrada em cena dos “pobres”, interpelados pela frente política do neodesenvolvimentismo, dando, deste modo, base social e política ao novo projeto de desenvolvimento capitalista no Brasil. Os “pobres” não se tornaram mera massa de manobra eleitoral, como ocorreu no passado, quando foram interpelados pela direita oligárquica, mas tornaram-se efetivamente “sujeitos passivos” de anseios contingentes e sonhos salariais instigados pelas políticas de ampliação do mercado interno. A base social do lulismo é uma base real criada pelos programas de transferência de renda e gasto público que impulsionaram o emprego e o consumo. O contingente popular interpelado pelo lulismo é o subproletariado e o proletariado pobre não-organizado, camada da classe trabalhadora mais susceptível a inflação e ao caos da economia.

Deste modo, podemos dizer que, sob o neodesenvolvimentismo, ocorreu uma mobilidade social intraclasse, com uma parte do subproletariado tornando-se beneficiaria dos programas sociais como o Bolsa-Família e outra parte do subproletariado ascendendo à condição de nova classe trabalhadora que cresceu com a formalização contratual e a valorização do salario-minimo. Ao lado da grande burguesia interna, que apostou no novo projeto de crescimento com estabilização monetária, apoiando deste modo,  a manutenção  dos pilares do Estado neoliberal (como o tripé macroeconômico), o subproletariado e a nova classe trabalhadora tornaram-se o lastro político e social do lulismo.  Na medida em que a economia cresce, mantendo-se o emprego e o salário, o lulismo encontra apoio também de setores amplos da classe operaria organizada e trabalhadores manuais das metrópoles.

Entretanto, a nova conjuntura do neodesenvolvimentismo provocou a divisão ruptural e a deriva política das “classes medias”, tanto à esquerda, quanto à direita. Na verdade o neodesenvolvimentismo significou a frustração e o desamparo das “classes medias”, seja a “classe media” rentista de cariz tradicional-conservador, lastro da oposição neoliberal; seja a “classe media” assalariada do setor público, outrora base social e política do PT. Diante  disso, na era do neodesenvolvimentismo observou-se a incipiente radicalização política das posições da “classe media” incapazes de hegemonia social e política. Por um lado, temos a insignificância eleitoral das esquerdas radicais de inserção salarial media; e, por outro lado, a continua derrota  das posições da direita política oligárquica tradicional e rentista, base social dos mídia hegemônicos.

As “classes medias” brasileiras constituem-se, de um lado, por uma fração  rentista de feição conservadora constituída por profissionais liberais e trabalhadores por conta própria de mais alta renda, imbuídas pela ideologia neoliberal; e por outro lado, por uma fração assalariada que aufere rendimentos do Estado e que, nas ultimas décadas, proletarizou-se nas condições de vida e de trabalho; essa fração assalariada é composta também por uma camada social de trabalhadores públicos e privados que, na última década, ascendeu em status e prestigio. É importante salientar que no seio da “classe media” assalariada temos uma camada social que denominamos de “precariado”, composto por jovens de alta escolaridade com inserção salarial precária, verdadeira expressão dos limites estruturais do neodesenvolvimentismo.

Na verdade, a crise das “classes medias” no Brasil deu uma nova expressão à histórica cisão  política do proletariado como classe. O protagonismo passivo dos “pobres”, eleitos como vedetes do neodesenvolvimentismo – sua base eleitoral, excluiu objetivamente o conjunto da “classe media” – principalmente a “classe média” assalariada – do projeto de “Brasil para Todos” (por exemplo, o cinema expõe o drama da classe media aterrorizada pelos pobres – primeiro como marginais, no filme “O invasor” e depois como medo indefinido no filme “Trabalhar cansa”).

A nova estratificação social do proletariado na era do neodesenvolvimentismo expõe dois novos fenômenos de classe: por um lado, a ascensão dos “pobres”, um subproletariado coberto pelos programas sociais e uma nova camada da classe trabalhadora que ascendeu à formalidade salarial (a dita “nova classe media”); e por outro lado, o “precariado”, camadas medias do proletariado urbano constituída por jovens altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho e vida precárias que se inquietam, expondo necessidades e carecimentos radicais e apontam os limites do neodesenvolvimentismo como padrão  de desenvolvimento capitalista. Estes dois fenômenos sociais se explicitaram na era do neodesenvolvimentismo.

Os dois fenômenos do proletariado brasileiro expõe por um lado, a dimensão da utopia salarial que preserva a consciência contingente de classe – o Brasil como país carente de modernização burguesa alimenta perspectivas de inclusão social dos miseráveis que reitera o padrão destrutivo de desenvolvimento capitalista (aquilo que Robert Kurz denominou de “modernização catastrófica” ou István Mészáros de “produção destrutiva” , tanto no sentido ambiental, quanto no sentido humano) ; e por outro lado, apesar da dimensão contingente e as ilusões do consumo, status e prestigio, observa-se a ampliação da camada media do “precariado”, que explicita não apenas necessidades sociais, carecimentos radicais incapazes de serem realizados na ordem burguesa hipertardia.

Discutimos os limites do neodesenvolvimentismo como limites do novo padrão de desenvolvimento capitalista constrangido pela forma política do Estado neoliberal que persiste nos pouco mais de vinte anos de democracia politica no Brasil. Os governos pós-neoliberais não conseguiram ir além da forma política de dominação hegemônica burguesa instaurada no decorrer da década neoliberal. A persistencia do Estado neoliberal significou não apenas a persistência da sociedade politica como a estrutura de organização burocrático-administrativa do Estado brasileiro e estrutura de organização do poder lastreada no sistema político-judiciário e militar; mas significou também a persistência da sociedade civil neoliberal sob direção do sistema midiático de comunicação social e trincheiras dos aparelhos privados de hegemonia que disseminam os valores-fetiches, sonhos e expectativas de mercado.

Entretanto, os governos do neodesenvolvimentismo como novo modo de desenvolvimentismo capitalista monopolista no Brasil não são apenas constrangidos pelo Estado neoliberal em sua capacidade de realizar as promessas de bem-estar social e democratização politica, mas eles criam a própria estratégia de governabilidade no interior da qual operacionalizam seus programas de governo interpelando classes e frações de classes com suas representações politicas.

O lulismo é a estratégia de governabilidade dos governos neodesenvolivmentistas dos últimos dez anos onde se procurou construir uma engenharia politica capaz de promover o desenvolvimento da acumulação capitalista no Brasil e a redistribuição de renda por meio de programas de programas sociais, O combate às desigualdades sociais extremas ocorreu pari passu ao fortalecimento do mercado interno por meio do choque de crédito e valorização do salário-minimo. Adotou-se uma politica de crescimento da economia brasileiro nos marcos constrangedores da crise do capitalismo global e sob o signo da estabilização monetária, controlando a inflação com o tripe macroeconômico herdado da política neoliberal; incentivou-se o investimento privado pari passu o gasto público visando garantir o crescimento da economia como lastro das politicas de redistribuição de renda, privilegiando o combate a pobreza e a pobreza extrema; o lulismo procura conciliar reformismo fraco e preservação dos interesses do grande capital monopolista cuja burguesia interna, parceira do bloco de poder neoliberal, fornece o lastro da governabilidade na República brasileira. Enfim, o Brasil tornou-se com o neodesenvolvimentismo e o lulismo a última fronteira da modernização catastrófica que caracteriza o capitalismo global na fase histórica de crise estrutural do capital.   

 

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Leia tembém, Os limites do neodesenvolvimentismo e Neodesenvolvimentismo e Estado neoliberal no Brasil, e a série “Neodesenvolvimentismo e precarização do trabalho no Brasilde Giovanni Alves, no Blog da Boitempo.

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O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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