O lado obscuro da democracia

13.09.26_Izaías Almada_O lado obscuro da democraciaPor Izaías Almada.

A foto acima, que ilustra o artigo, poderia ter sido mais emblemática se as cinco damas globais tivessem tomado emprestadas, dos cinco juízes que votaram desconhecendo as leis e a constituição brasileira, as suas togas negras. Seria o corolário natural de quem se deixa levar pelo “efeito manada”.

Senhoras atrizes: se pudéssemos reduzir a grandeza da história do teatro universal a apenas três períodos de sua rica e inesgotável criatividade, penso que não estaríamos faltando à verdade citando os trágicos gregos, o teatro elisabetano e o teatro alemão entre guerras, destacando-se – para ilustrar esse artigo – as figuras de Sófocles, Shakespeare e Bertolt Brecht.

Usando o binóculo do conhecimento histórico e especulando sobre o espaço poético de tais autores no tempo em que viveram, vamos nos deparar – entre outras – com a grandeza de personagens como Antígona (resistência ao autoritarismo), Lady Macbeth (a ambição pelo poder) e Mãe Coragem (o amor maternal contra a ignomínia das guerras). Três símbolos ou mitos se quiserem, de figuras femininas que, de uma ou de outra maneira marcaram o imaginário coletivo, contribuindo para a reflexão sobre a participação das mulheres em momentos emblemáticos da história da humanidade: a antiguidade clássica, o renascimento e a idade moderna com suas duas violentas guerras mundiais.

A alvorada do século XXI tem sido pródiga em mostrar a todos nós como a história do homem se repete ciclicamente, mas sempre renovada e retemperada pelos avanços da ciência, pelos novos e ao mesmo tempo eternos embates religiosos, pelas conquistas sociais, pelo domínio do processo produtivo, pelo poder político, pela difusão e também pela manipulação das ideias, pelos arquétipos de organizações da sociedade que se chocam e, sobretudo, pela luta de classes que se intensifica quando o homem, inúmeras vezes na contramão do progresso que conquista, procura ser cada vez mais o algoz do próprio homem.

Dentro desse cenário conturbado e pleno de contradições, o convívio entre povos e nações se torna cada vez mais sensível, por um lado à preservação sadia do meio ambiente e, por outro, ao desarmamento do espírito belicista e dominador com que alguns desses povos e dessas nações se colocam diante das demais. Em outras palavras: o mundo parece iniciar uma nova fase de reorganização geopolítica em que nações emergentes acumulam riquezas e poder de persuasão diante de nações que “dominaram” o planeta nos últimos duzentos, duzentos e cinquenta anos. Toda transição é difícil, todo novo parto uma incógnita…

O Brasil procura se adaptar, ainda como país emergente, a essa nova geopolítica, com seus erros e acertos, com mazelas seculares para resolver, mas com a vontade e a determinação de muitos de seus cidadãos, alguns deles pagando o alto preço da incompreensão, da inveja, do cinismo, dos moralistas de ocasião, dos analistas do nada, dos filósofos de alcova, da soberba e da arrogância praticadas à esquerda e à direita do nosso espectro político.

O já emblemático julgamento da AP 470, que ultrapassou os limites de sobriedade, de discernimento e de competência de boa parte dos ministros togados, vai escancarando para o país a arapuca em que se meteu o Supremo Tribunal Federal ao criminalizar a ação de um partido político e alguns de seus principais integrantes, enfiando goela abaixo da nação, com o apoio e a conivência da imprensa, a noção de que é preciso punir exemplarmente “o maior caso de corrupção na história política do país”. E assim, qualquer ação nesse sentido, mesmo a mais inescrupulosa, vale a pena. A ambição de Lady Macbeth subiu a algumas cabeças mais conservadoras…

Contudo, consoante os ensinamentos aristotélicos sobre a tragédia, a obsessão leva inevitavelmente a uma falha trágica e esta, como se poderá verificar no vídeo abaixo, fica por demais evidente na atuação e no comportamento dos ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, provocando a reação de Antígonas que vão surgindo aqui e ali à procura da justiça.

Uso o exemplo e a metáfora teatral por saber que, como boas atrizes que são, conhecem com alguma propriedade a estrutura das grandes tragédias. E vivemos uma no Brasil de hoje.

O lado obscuro da democracia a que me refiro no título não se confunde apenas com aqueles que procuram usar as liberdades democráticas para “impor” quase que autoritariamente os seus pontos de vista, nesse paradoxo tão ao gosto das almas oportunistas. Refiro-me também a uma parte da esquerda brasileira que, como Pilatos, tem lavado as mãos há quase dez anos diante da crucificação e execração pública de antigos companheiros.

Alguém já disse há dois mil anos, alguém que foi escolhido para morrer no lugar de Barrabás, o ladrão: aquele que não tem pecados, que atire a primeira pedra. O homem e suas contradições devem sempre ser vistos numa perspectiva histórica de transformação. Quando perdemos o sentido dessa perspectiva corremos o risco de nos agarrarmos a valores estratificados. E a moral burguesa é um desses “valores”. Brecht demonstrou isso com enorme clareza. Sua Mãe Coragem é um hino ao contraditório.

Senhoras atrizes, amigos leitores, sugiro que reflitam sobre o vídeo abaixo. No âmbito da Justiça (com J maiúsculo mesmo), o contraditório não deve ser mera figura de retórica. Diante da acusação de um delito, todos nós somos inocentes até prova em contrário. E no caso da AP 470, onde estão as provas?

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Leia também sobre a AP 470 Justiça fora dos trilhosA síndrome Safatle/Dutra 1 e 2, As drogas e a direita causam dependência e E a presunção da inocência?, na coluna de Izaías Almada no Blog da Boitempo.

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

11 comentários em O lado obscuro da democracia

  1. Luiz Orquestra // 26/09/2013 às 9:03 pm // Responder

    Pensei muito em voce e aguardava ansioso um testo seu sobre asatuais”atrizes ” de sofás…..e de alzeimers “paus mandados” ….mandados até a tampa,,,,,

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  2. Caros Roberto PITTOLI // 26/09/2013 às 11:11 pm // Responder

    Mesmo sendo repetitivo, digo e redigo: esse é o Izaías do Vale Almada que conheço. Sua capacidade de demonstrar de forma simples, mas clara, o nó górdio em que se meteu o STF, em função de posições de pelo menos dois
    de seus “ministrinhos”: Barbosa e GMendes. Lamentável a tentativa de condenação ignorando-se o princípio do “in dubio pro reu”. Esse julgamento televisado mais parece dramalhão mexicano (nada contra los hermanos), tendo como resultado o achincalhe do maior tribunal do País. Pena que certos “ministrinhos” assim não o vejam. Grato, Izaías, por mais essa pérola.

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  3. Luiz Fernando Ribeiro da Luz // 27/09/2013 às 1:16 am // Responder

    “Refiro-me também a uma parte da esquerda brasileira que, como Pilatos, tem lavado as mãos há quase dez anos diante da crucificação e execração pública de antigos companheiros.” A quais “companheiros” os “crucificados” ouviram quando tomaram a decisão de fazerem alianças e politicaias tão espúrias? Quem foi realmente crucificado nessa história?

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    • Izaías Almada // 27/09/2013 às 6:53 pm // Responder

      Garanto ao Sr. Luiz Luz que o povo mais humilde do Brasil não foi o sacrificado. E as decisões foram decisões partidárias.. O senhor já fez ploítica algum dia? Sabe o que é enfrentar a “Big House”?

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      • Luiz Fernando Ribeiro da Luz // 06/10/2013 às 4:57 am // Responder

        Pois eu lhe garanto que ele continua sendo sacrificado! O superficial alívio concedido nos últimos dez anos, não lhes retirou da trilha do martírio perene, pelo contrário, sacramentou essa perenidade. Tal alívio é a confirmação de que o martírio não passará. E pra refrescar tua memória, quero lembrar que as mortes por acidentes de trabalho aumentam ano após ano, e neste ano baterão novo recorde; a situação dos povos indígenas não é menos desoladora; a violência contra as mulheres tão pouco é menor; a superexploração do trabalho é galopante; o descaso com a reforma agrária nunca foi tão grande, aliás, nunca estivemos tão longe de qualquer reforma; o extermínio da população negra nas periferias das grandes cidades não é menos terrível, inclusive nos Estados comandados pelo PT; a acumulação e centralização de capital (a relação social) nunca foi tão intensa, APENAS SUAS SOBRAS ALIMENTAM O QUE VOCÊ CHAMA DE AVANÇO; e os conluios políticos dos teus “heróis” tem sido os da pior espécie; etc. Você já trabalhou nalguma grande obra (dessas da copa, ou numa hidroelétrica) algum dia? Sabe o que é enfrentar o grande capital, nos patamares da massa de empregos gerados pelo governo Lula-Dilma? Aos milhares de brasileiros que continuam sucumbindo cotidianamente, não há a menor possibilidade de “fazer política”, e diante destes e seus tormentos eu nunca lavei as mãos! Tua ignorância sobre a realidade não é menos perversa que a babaquice das atrizes da globo.

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        • izaias almada // 09/10/2013 às 6:56 pm // Responder

          Por que é que o amigo não propõe uma revolução pelas armas?… Ou acha que esse discurso moralista resolve alguma coisa? Não tenho “heróis”, senhor Luz, tenho companheiros de luta de há muitos anos. E não tenho a minha cabeça feita pela revista Veja, pela rede Globo de televisão, e muito menos pela doença infantil do esquerdismo, se é que o senhor se considera um cara de esquerda, seja lá o que isso signifique hoje em dia.

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          • Luiz Fernando Ribeiro da Luz // 10/10/2013 às 4:02 am // Responder

            Nos dois comentários que escrevi acima, fiz várias perguntas. Nenhuma delas foi respondida. Na primeira respondestes meu comentário indagando se eu fizera política algum dia; na segunda, me acusou de discurso moralista por fazer uma pergunta na mesma tonalidade que a sua anterior; e, continuou esguiando-se com Veja, Globo e esquerdismo. No entanto, sobre os elementos de discussão que eu apresentei não destes uma palavra. Parece que a realidade da superexploração do trabalho e da centralização do capital, não lhe dizem respeito, são coisas de esquerdistas e de quem quer a revolução pelas armas. Continuastes ignorando a realidade como um todo, parece que só o “avanço” da amenização da miséria e o reacionarismo de Veja e Globo são reais pra você. Com ações políticas pautadas em tais ignorâncias, te garanto que em essência não diferes em nada dos “cabeças feitas” pela Globo e pela Veja. Quero lembrar-te que um destes “companheiros” de luta faz lobby para Carlos Slim, um monstro das telecomunicações, que controla operadoras de celulares, redes de televisões e outras companhias da informação que fazem Globo e Veja parecem miniaturas informacionais. Qual é a luta aí companheiro? Minhas armas!!!!

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  4. Archibaldo dos Santos Braga // 27/09/2013 às 11:21 am // Responder

    Izaias, meu amigo, Que paulada!!!! Braga

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  5. Heraldo Cosentino // 27/09/2013 às 1:38 pm // Responder

    O que nos estimula a seguir lutando por justiça e democracia são textos como esse, de clareza e objetividade indiscutíveis. A luta continua Companheiros.

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  6. Sempre votei no PT. Mas tenho o discernimento de perceber que a fé cega em um partido tem limites. Achar que o país caminha bem, que não existe corrupção e alianças nojentas que o PT fez para se manter no poder é, no mínimo, uma ignorância constrangedora. Já fui militante, já chorei e me matei em debates intermináveis para defender o PT. Hoje não tenho mais argumentos. O primeiro mandato do Lula foi incrível, quase perfeito. Porém acabou por ali. Os petistas e principalmente Lula se deixaram engolir pela sedução do poder e, sim, criaram a maior rede de corrupção e alianças porcas que o Brasil já teve. Nunca como brasileira me senti tão ultrajada por um governo e idiotizada por um governo como neste, que eu sempre votei e sempre admirei. Política não é religião, não é futebol…. Você pode mudar, você pode pensar sobre ela e deixar de lado paixões e visões distorcidas da realidade. Para mim, que me perdoem, estão vocês todos com uma venda nos olhos e eu temo e muito pelo meu país e para onde vocês, por uma paixão cega, irão levá-lo. Acho que terei que fazer como muitos colunistas esquerdistas que leio por aí: escrever do “estrangeiro “.

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  7. Cadê a tua resposta a LUIZ LUZ, caro Izaias Almada? O pior cego é aquele que não quer vê. NÃO SE PODE SERVIR A DOIS SENHORES, QUE O SEU SIM SEJA SIM E O TEU NÃO SEJA NÃO. SEM AMBIGUDADES E SEM CEGUEIRA POLÍTICA.

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