Guia de leitura | Ideologia: uma introdução | ADC#54

Ideologia: uma introdução
Marilena Chauí
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Margem Esquerda #44

Guia de leitura / Armas da crítica #54

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Quem é Marilena Chaui?

Marilena Chaui é professora sênior do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde começou a lecionar em 1967. Nascida em 4 de setembro de 1941, é especialista em história da filosofia contemporânea, produzindo importantes obras sobre as filosofias de Espinosa e de Merleau-Ponty. É doutora honoris causa pela Universidade de Paris 8 (2003) e pela Universidade de Córdoba (2004). Com vasta produção, é uma das mais importantes filósofas do país.

Foi entrevistada pela edição de número 13 da revista Margem EsquerdaIdeologia: uma introdução  é seu primeiro livro pela Boitempo.

“Vivemos a época da subordinação ao capital e, portanto, ao fetiche, da reificação e da alienação. Vivemos a época da plena generalização da ideologia que se apresenta, ideologicamente, como o ‘fim das ideologias’. Por isso a necessidade desta brilhante introdução à ideologia de Marilena Chaui.”

MAURO LUIS IASI

No cerne da questão ideológica atual

Partindo de forma precisa da concepção marxiana de ideologia, nossa querida filósofa não se contenta em perquirir atentamente a origem e o desenvolvimento histórico do assunto, o que faz com a maestria já conhecida. Nos conduz à questão essencial ao buscar a origem, seus fins, seus mecanismos e suas implicações históricas, isto é, políticas, econômicas e culturais.

No momento mesmo em que a sociedade do capital revela como uma fratura exposta suas contradições, a humanidade navega nas trevas do obscurantismo e os trabalhadores repetem como mantra ideias e valores de seus opressores como se fossem seus. Esse é o cerne da questão da ideologia, ou seja, o que nos leva a compreender sua eficácia e seu poder, ocultando a origem da divisão social em classes e a luta de classes. E remete ao seu fundamento: “A ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante tornam-se ideias de todas as classes sociais, tornam-se ideias dominantes”.

Mauro Luis Iasi

Professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. Colabora mensalmente com o Blog da Boitempo e apresenta, na TV Boitempo, o Café Bolchevique, onde discute conceitos-chave do marxismo à luz da conjuntura política.

Como se produz a ideologia?

Uma teoria exprime, por meio de ideias, determinada realidade social e histórica, e o pensador pode ou não estar consciente disso. Quando sabe que suas ideias estão enraizadas na história, pode esperar que ajudem a compreender a realidade de onde surgiram. Quando, porém, não percebe a raiz histórica de suas ideias e imagina que elas serão verdadeiras para todos os tempos e todos os lugares, corre o risco de, simplesmente, produzir uma ideologia.

De fato, um dos traços fundamentais da ideologia consiste, justamente, em tomar as ideias como independentes da realidade histórica e social, quando na verdade é essa
realidade que torna compreensíveis as ideias elaboradas e a capacidade que elas possuem (ou não) de explicar a realidade que as provocou.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.15]

“É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para compreender por que as pessoas agem e pensam de determinadas maneiras, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou transformá-las. Porém, novamente, não se trata de tomar essas relações como dado ou fato observável, pois nesse caso estaríamos em plena ideologia. Trata-se, pelo contrário, de compreender a própria origem das relações sociais e de suas diferenças temporais, ou seja, encará-las como processos históricos.”

MARILENA CHAUI

Origens do conceito

O termo “ideologia” apareceu pela primeira vez na França, após a Revolução Francesa (1789), no início do século XIX.

O sentido pejorativo dos termos “ideologia” e “ideólogo” veio de uma declaração de Napoleão, que, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, afirmou: “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história”. Com isso, Napoleão invertia a imagem que os ideólogos tinham até então de si mesmos: eles, que se consideravam materialistas, realistas e antimetafísicos.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.27 e 29-30]

O termo “ideologia” voltou a ser empregado com um sentido próximo ao do grupo dos ideólogos franceses pelo filósofo Auguste Comte em seu Curso de filosofia positiva.

A ideologia, enquanto teoria, passa a ter um papel de comando sobre a prática dos indivíduos. O lema positivista por excelência é “saber para prever, prever para prover”. Em outras palavras, o conhecimento teórico tem como finalidade a previsão científica dos acontecimentos, para fornecer à prática um conjunto de regras e normas, graças às quais a ação pode dominar, manipular e controlar a realidade natural e social.

Se examinarmos o significado final dessas consequências, perceberemos que nelas se acha implícita a afirmação de que o poder pertence a quem possui o saber. Por esse motivo, o positivismo declara que uma sociedade ordenada e progressista deve ser dirigida por aqueles que possuem o espírito científico, de sorte que a política é um direito dos sábios, e sua aplicação, uma tarefa de técnicos ou administradores competentes.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.30-33]

“Em suma, o positivismo anuncia, no século XIX, o advento da tecnocracia, que se efetiva no século XX. Veremos, com o marxismo, como a concepção positivista de ideologia é, ela própria, ideológica.”

MARILENA CHAUI

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.34]

Marx e a filosofia pós-hegeliana

Embora Marx tenha escrito sobre a “ideologia em geral”, o texto em que realiza a caracterização do termo tem por título A ideologia alemã. Isso significa que a análise de Marx tem como objetivo privilegiado um pensamento historicamente determinado, qual seja, o dos pensadores alemães posteriores ao filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

Esses filósofos tiveram a pretensão de demolir
o sistema hegeliano imaginando que bastaria criticar um aspecto da filosofia de Hegel
, em lugar de abarcá-la como um todo. Com isso, os chamados críticos hegelianos apenas substituíram a dialética hegeliana por uma fraseologia sem sentido e sem consistência (com exceção de Feuerbach, respeitado por Marx, apesar das críticas que lhe faz).

Os ideólogos alemães, além de fazerem o que todo ideólogo faz (isto é, deduzir o real das ideias), ainda imaginaram estar criticando Hegel e a realidade alemã simplesmente por terem escolhido novas ideias, que, como demonstrará Marx, não criticam coisa alguma, ignoram a filosofia hegeliana e, sobretudo, ignoram a realidade histórica alemã.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.37-38]

“Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição. Porém, Marx demonstra que a contradição não é a do espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetiva, entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em ideias. A contradição se estabelece entre seres humanos reais em condições históricas e sociais reais e chama-se luta de classes.

MARILENA CHAUI

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.50]

“Muitas vezes, o pedreiro que faz a escola e o marceneiro que faz as carteiras e mesas não têm condições de enviar os filhos para a escola que foi por eles produzida. Essa é a contradição real, da qual a contradição entre a ideia de ‘direito de todos à educação’ e uma sociedade que ainda possui tantos analfabetos é apenas o efeito ou a consequência.”

MARILENA CHAUI

Por que os dominados não se revoltam?

A divisão social do trabalho, ao separar os indivíduos em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia.

Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. Através do direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do direito ou das leis é fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e, por ser legal e não violenta, deve ser aceita.

Se o Estado e o direito fossem percebidos nessa realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados, e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.86-87]

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. […] As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes aprendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.”

KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS

em A ideologia alemã

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A quase invisível “ideologia da competência”

Ao despojar o trabalhador do conhecimento da produção completa de um objeto, a organização divide e separa os que possuem tal conhecimento – os gerentes e administradores – dos que executam as tarefas fragmentadas – os trabalhadores. Com isso, a divisão social do trabalho faz-se pela separação entre os que têm competência para dirigir e os incompetentes, que só sabem executar.

A ideologia da competência, como toda ideologia, oculta a divisão social das classes, mas o faz com a peculiaridade de afirmar que a divisão social se realiza entre os competentes (os especialistas que possuem conhecimentos científicos e tecnológicos) e os incompetentes (os que executam as tarefas comandadas pelos especialistas).

A ideologia da competência realiza a dominação pelo descomunal prestígio e poder do conhecimento científico-tecnológico, ou seja, pelo prestígio e poder das ideias científicas e tecnológicas.

Não é qualquer um que tem o direito de dizer alguma coisa a qualquer outro em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente, portanto, é aquele proferido pelo especialista, que ocupa uma posição ou um lugar determinados na hierarquia organizacional, e haverá tantos discursos competentes quantas organizações e hierarquias houver na sociedade.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.108-110]

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Formas ideológicas do mundo informatizado

A globalização da produção econômica engendraram dois fenômenos contrários e simultâneos: de um lado, a fragmentação e a dispersão espacial e temporal da produção; de outro, sob os efeitos das tecnologias eletrônicas e de informação, a atopia ou a compressão do espaço – tudo se passa aqui, sem distâncias, diferenças ou fronteiras – e a acronia ou compressão do tempo – tudo se passa agora, sem passado e sem futuro.

Do ponto de vista subjetivo, a acronia e a atopia do virtual, manipulado incessantemente pelos usuários dos objetos digitais (que funcionam na ponta de nossos dedos e no movimento incessante de nossos olhos), produzem o sentimento de que existir é ser visto, dando origem a uma subjetividade narcisista que, como já explicara Freud, é uma subjetividade depressiva.

Ora, do ponto de vista objetivo, é evidente a urgência de saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se levam em consideração a concentração e a centralização da informação.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.120-121]

“É exatamente por isso que podemos falar numa ideologia neoliberal definida por três grandes lógicas simultâneas: a lógica da circulação das mercadorias, no lugar da lógica da produção; a lógica da informação e da comunicação, no lugar da lógica do trabalho; e a lógica da satisfação-
-insatisfação dos desejos individuais na sua intimidade
, no lugar da lógica da luta de classes.”

MARILENA CHAUI

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Neoliberalismo e tecnocracia

Sabemos que o movimento do capital tem a peculiaridade de transformar toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, e por isso mesmo produz um sistema universal de equivalências, próprio de uma formação social baseada na troca de equivalentes ou na troca de mercadorias pela mediação de uma mercadoria,
sendo o dinheiro o equivalente universal.

Tendo isso em vista, a prática contemporânea da administração capitalista parte de dois pressupostos: o de que toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável de fato e de direito; e o de que os princípios administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo
equivalentes, são regidas pelas mesmas regras
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Uma sociedade de mercado produz e troca equivalentes, e suas instituições são, por isso mesmo, equivalentes também. É isso que se costuma batizar de “tecnocracia”, isto é, aquela prática que julga ser possível dirigir a escola, o hospital, a universidade, um centro cultural segundo as mesmas normas e os mesmos critérios com que se administra uma montadora de automóveis ou uma rede de supermercados.

A prática administrativa se reforça e se amplia à medida que o modo de produção capitalista entra em sua fase neoliberal contemporânea.

[IDEOLOGIA: UMA INTRODUÇÃO, p.139-140]

“Se quisermos resumir o que é a ideologia, podemos considerar que se trata de um pensamento e de um discurso cuja peculiaridade se encontra no fato de que são feitos de lacunas e silêncios; assim, se preenchermos as lacunas e os silêncios, ela se autodestrói, pois seu poder está em silenciar ou ocultar as contradições do modo de produção capitalista, a exploração econômica, o controle social e a dominação política do capital sobre o trabalho, ou da classe dominante sobre a classe trabalhadora.”

MARILENA CHAUI

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos uma entrevista com a autora publicada na Margem Esquerda #13, considerações de Roberto Schwarz sobre a ambientação das ideias modernas no Brasil, publicadas na coletânea Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil e um capítulo de Marx e Engels como historiadores da literatura, de György Lukács, em que aborda as consequências ideológicas das revoluções de 1848.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Marilena Chaui

Entrevista por Francisco de Oliveira, Rodrigo Nobile, Olgária Matos e Wolfgang Leo Maar


Roberto Schwarz

Cuidado com as ideologias alienígenas


György Lukács

Marx e o problema da decadência ideológica

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Marilena Chaui, Mauro Iasi e mediação de Lindener Pareto; uma entrevista da autora ao programa Dando a Real com Leandro Demori, na TV Brasil; além de um vídeo da série #LéxicoMarx em que Mauro Iasi explica o conceito marxiano de ideologia.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

A ideologia alemã, de Karl Marx e Friedrich Engels

O capital, de Karl Marx

A nova razão do mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval

Ideologia, de Terry Eagleton

O essencial de Marx e Engels, organizado por Marcello Musto

Palavras-chave, de Raymond Williams

Moderno de nascença: figurações críticas do Brasil, organizado por Benjamin Abdala Jr. e Salete de Almeida Cara

Margem Esquerda #36 | Capitalismo digital? 

Rádio Boitempo: Acervo Boitempo #1: Breve história da democracia, com Marilena Chaui, jun. 2022.

A Terra é redonda: ATR entrevista Marilena Chaui (parte 1 e parte 2), com Marilena Chaui, out. 2024.

Rádio Boitempo: Megafona #2: Rita von Hunty lê Palavras-chave, de Raymond Williams, com Rita von Hunty, jul. 2022.

Café filosófico: Espaço, tempo e mundo virtual, com Marilena Chaui e Olgária Matos, mar. 2017.

Filosofia: Neoliberalismo: a nova forma do totalitarismo, com Marilena Chaui, ago. 2021.

Rádio Boitempo: Léxico Marx #1: O que é ideologia?, com Mauro Iasi, jun. 2022.

Trabalho em plataforma e a ilusão de autonomia, com Marilena Chaui, TV Boitempo.

A dialética da luta de classes, com Marilena Chaui, TV Boitempo.

III Curso Livre Marx e Engels – A ideologia alemã, com Emir Sader, TV Boitempo.

Para conhecer a obra de Marx, com Leda Paulani e Marilena Chaui, TV Boitempo.

A originalidade do conceito de ideologia em Gramsci, com Guido Liguori, TV Boitempo.

O poder da ideologia, com Ester Vaisman, TV Boitempo.

Breve história da democracia, com Marilena Chaui, TV Boitempo.

Rita von Hunty lê Ideologia, de Terry Eagleton, com Rita von Hunty e Dimitra Vucana, TV Boitempo.

A servidão do trabalhador segundo as leis da economia política“, por Karl Marx, Blog da Boitempo, nov. 2024.

Pela graça de Deus: o “autoritarismo social” como origem e forma da violência no Brasil“, por Marilena Chaui, Blog da Boitempo, jun. 2021.

Crítica e ideologia em tempos de “pós-verdade”“, por Christian Dunker, Blog da Boitempo, mai. 2017.

O ovo do pato: notas sobre ideologia no capitalismo decadente“, por Mauro Iasi, Blog da Boitempo, abr. 2024.

Contra o fatalismo histórico: os 180 anos das ‘Teses sobre Feuerbach’“, por Maurício Vieira Martins, Blog da Boitempo, abr. 2025.

A edição de conteúdo deste guia é de Carolina Peters e as artes são de Mateus Rodrigues.