Guia de leitura | África Vermelha | ADC#55

África Vermelha: resgatando a política negra revolucionária
Kevin Ochieng Okoth

Guia de leitura / Armas da crítica #55

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Quem é
Kevin Ochieg Okoth?

Kevin Ochieg Okoth é escritor e pesquisador. Vive em Londres, onde integra o coletivo editorial Salvage, e colabora regularmente com a London Review of Books. É mestre em teoria política pela Universidade de Oxford e estuda temas relacionados ao anti-imperialismo e aos movimentos anticoloniais. É um dos editores fundadores da revista Nommo.

O real sentido de uma política negra revolucionária

O século XX foi celeiro da práxis revolucionária anticolonial, em que as lutas por libertação africana se associavam ao antirracismo nas Américas e às reivindicações de soberania política de outros povos ao redor do mundo. No entanto, a repressão sistematizada pelas potências ocidentais, o assassinato de lideranças, a capitulação de políticos do Sul global e a emergência da ordem neoliberal enterraram o sopro transformador vindo da Conferência de Bandung em 1955. Para concretizar sua vitória, a lógica neocolonial do capital silenciou essa tradição rebelde, seja pelo apagamento das suas bases marxistas, seja pela bajulação da descolonização de gabinete, descolada do destino das maiorias planetárias.

Para enfrentar o rebaixamento teórico e estratégico, Kevin Okoth resgata a tradição socialista e comunista da libertação nacional africana. Amílcar Cabral, Andrée Blouin, Mario Pinto de Andrade, Maryse Condé, Eduardo Mondlane e outros formam um legado afromarxista que nos ajuda a lidar com os becos sem saída contemporâneos, em especial quando a crítica anticolonial é reduzida a reflexões solipsistas, atrativas a um mercado editorial mais preocupado com os lucros da “pedagogia branca” do que com a destruição dos fundamentos racistas do capitalismo.

Marcos Queiroz

Membro do Instituo Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP)

“Num momento em que o antirracismo se encontra em uma encruzilhada entre sua acomodação liberal e a perseguição aberta do fascismo, o passado-presente da África Vermelha ilumina os reais sentidos da política revolucionária negra — e por que ela ainda é e deve ser temida pelo imperialismo.  “

MARCOS QUEIROZ

Resgatar a história revolucionária da luta antirracista

Acredito que as histórias de resistência anticolonial ainda têm muito a nos ensinar.

Há muito valor a ser encontrado, por exemplo, na perspectiva ecológica anticolonial de Amílcar Cabral; na defesa inabalável do marxismo como ideologia do Terceiro Mundo por Walter Rodney; na advertência de Andrée Blouin de que a libertação nacional não precisa estar vinculada às ideias estreitas de Estado-nação e à sua inclinação masculinista; ou na insistência de Eduardo Mondlane de que “raça” e racialização devem ser estudadas em relação a contextos históricos e sociais específicos.

À medida que a luta contra o imperialismo se intensifica — e enquanto testemunhamos as formas mais graves de violência imperialista no genocídio de palestinos por Israel em Gaza — devemos nos lembrar e nos inspirar nos movimentos anticoloniais e de libertação nacional que idealizaram um mundo mais justo.”

[ÁFRICA VERMELHA, p. 18]

O retorno do afropessimismo

Por décadas o afropessimismo se referiu à cobertura negativa dada à África nos meios de comunicação ocidentais, em especial às reportagens sobre o desenvolvimento interrompido da região. O novo afropessimismo (designado no livro como AP 2.0) não tem nada a ver com as espinhosas questões relativas à política africana pós-colonial.

O AP 2.0 é um discurso altamente teórico que tenta dar sentido à violência e à discriminação persistentes contra as pessoas negras, apesar das conquistas da Era dos Direitos Civis.

Para o AP 2.0, o racismo antinegro não é histórico ou contingente; em outras palavras, não pode ser superado com respostas às preocupações das pessoas negras na esfera política. Esse discurso, supostamente radical, impossibilita a ideia de uma política que nos permita transformar as relações sociais e imaginar um mundo diferente, um mundo melhor. Portanto, o que está em jogo no debate é a própria possibilidade de uma política revolucionária negra.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 20 e 22-23]

“Havia também a questão do apagamento de uma tradição política do marxismo da libertação nacional que produziu parte do pensamento político mais radical do século XX.”

KEVIN OCHIENG OKOTH

Olhar para o passado e imaginar o futuro

A expressão “África Vermelha” é usada para distinguir uma tradição revolucionária anticolonial da política reformista do socialismo africano. Enquanto os socialistas africanos tentavam se distanciar do marxismo e defendiam um socialismo de “terceira via”, enraizado na “cultura africana tradicional”, a tradição intelectual e política discutida aqui mostrava que o marxismo e o radicalismo
negro não eram incompatíveis
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“África Vermelha” designa uma tradição cujo ativismo vislumbrava um futuro pós-colonial diferente daquele que veio a se concretizar.

Espero mostrar que as políticas da África Vermelha não se esgotaram e que futuros anticoloniais ainda podem ser imaginados.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 25]


“Ainda podemos construir algo novo a partir desse pensamento político, algo que se apegue à promessa utópica de liberdade e se recuse a desistir.”

KEVIN OCHIENG OKOTH

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Um espectro ronda o Sul global…

Em abril de 1955, representantes de 29 países asiáticos e africanos se reuniram em Bandung, na Indonésia, para a primeira Conferência Afro-Asiática.

A Conferência de Bandung foi mais do que apenas uma celebração da recém-conquistada independência da Indonésia. Pela primeira vez, nações do Sul global puderam se reunir e discutir visões em comum de uma ordem mundial pós-imperial sem a interferência do Ocidente.

O “espírito de Bandung”, que expressava um sentimento de solidariedade entre o Terceiro Mundo e um dever de apoio mútuo, preparou o terreno para uma união cada vez mais estreita entre as nações africanas e asiáticas. E embora as conclusões políticas anunciadas no comunicado da conferência fossem vagas, Bandung inscreveu a ideia de Terceiro Mundo no imaginário político global.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 27-28]

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Terceiro mundo na mira do neoliberalismo

A ascensão do Terceiro Mundo coincidiu com o florescimento do pan-africanismo e da política internacionalista negra. A Conferência dos Povos Africanos, realizada em Acra (Gana) em dezembro de 1958, estava em consonância com o espírito de Bandung, mas sua agenda se dirigia diretamente às preocupações do ativismo anticolonial e negro da África e de sua diáspora.

Em 1975, porém, a era de Bandung chegava ao fim. Washington passou a “promover” — inclusive através de golpes de Estado — a implementação da doutrina econômica neoliberal em todo o Sul global. A economia das nações mais pobres foi reestruturada de acordo com os ditames das instituições “internacionais” controladas pelos Estados Unidos, como o FMI e o Banco Mundial.

O triunfo do neoliberalismo sinalizou também o
fim de um período frutífero do internacionalismo negro.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 30-34]

4 propostas para o anti-imperialismo
no século XXI

Para estabelecer uma nova forma de política anti-imperialista, Kevin Okoth propõe:

1) reavaliar as vitórias e os fracassos do marxismo da libertação nacional;

2) retornar à crítica da economia política para determinar como as nações mais pobres do Sul global podem superar sua integração periférica na economia mundial capitalista;

3) resistir à tentação de nos refugiar em
um particularismo romântico; ao contrário, devemos abraçar o materialismo histórico como um método para compreender melhor como o capitalismo governa por meio da hierarquia e da diferença;

4) criar novamente solidariedades anti-imperialistas cruciais entre as lutas revolucionárias do Norte e do Sul globais.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 46]


“Existe uma tradição do pensamento marxista que leva a sério o papel exercido pela raça na estruturação do mundo moderno e que reconhece que tanto o comércio escravista transatlântico como o racismo foram centrais para o desenvolvimento do capitalismo.”

KEVIN OCHIENG OKOTH

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Marxismo negro e novas análises sobre o desenvolvimento capitalista

O primeiro uso da expressão “capitalismo racial” se dá em um panfleto de 1976, escrito pelos marxistas sul-africanos Martin Legassick e David Hemson.

No fim da década de 1970, a posição oficial da Organização Internacional do Trabalho (OIT) era a de que existia um conflito entre o objetivo do crescimento econômico e a política de apartheid, e que o primeiro acabaria por minar e abolir a segunda. De acordo com a OIT, não havia necessidade de uma luta antirracista de massa — o próprio capital faria o trabalho necessário.

Legassick e Hemson discordavam. Eles mostraram que o racismo na África do Sul havia se intensificado à medida que a economia capitalista do país se tornava mais avançada.

O racismo do apartheid, portanto, não era um preconceito pré-moderno alheio ao capitalismo; era parte fundamental da lógica de acumulação do capital no país.

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Para Cedric J. Robinson, autor de Marxismo negro (1983), o caso da África do Sul não era uma exceção, mas a regra; todo capitalismo, argumentou ele, era racial.

Ao enfatizar o caráter combinado e desigual do desenvolvimento — ou, dito de outra forma, a coexistência de formas sociais, culturais e econômicas arcaicas e contemporâneas em uma formação social —, ele queria mostrar que o capitalismo tendia a preservar hierarquias arcaicas, em vez de erradicá-las.

O valor da obra de Robinson reside na capacidade de desvelar historicamente a relação contingente entre negritude e escravidão. Em Marxismo negro, a supremacia branca se mascara de lógica econômica, que, por sua vez, organiza a hierarquia racial, tendo em seu centro o trabalho racializado nas grandes propriedades monocultoras

[ÁFRICA VERMELHA, p. 81-82]

“Como força material, portanto, era esperado que o racismo permearia inevitavelmente as estruturas sociais emergentes do capitalismo.”

CEDRIC ROBINSON

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Por um Fanon revolucionário!

Embora a maior parte dos estudos sobre Frantz Fanon nos ajude a compreender melhor essa figura complexa que morreu jovem demais — ele sucumbiu à leucemia quando tinha apenas 36 anos —, os estudos fanonianos também deram origem a algumas interpretações estranhas, ou melhor, erradas de sua obra.

Há, por exemplo, a afirmação absurda do AP 2.0 de que devemos estabelecer uma clara distinção entre o Fanon pensador da negritude e o Fanon pós-colonial, ou que apenas o primeiro é o verdadeiro e, portanto, devemos ignorar seus escritos anticoloniais posteriores.

Em um ensaio de 1993, “A apropriação de Frantz Fanon“, Cedric J. Robinson já lamentava a utilização pequeno-burguesa de Fanon para justificar projetos intelectuais “pós ou antirrevolucionários”. Esses acadêmicos, leem de maneira seletiva partes das primeiras obras de Fanon, desconsideram seus escritos posteriores e ignoram completamente sua biografia.

Ao jovem Fanon, destacado e isolado de qualquer outro pensamento anticolonial, foi concedido um lugar confortável na torre de marfim.

[ÁFRICA VERMELHA, p. 123, 127-128 e 130]

“Fanon dedicou a maior parte de seus últimos anos à causa argelina. Para ele, era o início de um projeto universal de libertação dos povos colonizados que lhes permitiria passar por um processo de ‘desalienação‘ para que finalmente fossem livres.

A independência, esperava ele, produziria as condições mentais e materiais para a emergência de um novo sujeito descolonizado. Mas Fanon nunca chegou a testemunhar o resultado da guerra de libertação (que não foi exatamente o que ele esperava).”

[ÁFRICA VERMELHA, p. 135]

“Este livro serve como um lembrete de que nossas lutas estão sempre interligadas e que qualquer movimento socialista ou antifascista no centro imperialista deve tornar a libertação dos oprimidos no Sul global parte fundamental de seu projeto político.”

KEVIN OCHIENG OKOTH

Leituras complementares

Baixe os conteúdos complementares do mês em PDF!

Este mês trazemos o prefácio de Deivison Faustino aos Escritos políticos de Frantz Fanon; um discurso de Angela Davis, publicado em O sentido da liberdade, sobre as lutas antirracistas do século XX; além de um capítulo de Raça, nação, classe: as identidades ambíguas, em que Étienne Balibar comenta a formação das ideologias nacionais e a noção de etnicidade.

Clique nos botões vermelhos abaixo para fazer o download!

Deivison Faustino

A política dos “escritos políticos” de Frantz Fanon


Angela Davis

Relato do Harlem


Étienne Balibar

A forma nação: história e ideologia

Vídeos

Este mês trazemos o lançamento antecipado do livro com Matheus Gato de Jesus, Rosane Borges e Marcos Queiroz; um vídeo inédito em que Douglas Barros discute a importância de África Vermelha, apresentando em primeira mão aos assinantes do Armas da Crítica os principais argumentos do livro; o debate “O que pensava Marx sobre raça, gênero e colonialismo?”, com Michael Löwy, Jones Manoel e Gabrielle Nascimento; além da playlist Marx nas margens, em que Kevin B. Anderson explora temas pouco abordados na obra do filósofo alemão.

Para aprofundar…

Compilação de textos, podcasts e vídeos que dialogam com a obra do mês.

Como a Europa subdesenvolveu a África, de Walter Rodney

Escritos políticos, de Frantz Fanon

Raça, nação, classe: as identidades ambíguas, de Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein

O essencial de Marx e Engels, organizado por Marcello Musto

A guerra civil dos Estados Unidos, de Karl Marx e Friedrich Engels

O sentido da liberdade, de Angela Davis

O que é identitarismo?, de Douglas Barros

Colonialismo e luta anticolonial: desafios da revolução no século XXI, de Domenico Losurdo

Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais, de Kevin B. Anderson

Margem esquerda #27 | Marxismo e questão racial

Rádio Boitempo: Conversas camaradas #12: Luta anticolonial e democracia, com Juliana Borges e Walter Lippold, nov. 2023.

Rádio Boitempo: Megafone #6: Deivison Faustino lê O CAPITAL, de Karl Marx, com Deivison Faustino, nov. 2022.

Rádio Boitempo: Coleção Marx-Engels #6: A GUERRA CIVIL DOS ESTADOS UNIDOS, com Agnus Lauriano, dez. 2023.

Novara FM: In search of Red Africa [em inglês], com Kevin Okoth, nov. 2023.

London Review Bookshop: The Rebel’s Clinic [sobre as ideias psicanalíticas e trajetória biográfico-política de Frantz Fanon, em inglês], com Adam Shatz e Kevin Okoth, nov. 2023.

Capitalismo e racismo: uma análise estrutural, com Douglas Barros, TV Boitempo.

Os comunistas e a revolução anticolonial mundial, com Domenico Losurdo, TV Boitempo.

O marxismo é eurocêntrico?, com Jones Manoel, TV Boitempo.

Como a Europa subdesenvolveu a África, com Douglas Rodrigues Barros, Marjorie Chaves e Matheus Gato, TV Boitempo.

Imigração, racismo e resistência, com Angela Davis, TV Boitempo.

Playlist: Introdução ao pensamento feminista negro, com Raquel Barreto, Rosane Borges, Juliana Borges, Evilânia Santos, Stephanie Borges e Nubia Regina Moreira, TV Boitempo.

Nem afropessimismo, nem decolonialismo“, por Douglas Barros, Blog da Boitempo, mai. 2025.

Resgatar história da política negra revolucionária: 4 pensadores que você precisa conhecer“, por Blog da Boitempo, mai. 2025.

O real sentido da política revolucionária negra“, por Marcos Queiroz, Blog da Boitempo, abr. 2025.

Tomar para si a própria história: os escritos políticos de Fanon“, por Talíria Petrone, Blog da Boitempo, jun. 2021.

O lugar de Marx e Engels na modernidade: raça, colonialismo e eurocentrismo“, por Jones Manoel, Blog da Boitempo, jul. 2020.

Marx das margens ao centro“, por Marcelo Guimarães Lima, Blog da Boitempo, jun. 2020.

The Actuality of Red Africa” [em inglês], por Vijay Prashad e Mikaela Nhondo Erskog, Monthly Review, jun. 2024.

A edição de conteúdo deste guia é de Carolina Peters e as artes são de Mateus Rodrigues.