Entre a clínica e a política: conheça a obra de Maria Rita Kehl

Maria Rita Kehl na DR com Demori . Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Maria Rita Kehl é doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atua desde 1981 como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais, revistas e, é claro, também no Blog da Boitempo. No dia em que completa 74 anos, aproveitamos para recordar todas as obras da autora já publicadas pela Boitempo e Boitatá, e convidar ao mergulho nas relações entre política, história do Brasil e psicanálise.


Ressentimento, de Maria Rita Kehl
Nessa obra, que rapidamente se tornou referência incontornável para pensar os movimentos políticos atuais, Maria Rita Kehl mobiliza tanto as suas observações clínicas quanto conhecimentos de outras áreas para definir e explicar a constelação afetiva que forma o ressentimento. “Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer” — é desse modo que o ressentido se conduz a um beco sem saída: ao não assumir a responsabilidade sobre a própria situação, ele busca apenas uma vingança “imaginária e adiada”. Trata-se de um tema central nos conflitos sociais em curso:

“Este é o afeto característico dos impasses gerados nas democracias liberais modernas, que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada. […] O ressentimento na política se produz na interface entre a lei democrática — antecipação simbólica de igualdade de direitos — e as práticas de dominação paternalistas, que predispõem a sociedade a esperar passivamente que essa igualdade lhes seja legada como prova do amor e da bondade dos agentes do poder. No Brasil, onde essas duas condições se combinam de maneira frequentemente perversa, os movimentos sociais oscilam entre as proposições ativas de transformações sociais e as manifestações reativas, ressentidas, que expressam insatisfação popular, mas não levam a nenhum resultado efetivo no sentido do aperfeiçoamento dos dispositivos da democracia.
— Maria Rita Kehl em Ressentimento (p. 14-15)


Tempo esquisito, de Maria Rita Kehl
Esse livro reúne um conjunto de reflexões e análises feitas durante o período da quarentena da covid-19. “Diante de tanta tristeza, escrever foi uma forma de ocupar o espaço do debate público sem romper o isolamento físico. Uma forma de estar com os outros”, conta a autora no prólogo. Nos textos, além da questão da saúde pública, ela aborda temas que se tornaram recorrentes com o início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência, como a violência policial e a desigualdade social. Há artigos, por exemplo, sobre o linchamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, em 2021, e também sobre o assassinato de Genivaldo dos Santos, morto pela Polícia Rodoviária Federal, em 2022, em Sergipe.

Com o olhar sempre voltado à psicanálise, seu campo principal de atuação, Maria Rita Kehl recorre ao conceito de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal para estabelecer um paralelo com a realidade brasileira: “Ciente de ter desvirtuado a expressão em relação ao contexto em que fora criada, insisto em resgatá-la aqui para qualificar, com outro sentido, a leviandade com que muitas pessoas se sentem autorizadas a praticar ruindades contra indivíduos vulneráveis. Ou a indiferença com que se eximem de qualquer gesto de solidariedade em relação à multidão de miseráveis que aumenta a cada dia nas cidades do país”, argumenta.

“Não há poder mais eficiente do que aquele que se sustenta sobre o desejo dos dominados.”
— Maria Rita Kehl em Tempo esquisito




Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl
Publicada originalmente em 1998 e atualizada pela autora em 2016, a obra é dividida em três partes: a primeira, sobre a constituição da feminilidade no século XIX, busca a origem dos discursos aceitos até agora como descritivos de uma “natureza feminina”, eterna e universal; a segunda aborda o romance Madame Bovary e apresenta Emma Bovary, a protagonista de Flaubert, como um “paradigma da mulher freudiana, alienada nas malhas de um discurso em que seus anseios latentes não encontram lugar ou palavra”; a terceira, por fim, é dedicada às teorias freudianas sobre as mulheres e a sexualidade feminina e suas repercussões na psicanálise contemporânea.

Examinando alguns pontos da biografia de Freud, ela tenta entender por que o pai da psicanálise falhou em escutar nas queixas das mulheres — a quem ele mesmo deu voz. A obra, assim, questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma “mínima diferença”, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.


Bovarismo brasileiro, de Maria Rita Kehl
Esse conjunto de ensaios tem como um dos temas centrais a questão dos restos mal elaborados da escravidão na sociedade brasileira. Tendo isso em vista, a autora aborda os sintomas sociais brasileiros a partir do século XIX. Utilizando o conceito de bovarismo, ela analisa desde a literatura de Machado de Assis até estudos de casos contemporâneos para oferecer perspectivas críticas e clínicas sobre a formação da identidade cultural e política no país.

“O termo bovarismo já se incorporou ao senso comum desde que a expressão foi cunhada pelo psiquiatra francês Jules de Gaultier, em 1892. Em Madame Bovary, a protagonista Emma é uma mulher que passa a vida tentando tornar-se outra. Só que essa fantasia, ou convicção delirante, está plenamente inserida entre os ideais e até mesmo entre as possibilidades individuais abertas pela sociedade burguesa – daí a atualidade e o poder crítico de Madame Bovary –, sobretudo pela via da mobilidade social, declaradamente criticada e desprezada por Flaubert. […] Nas sociedades da periferia do capitalismo, que se modernizaram tomando como referência as revoluções industrial e burguesa europeias sem, no entanto, realizar nem uma nem outra, a relação com os ideais passa forçosamente pela fantasia de ‘tornar-se um outro‘. Só que esse outro é, por definição, inatingível, na medida em que o momento histórico que favoreceu a modernização, a expansão e o enriquecimento dos impérios coloniais não se repetirá. O bovarismo dos países periféricos não favoreceu sua modernização; pelo contrário, sempre inibiu e obscureceu a busca de caminhos próprios, emancipatórios, capazes de resolver as contradições próprias de sua posição no cenário internacional – a começar pela dependência em relação aos países ricos.”
— Maria Rita Kehl em Bovarismo brasileiro (p. 30-1)


“Estou com a Boitempo desde o começo. Nos últimos anos, a editora expandiu bastante, sem nunca pôr em risco seu compromisso com a teoria crítica e com seus autores.”
— Maria Rita Kehl 

O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl
Escrito a partir de experiências e reflexões sobre o contato com pacientes depressivos, o livro aborda um tema que, apesar de muito comentado, é pouco compreendido e menos ainda aceito atualmente. Para abordá-lo, Maria Rita faz um apanhado do lugar simbólico ocupado pela melancolia, desde a antiguidade clássica até meados do século XX, quando Freud trouxe esse significante do campo das representações estéticas para o da clínica psicanalítica:

Vivem em outra temporalidade os remanescentes dos antigos melancólicos, equivalentes aos depressivos de hoje. Sofrem de um sentimento do tempo estagnado, desajustados do tempo sôfrego do mundo capitalista.
— Maria Rita Kehl em O tempo e o cão: a atualidade das depressões

A obra ganhou o Prêmio Jabuti de livro do ano de não ficção em 2010.




Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl
Com pouco mais de 50 anos de existência, a televisão já é onipresente. É impossível ignorá-la ou pensar o mundo hoje sem considerá-la. Fazendo um trocadilho com a célebre obra Mitologias, de Roland Barthes, o livro de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci une visão crítica e psicanálise para dissecar as relações entre mito, ideologia e mídia.


Neném outra vez!, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
A divertida incursão de Maria Rita Kehl na literatura infantil aborda o ciúme entre irmãos como pretexto para falar sobre questões mais profundas com as crianças, como o poder da vontade, o amor próprio e aceitação de mudanças na vida. O livro é ilustrado pela cartunista Laerte Coutinho.

O disco-pizza, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
Gil é um garotinho de sete anos que tem muita vontade de comemorar o Natal. Sua família diz que é uma data comercial e, por isso, eles nunca fazem os tradicionais festejos em casa. O menino até concorda com a decisão, mas pensa que seria bacana uma árvore cheia de bolas coloridas e luzinhas, presentes ao pé da cama e muita coisa gostosa para comer. Maria Rita Kehl e Laerte trazem ao leitor essa nova obra cheia de criatividade e ressignificação de tradições.



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