IA – Ignorância Ancestral, Inteligência Atrofiada: ganhar tempo ou libertá-lo?

"O pânico das máquinas se instala por ignorarmos a hipótese comunista."

Cena de Megan 2.0. Imagem: divulgação

Por Clarisse Gurgel

Este texto espera fortalecer iniciativas como a recente publicação pela Boitempo de Automação e o futuro do trabalho, de Aaron Benanav, e o texto “O que Marx diria sobre o ChatGPT”, de Gabriel Teles, publicado no Blog da Boitempo, em que se reafirma a doxa marxista como referência fundamental para o debate sobre IA.  

Recentemente foi lançado o segundo filme da franquia de terror Megan. Em Megan 2.0, mais um enlatado norte-americano, temos uma atualização ficcional das alienações do ludismo, movimento surgido no início do século XIX, na Inglaterra, em que tecelões destruíram máquinas como forma de protesto. No longa, porém, os protagonistas lutam para destruir uma boneca que adquire vida autônoma a partir da chamada Inteligência Artificial.  

Ainda que reconheçamos, desde já, uma diferença de grau, é possível dizer que o fantasma do poder das máquinas — seja no processo de seu incremento, durante a Primeira Revolução Industrial, seja na chamada 4ª Revolução Industrial — sempre se traduziu em termos da substituição dos humanos por elas. Assim, de Megan 2.0 ao ludismo, reflexos da fantasia de que o inimigo é a máquina tornaram-se uma dinâmica tão autômata quanto toda repetição inconsciente. A repetição, aqui, evidente, ainda que míope, está na radicalização do fetiche da mercadoria, tal como descrito por Marx: a ilusão de que a máquina ou o produto do trabalho humano tem vida própria, efeito do feitiço que faz desaparecer a cadeia social de produção de toda mercadoria.  

Deste modo, a ilusão de que haveria uma autonomia do algoritmo, que tornaria a máquina independente dos humanos, repete, de forma radical, a ilusão de que há uma organicidade na máquina. Ainda que exista, tal como em um corpo, um sistema pretensamente integrado, a máquina apenas repete o que humanos produziram. Pode-se dizer, entretanto, que a máquina não é igual ao humano, justamente por ser cópia. Sendo cópia, a máquina é um saber condensado ou, nos seus termos atuais, programado, de modo que sua limitação está propriamente no fato de que a máquina “sabe tudo”.  

Subsunção formal, subsunção real e a Inteligência Geral: os humanos não “sabem tudo” 

Os humanos, por sua vez, são seres ilimitados, potentes precisamente porque não sabem tudo — porque esse “tudo” sempre se apresenta como algo em aberto, por se conhecer e por ser inventado. Por essa razão, os psicanalistas dizem que a máquina não possui inconsciente ou desejo; não tem aquilo que Hegel caracterizou muito bem como o motor da história, a força criativa que só se produz na falta. Marx manifesta um entendimento semelhante em sua denúncia à subsunção formal, quando tudo assume a forma de capital, exercendo a função de dinheiro que faz dinheiro (sintetizada na fórmula D-M-D’). Nesse sentido, ele chamará de capital variável o trabalho vivo, e de capital fixo, o trabalho morto. Não só porque os humanos vêm e vão, na dinâmica do desemprego, mas, também, porque, neles, há mudança, mutabilidade, criação. 

 Há muitos estudos de Marx sobre o que ele chamou de “desenvolvimento das forças produtivas”, o que traduzimos por desenvolvimento tecnológico, nos quais já aparecerá a noção marxiana de Inteligência Geral: uma espécie de capacidade inventiva voltada para a produção de capital fixo, constante — trabalho morto, máquina. Com o passar do tempo e o nível de acumulação de riqueza, este viria a se tornar o mercado mais rentável: o de produção da tecnologia de produção, mais do que a produção de produtos derivados dessa tecnologia. É quando Marx destaca a virada do capital para o investimento em máquina, convertendo capital constante em capital circulante, máquina em mercadoria.  

Assim, quando Marx rascunhava O capital, ensaiou, nos Grundrisse, o prenúncio de um tempo em que as forças produtivas — as máquinas e os trabalhadores — alcançariam um alto nível de desenvolvimento. Nesse futuro imaginado, que nos lembra algumas cidades como Dubai ou Hong Kong, Marx sugere que a classe trabalhadora voltaria a trabalhar em domicílio, dedicada a inventar as novas máquinas. O intelecto geral, um saber homogeneizado, estaria sob os efeitos do que chamou de subsunção real, a submissão das mentes e dos corpos ao tempo e ao espaço dilatados, tudo, ainda, em função do capital. Hoje, temos a figura das patentes como forma de titularização da propriedade dessas invenções, instrumento pelo qual o pensamento pode ser convertido em mercadoria, em suporte de valor, apto a produzir mais valor, mais mercadorias.  

Materialismo-histórico e o encontro dos humanos com suas máquinas: a divisão do trabalho e o bêbado-equilibrista 

O senso comum que parte da força produtiva, ou seja, que explica a realidade a partir do desenvolvimento tecnológico — tal como se fez em torno do surgimento do relógio ou das navegações, por exemplo — ignora a chave epistemológica fundacional, que justifica o próprio incremento das máquinas até os dias de hoje. Alguns teóricos insistem em enaltecer o surgimento do relógio, por exemplo, como se, antes dele, os indivíduos fossem incapazes de marcar um compromisso. Segundo tal concepção, o progresso seria certo, contando com o desenvolvimento combinado de forças produtivas — exclusivamente, as máquinas — e as relações de produção — tudo o que envolve a vida social e sua reprodução.  

Marx foi quem trouxe, a partir de sua noção de materialismo-histórico, a denúncia de que, no modo de produção capitalista, rumamos para direções opostas: enquanto avançamos tecnologicamente, retrocedemos na forma de nos relacionar. Este é o real roteiro do terror, o que está oculto no pânico das máquinas: a percepção de que seu desenvolvimento não vem acompanhado de um mesmo avanço em termos das relações entre os humanos.  

No entanto, todo esse fatalismo diante de um poder anti-humano da inteligência explica-se por uma ignorância ancestral. Humanos são seres que pensam, não que se dispensam. E, dialeticamente, mesmo se os mais ricos desejassem eliminar todos os humanos pobres, substituindo-os por máquinas, se deparariam com o impasse de não ter mais quem consumisse, de modo lucrativo, as mercadorias que comercializadas a fim de compensar, ademais, o maior investimento no próprio maquinário.  

A naturalização das setas em direções contrárias — uma apontando para o avanço das forças produtivas e outra para o atraso nas relações de produção — produz desalento intelectual, por uma perversão propagada de que essas mesmas setas jamais poderão rumar, efetivamente, na mesma direção. Assim surgem as receitas mágicas de “capitalismos sustentáveis”, como um gigante na corda bamba, um “bêbado equilibrista”. 

Podemos, assim, compreender que o verdadeiro antagonismo envolve a defesa de que as máquinas sejam postas a serviço da libertação dos trabalhadores, não a luta por dispensá-las. Por essa razão, a estratégia comunista sempre foi a da sociedade do tempo livre, de tal modo que a máquina seja forjada para, efetivamente, substituir os humanos naquelas tarefas das quais eles próprios desejam se liberar, na busca por ocupar o tempo com o que desejarem. Projeto possível, apenas, se forjado universalmente, se pensado para todos. É nesse sentido que Marx sempre condicionou, dialeticamente, a existência substancial de tempo livre à universalização do trabalho: a superação de uma sociedade dividida entre os que labutam e os que não labutam. 

Dito de outro modo, o pânico se instala por ignorarmos a hipótese comunista. Conhecendo-a, tornamo-nos capazes de enxergar um tempo em que o aspirador de pó inteligente não retirará o sustento de nenhuma empregada doméstica. Ele permitirá que esta mesma mulher, de infinitas potências, ocupe a sala que limpa. E, assim, sem poeira, que ela escreva poesias. É esta a real história do encontro entre os humanos e suas máquinas, em que a superação da divisão do trabalho resulte na ocupação do espaço por todos aqueles que o produzem.   

Qual o nome da inteligência?  

Mas o desencontro entre os humanos e as máquinas se sustenta na materialidade do dia-a-dia, no próprio fenômeno da alienação, em seus três aspectos: 1) na alienação dos sujeitos em face do que produzem; 2) na dos sujeitos em face da atividade produtiva que exercem; 3) na dos sujeitos em face dos outros sujeitos. Respectivamente: a) a alienação do produto do trabalho — o pedreiro que constrói a escola, mas não pode matricular nela seu filho; b) a alienação do trabalho — o desgosto pelo trabalho, “contar as horas” para o fim do expediente, o fenômeno do “sextou” como encarnação imanente do estranhamento do trabalho; 3) a alienação do outro — a competição entre os trabalhadores, em todas as suas formas.  

Como o trabalho envolve todas essas espécies de alienação, a máquina sempre se apresentará como o lugar da unidade potente. De tal modo que nela, na máquina, não somos capazes de enxergar a potência humana, o intelecto social convertido em softwares, plataformas, start-ups. No entanto, assim como o relógio não é o ponto de partida, a IA também não é. O ponto de partida são as condições de produção. Ou seja, o conjunto que envolve as relações de produção e as forças produtivas — e que, hoje, preservando a mesma e antiga estrutura conflituosa entre interesses opostos (dos que trabalham e dos que exploram o trabalho, que enriquecem através dos “incômodos e labutas que impõe aos outros”), tem o tempo e o espaço como categorias em disputa.  

Marx, porém, entendia, com sua inteligência singular, que o desenvolvimento tecnológico, no capitalismo, atendia a outros propósitos: comprimir tempo no espaço e espaço no tempo. Assim, reduzir o tempo para a produção das mercadorias, inserindo máquinas de ponta; reduzir tempo para a circulação delas, pra vender mais e mais rápido; eliminar salário e direitos, dispensando trabalhadores, visando o aumento do mais-valor. Situação que racionaliza um intelecto sujeitado em uma ignorância antissocial, que esgarça os laços entre as pessoas, retira a vitalidade dos encontros, aprofunda o isolamento. 

Costumamos dizer que o maior encanto da IA está na aceleração: com ela, temos a ideia de que estamos ganhando tempo. Devemos atentar, porém, para o que a IA tem acelerado e a serviço de que precisamos acelerar.   

Processos intelectuais que, por excelência, têm papel de sublimação e não de reprodução, como o exercício da escrita e da leitura, estão sendo atrofiados. Algo que traduz o contexto de hoje: buscamos “ganhar tempo” em atividades que têm sua fonte na duração, na constância, na contingência das trocas prolongadas (como reuniões politicas, aulas, sarais, sessões terapêuticas, conversas entre amigos, transas amorosas), enquanto não sabemos o que fazer com o “tempo livre”, sempre convocado a ser ocupado. A geração dos ansiosos entediados.

Para essa geração, há como horizonte um potente desenvolvimento que envolve inteligibilidade, sensibilidade. Aspectos que possuem posição de classe e consciência, e que, como forma de apreender a realidade, só são experimentados com o desejo de mudá-la. Assim, se o nome da ignorância é exploração do humano pelo humano, podemos assegurar que o da inteligência é o comunismo, a comunhão como sistema e a potência humana infinita que ele inaugura.  

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Clarisse Gurgel é cientista política, professora da Faculdade de Ciências Sociais da Unirio e autora do livro Ação performática: análise institucional e luta de classes (LavraPalavra, 2024). 



Automação e o futuro do trabalho, de Aaron Benanav
O discurso da automação tecnológica tem sido amplamente mobilizado por empresários, políticos, jornalistas e formadores de opinião para sustentar prognósticos ora catastróficos, ora idílicos. Nesse livro, o professor da Universidade Cornell contrapõe-se a essas previsões ao argumentar que não é a tecnologia, mas o longo declínio da economia capitalista, o responsável pelo desemprego e, sobretudo, pelos subempregos contemporâneos. 


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