Só a independência não basta: o que Walter Rodney nos ensina sobre a descolonização

Combatentes do PIAGC lutam contra a colonização portuguesa em Guiné-Bissau. Imagem: WikiCommons
Por Walter Rodney
Ao se tratar de um tópico tão amplo em um curto espaço de tempo, corre-se o risco de ser superficial. Por isso, concentrarei minha atenção em uma hipótese específica, tentarei estabelecer certas correlações entre colonialismo e neocolonialismo e ilustrarei essa hipótese me referindo principalmente ao sul da África.
Se olharmos para o Comitê de Descolonização da ONU, veremos que está preocupado atualmente com países como a República da África do Sul, o Zimbábue, a Namíbia, as ilhas francesas e de Camarões e os territórios franceses dos Afares e dos Issas da África. Em outras palavras, está preocupado com as reminiscências do colonialismo formal. É isto que a descolonização significa nesse contexto específico: encerrar o domínio colonial formal na África.
[…]
Mas a descolonização hoje significa reconhecer que é necessário romper o caráter particular das conexões existentes com os centros de comando do capitalismo mundial e, portanto, com os Estados Unidos, país que nunca foi uma potência colonial no continente africano, mas sempre esteve na sombra, em segundo plano, atrás do colonialismo francês, britânico e belga. O capital estadunidense surgiu em várias partes da África, mas principalmente da seção sul, do Zaire em direção ao Cabo, sob a cobertura fornecida por portugueses, belgas e britânicos na Rodésia e pelo governo sul-africano na Namíbia e na República da África do Sul.
Houve um processo contínuo de repartição econômica, na medida em que os Estados Unidos obtiveram, à custa de outras potências coloniais, sua participação no comércio africano, sua participação no investimento na África e nos lucros que estavam sendo repatriados da África. Esse processo foi destacado pelo desenvolvimento das corporações anglo-estadunidenses no entreguerras e de toda a galáxia de corporações multinacionais nos anos pós-guerra. Os Estados Unidos chegaram a uma posição na qual são hegemônicos nessa divisão econômica do sul da África. Eles assumiram o lugar dos portugueses; há certo tempo, assumiram o lugar dos franceses no antigo Congo, na República do Zaire, e há mais tempo vêm apoiando e dando suporte aos britânicos na República da África do Sul e tomaram o lugar deles nos investimentos sul-africanos. Portanto, essa repartição econômica é um elemento muito significativo, pois os povos do sul da África hoje, ao falarem sobre descolonização, não têm de olhar apenas para a potência colonial que os domina ou para a maioria de colonos brancos que reside lá; precisam olhar além e perguntar que forças sustentam o modo de produção específico, que fontes sustentam o trabalho nas minas e nas fazendas, que forças sustentam as formas específicas pelas quais o sul da África está integrado ao sistema mundial capitalista. E as principais forças que sustentam essa situação residem nos setores capitalistas mais desenvolvidos dessa economia, no setor multinacional ou transnacional.
A entrada dos Estados Unidos na esfera diplomática e as manobras políticas em torno do Zimbábue, de Angola e da República da África do Sul dão amplo testemunho do fato de que os Estados Unidos foram forçados a assumir essa hegemonia, encarregando-se no lugar dos britânicos do papel político de policiar o sul da África, pois estes se tornaram incapazes de fazê-lo. Parece-me, então, que, se quisermos ampliar o significado da descolonização, uma das maneiras mais úteis é colocarmos lado a lado essas duas modalidades, o colonialismo e o neocolonialismo, e reconhecermos que, no processo de luta pela descolonização dos territórios formais, somos guiados pela transição que está ocorrendo no continente como um todo, o que inclui, é claro, as áreas supostamente independentes. […]
Basta dar uma olhada nas estruturas econômicas para reconhecer que não se pode falar em descolonização sem falar em recuperação dos recursos nacionais, por exemplo. No entanto, a questão da recuperação dos recursos nacionais só foi colocada no período posterior à independência política – e continua sendo uma preocupação legítima da descolonização. Portanto, devemos ter cuidado com o uso da linguagem, ou acabaremos nos enrolando. Temos de reconhecer a continuidade da mudança e reconhecer que a independência política foi apenas um momento – talvez não necessariamente um momento decisivo no processo de transformação que poderíamos chamar de descolonização – e que, no território que alcançou a independência política, não podemos ainda abandonar a terminologia “colônia”, mas devemos manter o título de “neocolonial” no mínimo até vermos mudanças mais fundamentais ocorrendo. Se essas mudanças ocorrerem no nível da estrutura econômica, elas devem ocorrer também nas estruturas de classe, porque as economias de territórios formalmente coloniais ou neocoloniais precisam ser sustentadas por mecanismos sociais. Elas não operam no vácuo. Há classes sociais específicas que representam, em primeiro lugar, os vínculos entre o capital externo e a força de trabalho nativa, e há classes locais em processo de surgimento que estão consolidando a própria força em relação a outros setores do povo africano, normalmente se consolidando em torno do aparelho de Estado e assegurando para si uma grande porção dos bens e serviços produzidos na economia. Mais uma vez, por causa da conjunção de estágios, somos forçados a fazer perguntas mais profundas do que um nacionalista ou um descolonizador poderia ter feito há uma década. É preciso dar um conteúdo ideológico ao programa de descolonização. Se alguns anos atrás a descolonização era entendida como africanização, agora precisamos falar sobre o socialismo como parte integrante – e não como estágio posterior – do próprio processo de descolonização. Sem falar sobre a reorganização das relações de classe na África, não trataremos de interromper o modo como o capitalismo se reproduziu na África nas últimas cinco décadas ou mais.
[…]
Devemos aprofundar nossa consciência sobre o que deve ser feito no sul da África, bem como sobre o que deve ser feito na África independente, reconhecendo que a definição de descolonização está passando por uma transformação – tornando-se mais rica e profunda por causa das lutas dos povos por causa da experiência de vida dos africanos em várias partes do continente; e reconhecendo que, na verdade, a descolonização será inseparável de uma estratégia total de libertação que englobe o controle dos recursos materiais, que englobe uma reestruturação da sociedade, a fim de que os que produzem tenham a palavra sobre como sua riqueza será distribuída. Esses pontos essenciais devem ser levados em conta quando analisamos a descolonização em qualquer parte do continente africano e até mesmo fora dele, embora essa não seja nossa preocupação no momento.
* Este é um trecho de Marxismo e descolonização: ensaios a partir da Revolução Pan-Africana, de Walter Rodney.
***
Walter Rodney nasceu na Guiana, formou-se em história na Jamaica e realizou seus estudos de pós-graduação na Inglaterra. Foi professor na Tanzânia (onde apoiou o governo socialista de Julius Nyerere), além de ter colaborado com docentes de universidades nos Estados Unidos. Como ativista, fundou na Guiana a Aliança dos Trabalhadores, de oposição ao governo. Foi assassinado em sua terra natal em 1980, por causa de sua militância política. Dele, a Boitempo publicou Como a Europa subdesenvolveu a África (2022) e Marxismo e descolonização: ensaios a partir da revolução pan-africana (2025).
NÃO PERCA!
Lançamento de Marxismo e descolonização, de Walter Rodney, com Bruna Santiago, Marcio Farias e mediação de Muryatan Barbosa. Quinta-feira, 13 de novembro de 2025, às 16h. Assista ao vivo na TV Boitempo.
CONHEÇA O LIVRO DO MÊS DO ARMAS DA CRÍTICA

Walter Rodney foi um dos principais pensadores e militantes do pan-africanismo e do movimento de descolonização africano. Sua produção intelectual abrange a relação entre raça, classe, território e, segundo o escritor Ngugi wa Thiong’o, que assina o prefácio da obra, “completa Marx”.
“As ideias de Walter Rodney são ainda mais valiosas hoje, quando o capitalismo tem afirmado com tanta força sua permanência, quando as forças organizadas de oposição que antes existiam foram praticamente eliminadas. Hoje cabe a nós seguir, expandir e aprofundar seu legado.”
— Angela Davis
“É raro encontrar no mundo contemporâneo alguém comprometido nesse nível tanto com a teoria quanto com a ação. Talvez Rodney seja um dos poucos que faz isso de forma fluida, e isso o torna único.”
— Viswesh Rammohan
Marxismo e descolonização: ensaios a partir da Revolução Pan-Africana apresenta textos com temas complementares, como a diáspora negra, o papel do marxismo na libertação dos povos da África, a educação em um contexto de colonização e a experiência dos socialismos africanos.
Em diferentes países do continente africano, no Caribe, na América do Norte e na Europa, Rodney não foi apenas uma testemunha do internacionalismo pan-africano e socialista, mas um organizador das massas, um militante e importante teórico que contribuiu para um caminho anticolonial e de emancipação.
“Como já disse Walter Rodney, o grande escritor negro assassinado na Guiana, o modelo de desenvolvimento econômico estabelecido no Brasil pelos militares foi para subdesenvolver os setores mais pobres deste país e, portanto, os setores negros.”
— Lélia Gonzalez

Marxismo e descolonização apresenta a amplitude da produção de Rodney e demonstra a inabalável coerência entre sua vida e sua obra, dedicadas a renovar a concepção marxista e reinventar o horizonte de possibilidades econômicas, políticas e sociais dos povos do Sul global: “Estes ensaios […] serão para nós um importante instrumento de aprendizagem contínua, seguindo a linha pan-africana que nos evidenciou como a Europa subdesenvolveu o continente”, escreve Ngugi wa Thiong’o.
🚀Assine até o Armas da Crítica até o dia 15 de novembro de 2025 e receba:
📕 Um exemplar de Marxismo e descolonização: ensaios a partir da Revolução Pan-Africana, de Walter Rodney, em versão impressa e e-book
📅Um calendário 2026 comemorativo dos 30 anos da Boitempo – a casa de Marx e Engels no Brasil
🔖 Marcador + adesivo
📰 Guia de leitura multimídia no Blog da Boitempo
📺 Vídeo antecipado na TV Boitempo
🛒 30% de desconto em nossa loja virtual
Descubra mais sobre Blog da Boitempo
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário