Žižek: Hoje em dia, é preciso um homem do tempo para saber a direção em que o vento sopra  

Cena de Uma batalha após a outra. Imagem: divulgação.

Por Slavoj Žižek

⚠️ ATENÇÃO, SPOILERS NA PISTA! ⚠️

“Weathermen” [Homens do Tempo], o mais conhecido grupo “terrorista” de esquerda radical que operou nos EUA no fim dos anos 1960 e 1970, tomou seu nome da letra de Bob Dylan: “Você não precisa de um homem do tempo para saber em que direção o vento sopra”, diz o verso da música “Subterranean Homesick Blues”, de 1965. Uma batalha após a outra (Paul Thomas Anderson, 2025), que fez muito alarde na mídia, basicamente conta a história dos Weathermen reimaginada em nosso mundo, mais de meio século após os eventos — aqui vai o enredo resumido, descaradamente tirado da Wikipedia:

Pat Calhoun e Perfidia Berverly Hills são membros do grupo revolucionário de extrema esquerda French 75. Enquanto libertavam imigrantes detidos num centro de detenção na Califórina, Perfidia humilha o oficial corrupto que estava no comando, Steven J. Lockjaw, que desenvolve um fascínio sexual por ela. Pat e Perfidia se tornam amantes enquanto a French 75 realiza ataques a escritórios de políticos, bancos e à rede fornecimento de energia elétrica. Steven pega Perfidia plantando uma bomba, mas a deixa ir depois que ela concorda em transar em com ele num motel. Perfidia dá à luz uma menina, Charlene, mas Pat é incapaz de persuadi-la a sossegar e viver em família. Ela os abandona para continuar com suas atividades revolucionárias. Depois que Perfidia é capturada em um assalto a banco malsucedido, Steven consegue que ela evite a prisão em troca de informações sobre a French 75. Ela entra no programa de proteção a testemunhas enquanto Steven vai à caça de seus camaradas e os executa sem hesitar, forçando os demais a fugirem. Pat e Charlene são forçados a viver escondidos como Bob e Willa Ferguson, enquanto Perfidia escapa da custódia de Steven e foge para o México. 

16 anos depois, vivendo na cidade-santuário Baktan Cross, Bob se tornou um viciado em drogas paranoico que vive isolado. Ele é protetivo com relação a Willa, que virou uma adolescente independente e espirituosa. Através de seus veementes esforços contra a imigração, Steven subiu ao posto de coronel e tornou-se uma figura proeminente nas agências de segurança dos EUA. Ele é convidado a se juntar ao Clube dos Aventureiros Natalinos [Christmas Adventurers Club], uma sociedade secreta de supremacistas brancos de extrema direita. Ele caça Willa para cobrir os rastros de sua relação interracial, proibida pelo clube. Ele contrata um caçador de recompensas indígena, Avanti Q, que captura Howard Sommerville, camarada de Bob, disparando um sinal de alerta para os remanescentes do French 75.

Sob o pretexto de uma operação anti-imigração e de repressão ao tráfico de drogas, Steven despacha suas tropas para Baktan Cross a fim de encontrar Bob e Willa. Deandra, membro confiável do French 75, resgata Willa antes de sua festa escolar ser invadida. Os soldados de Steve atacam a casa de Bob enquanto ele está chapado. Ele escapa por um túnel e pede ajuda ao French 75, mas é incapaz de lembrar a senha. Ele recorre ao líder comunitário e professor de karatê de Willa, Sergio St. Carlos, que evacua uma horda de imigrantes por um túnel. Deandra leva Willa a um convento de freiras revolucionárias, onde ela descobre a verdade sobre a traição de sua mãe.

Os Aventureiros Natalinos descobrem evidências do relacionamento de Steven com Perfidia e enviam um de seus membros, Tim Smith, para eliminá-lo junto com Willa. Invadindo o convento, Steven força Willa a fazer um teste de DNA, confirmando que ele é seu pai biológico e tornando seu ingresso no Clube dos Aventureiros Natalinos impossível, o que o leva a decidir matá-la ao invés de libertá-la. Sergio arranja para que Bob escape da custódia e o leva ao convento, jogando-o do carro antes de ser parado pela polícia. Fazendo ligação direta em outro carro, Bob chega ao convento, mas não consegue matar Steven com o rifle de Sergio. O coronel contrata Avanti, um assassino professional de origem indígena, para levar Willa a uma milícia de extrema direita que irá matá-la. Tim rastreia Steven e atira em seu rosto com uma espingarda — fazendo com que ele bata o carro — e o deixa para morrer. Avanti entrega Willa para a milícia, mas, após mudar de ideia, liberta-a e morre fuzilando-os. Willa pega o carro e a arma de Avanti e é perseguida por Tim até que ela o induz a um acidente, explorando um ponto-cego da estrada. Ela atira nele e o mata quando ele mostra não conhecer a saudação revolucionária. Bob a encontra na estrada, mas ela aponta a arma para ele, exigindo a saudação — que ele repete exaustivamente. Os dois se reúnem às lagrimas e vão embora. Gravemente ferido, Steven é aparentemente aceito pelos Aventureiros Natalinos depois de mentir que teria sofrido um “estupro reverso” por Perfidia, mas é morto com um gás e cremado logo após sua iniciação. Voltando para casa com Willa, Bob lhe entrega uma carta de esperança escrita por Perfidia, na qual ela se desculpa por suas ações e jura que irá se reunir com sua família. Em seguida, Bob dá sua benção para que a filha participe de um protesto a horas de distância, em Oakland.

Muitos críticos procuram por um filme que tenha servido como modelo para Uma batalha após a outra; contudo, até onde eu sei, todos ignoram aquele que é para mim a escolha mais óbvia: Sem proteção [The Company You Keep] (2012), de Robert Redford, um filme que também trata de antigos esquerdistas radicais confrontando seu passado. Simplificando ao máximo, a história é centrada no recém-viúvo e pai solteiro, Jim Grant, um ex-militante do Weather Underground, que lutou contra a Guerra do Vietnã. Procurado por um assalto a banco e assassinato, ele se escondeu do FBI por mais de 30 anos fingindo ser um advogado em Albany, Nova Iorque.

Quando sua verdadeira identidade é exposta, ele precisa fugir e tentar encontrar sua ex-amante, Mimi (a única pessoa que pode inocentá-lo), antes que o FBI o capture — caso contrário, ele perderá tudo, incluindo sua filha de 11 anos, Isabel. Sua busca por Mimi o leva a atravessar os EUA, contatando vários de seus colegas ex-Weathermen; finalmente, Jim e Mimi se encontram numa cabana isolada à beira de um lago próximo à fronteira com o Canadá. Ela ainda é apaixonada pelos ideais dos Weathermen e não demonstra arrependimento por suas ações de 30 anos atrás, ao que Jim responde secamente: “Eu não me cansei. Eu cresci.” Mesmo que ele ainda acredite na causa, ele agora se tornou um pai de família responsável. Jim pede a Mimi que se entregue e lhe sirva de álibi, pelo bem de sua filha, Isabel: ele não quer deixar a menina para trás e repetir os mesmos erros que ele e Mimi cometeram há 30 anos, ao desistirem de sua filha. Na manhã seguinte, Mimi escapa da cabana e foge de barco para o Canadá, mas dá meia volta e retorna aos EUA para se entregar; um dia depois, Jim é liberado da cadeia e se reúne com Isabel.

É verdade que, como colocou um crítico com humor mordaz, Sem proteção exala nostalgia pelo tempo em que os terroristas ainda eram pessoas que se pareciam e se vestiam como nós e portavam nomes anglo-saxões reconhecíveis. O filme, não obstante, tem um toque de autenticidade naquilo que expõe de maneira quase intoleravelmente dolorosa, o desaparecimento da esquerda radical de nossa realidade política e ideológica: os sobreviventes da antiga esquerda radical são como simpáticos mortos-vivos, remanescentes de uma outra era, estranhos à deriva em um mundo igualmente estranho — não surpreende que Redford tenha sido atacado por conservadores, acusado de simpatizar e ser cúmplice de terroristas. O toque de autenticidade do filme (e do romance de Neil Gordon, no qual o filme se baseia) transparece não apenas no retrato em geral favorável dos ex-Weathermen, mas principalmente em excelentes detalhes narrativos como as longas descrições da vida clandestina (como checar se está sendo seguido e despistar possíveis perseguidores; como criar uma nova identidade etc.).

Onde o filme se mostra falho é na maneira como confronta o aspecto da atividade dos Weathermen que é para nós, hoje, o mais problemático: sua decisão de tomar o caminho da ação violenta. Enquanto o filme obviamente simpatiza com a causa da esquerda radical, o tom predominante é de rejeição do caminho da violência em termos de amadurecimento, da passagem de um entusiasmo juvenil (que pode facilmente se tornar fanatismo violento) para uma percepção madura de que existem coisas como a vida em família e a responsabilidade para com seus filhos que causa política alguma poderia fazer-nos violar — ou, como o herói diz para sua antiga amante: “Nós temos responsabilidades para além da Causa. Nós temos um bebê.” Lido dessa maneira, Sem proteção é le roman des illusions perdues — , como alguém escreveu sobre o romance de Neil Gordon no qual o filme se baseia.1

Contudo, seria tal referência ao amadurecimento, à responsabilidade familiar etc. uma sabedoria neutra e apolítica que estabelece um limite ao nosso engajamento político, ou antes uma maneira da ideologia intervir, impedindo-nos de analisar o entrave político em que nos encontramos? Esta segunda opção não implica uma tentativa disfarçada de justificar um terror violento, mas a obrigação de que essa violência seja analisada e julgada em seus próprios termos. Imaginemos que Jim não tivesse uma filha — o problema da estratégia dos Weathermen permaneceria. Sem esse tipo de autoexame radical, nós acabamos endossando a ordem política e legal existente como sendo a moldura que garante a estabilidade de nossas vidas privadas — não surpreende que, em termos jurídicos, Sem proteção seja um filme sobre a reabilitação legal do herói, sobre seu esforço para se tornar um cidadão comum sem nenhum passado obscuro que o assombre, culminando em algo que não podemos deixar de chamar de final feliz (as principais figuras se tornam públicas, são logo liberadas e encontram seu lugar em nossa sociedade).  

Em Uma batalha após a outra, contudo, como o título do filme claramente indica, a batalha continua: Willa pega o bastão e dá continuidade à luta clandestina que sua mãe traiu. Há mais uma diferença: em Sem proteção os Weathermen lutam contra o sistema imperialista em si mesmo, enquanto em Uma batalha após a outra eles focam em ajudar os imigrantes ilegais latino-americanos a evitarem a extradição e encontrarem um lugar nos EUA, em outras palavras, eles não estão trabalhando contra o sistema enquanto tal, eles trabalham para possibilitar a integração dos imigrantes ao sistema. E como o sistema não é o inimigo, os inimigos dos revolucionários acabam não sendo meros funcionários burocráticos cinzentos servindo à lei e demonstrando a banalidade do mal, ou seja, aquilo que concebemos como a estrutura “normal” de poder — eles são figuras ridículas flagradas em um gozo obsceno, vivendo caricaturas. Steven (Sean Penn) combina masculinidade excessiva e desejo sexual com uma gesticulação nervosa que indica que ele está, a todo instante, próximo de um colapso psíquico. O Clube dos Aventureiros Natalinos é uma caricatura fantasiosa de um grupo racista de elite que não possui lugar algum na atual sociedade globalizada, na qual homens e mulheres negros e asiáticos também podem ocupar posições de destaque no poder (pensemos em Richi Sunak e Kemi Badenoch). Quando o alto-escalão do Clube condena Steven por não conseguir controlar seu pênis e inseminar Perfidia, eles atuam contra o espírito do racismo branco masculino, que tolera plenamente que homens brancos estuprem mulheres negras como forma normal de divertimento.

Aqui nós tocamos no aspecto crucial do filme: não surpreende que Steven seja totalmente obcecado por Perfidia, já que ela é, em última instância, a versão revolucionária de esquerda de uma subjetividade igual à sua. Desprovida dos obstáculos internos e tiques nervosos de Steven, porém, Perfidia encarna o que na França de 1968 foi chamado de jouir sans entraves, gozar sem entraves. Para ela não há separação entre sua violenta ação política e uma intensa promiscuidade — ela goza plenamente de um sexo inconsequente em meio a um ato “terrorista”; o mesmo padrão é observado na maneira como fala, combinando perfeitamente atos brutais e linguagem obscena. Sua identidade cambiante não deixa espaço para um parceiro permanente, e não à toa ela trai até a Causa revolucionária — não por causa da filha (ela a abandona pela revolução), mas em nome de sua sobrevivência. Após a traição, ela recebe abrigo e uma nova identidade do governo, mesmo assim ela desaparece, para que ninguém saiba onde está. Como tal, Perfidia também encarna a forma do filme, ou, como notou Pietro Bianchi

“O papel de Perfidia não deveria ser interpretado apenas no nível do conteúdo, mas sim estruturalmente. Todos os acontecimentos narrativos desencadeados ao longo filme dependem de suas ações, mas igualmente de sua ausência. Todos os outros personagens são então forçados a orbitar em torno do vazio que ela cria — o que estranhamente resulta no fato de que a verdadeira protagonista do filme aparece na tela por não mais que vinte minutos, e apenas no início.”

Da minha perspectiva, é nisso que reside a falsidade do filme: seu “centro ausente” (palavras de Bianchi), Perfidia, como a figura do gozo feminino completo, é uma fantasia masculina construída para mascarar o que Lacan chama de não-todo feminino, a fragilidade histérica da subjetividade feminina. Perfidia é precisamente o sonho da Mulher como Todo, de uma mulher que é o falo. É crucial notarmos que, se retiramos o “centro vazio” da história, desaba a pluralidade espetacular de suas ações excessivas e inconsistentes. O intervalo que separa os dois filmes é mais palpável no nível da forma: enquanto Sem proteção se mantém firmemente nos limites do realismo psicológico padrão, Uma batalha após a outra é, como Peter Bradshaw notou,

“ao mesmo tempo sério e não sério, empolgante e desconcertante, uma fusão tonal que espalha aquela vibração alucinante pela tela em VistaVision — um gosto adquirido, sim, mas viciante. O próprio título é um aceno a uma guerra cultural inacabável apresentada como um filme de ação insanamente extremo com perseguições de carros brilhantemente executadas e, no final, onírico e hipnótico, uma sucessão de três carros pelas colinas sinuosas.”

O filme é repleto de momentos de genialidade louca — não apenas a hipnótica perseguição de carros, mas também o convento de freiras revolucionárias que fazem treinamento para usar metralhadoras. Ele de fato introduz uma nova maneira de contar a história que se desenvolve num espaço plural inconsistente, onde obscenidade brutal pode coexistir com um patético engajamento humanista personificado no professor de karatê e em Deirdre — Perfidia encarna essa forma em seu estado mais puro. Mas, aqui, o excesso da forma não é a verdade de seu conteúdo, não traz à tona seu aspecto recalcado. O excesso da forma serve, na verdade, para nos confundir e nos fascinar de tal maneira que ignoremos a ambiguidade do posicionamento ético-político do filme. É fácil propor, à maneira de Fredric Jameson, que a pluralidade dispersa e inconsistente do filme é testemunha do fato de que o capitalismo financeiro global de hoje não pode mais ser apresentado narrativamente como uma totalidade, de tal forma que o fracasso do filme em representar propriamente a sociedade que ele apresenta é, em si mesmo, um indicador da verdade dessa sociedade ela mesma, um indicador do fato de que, hoje, o que Jameson chamou de “mapeamento cognitivo” de nossa situação é estruturalmente impossível. Contudo, ter Perfidia como o “centro ausente” do filme mistifica essa impossibilidade — ela atua como uma mediadora universal do conteúdo disperso do filme, personificando a lógica excessiva e destrutiva do capitalismo atual da maneira mais pura. Comparadas a ela, as figuras “do mal” como Steven e os membros do Clube dos Aventureiros Natalinos são pálidas sombras dessa lógica. É difícil imaginar um filme mais antifeminista do que Uma batalha após a outra.

Nas cenas finais, Bob entrega a Willa uma carta de esperança escrita por Perfidia, na qual ela se desculpa por suas ações e promete se reunir com a família no futuro — seria essa uma carta que chega a seu destinatário, como diria Lacan, uma carta que anuncia um desfecho pacificador, ou apenas mais um juramento em vão? O que aconteceria se Perfidia realmente retornasse para Bob e Willa? Seriam eles uma família feliz, com a filha se ausentando de tempos em tempos para fazer seu trabalho? Eu presumo que o filme deixe isso em aberto propositalmente, que isso seja irrelevante para sua lógica. Assim como Sem proteção, Uma batalha após a outra termina numa tensão entre espírito revolucionário e responsabilidade moral parental, mas enquanto o primeiro implicitamente propõe uma fórmula (sim ao engajamento revolucionário, mas um engajamento que não deve violar a responsabilidade parental), Uma batalha após a outra apenas justapõe múltiplas posturas e encena ludicamente suas interações.

Mas e o amor entre revolucionários? Do que sabemos sobre o amor entre os revolucionários bolcheviques, algo único aconteceu ali, uma nova forma de casal amoroso emergiu: um casal que vivia em estado de emergência permanente, totalmente dedicado à Causa revolucionária, prontos para sacrificar toda satisfação sexual pessoal em seu nome, prontos até para abandonar e trair um ao outro se a Revolução assim exigisse, mas simultaneamente dedicados totalmente um ao outro, gozando dos raros momentos juntos com extrema intensidade. A paixão dos amantes era tolerada, até respeitada silenciosamente, mas ignorada no discurso público como sendo algo que não dizia respeito aos outros. Há traços disso inclusive no que sabemos da relação entre Lênin e Inessa Armand.

O título do curto texto de Freud de 19142, “Recordar, repetir e elaborar”, oferece a melhor fórmula de como deveríamos nos relacionar com uma experiência traumática do passado — no nosso caso, a memória traumática em questão é a dos Weathermen. Enquanto o filme de Redford se engaja em recordar com nostalgia, mas falha em resolver o dilema central, Uma batalha após a outra tenta preencher esse vazio por meio de uma repetição direta da memória traumática — o filme imagina como os Weathermen seriam hoje em dia, em uma situação histórica radicalmente diferente, e também termina com um fracasso. O que ainda é necessário é a elaboração do trauma: uma análise do que houve de errado na experiência dos Weathermen em si mesma. Aqui devemos proceder de uma maneira impiedosa que irá ferir muitas sensibilidades esquerdistas: os verdadeiros Weathermen focavam em resistência anti-imperialista, especialmente em apoio ao Vietnã, mas hoje, em meio às crises em explosão em países do Terceiro Mundo descolonizados, podemos ver que as lutas anticoloniais também tinham profundas limitações — razão pela qual tão frequentemente elas terminaram dando lugar a regimes autoritários e corruptos. No caso de Uma batalha após a outra, o foco em ajudar por meio de violência os imigrantes ilegais também é problemático: ajuda o grande capital (oferecendo força de trabalho barata e rebaixando os salários de trabalhadores americanos) e simultaneamente aumenta o apoio a populistas trumpistas. Isso para não mencionar o tópico da violência direta (não apenas defensiva): ao mesmo tempo que estou totalmente ciente de que a violência é muitas vezes necessária e completamente justificada, suspeito que nos Estados Unidos de hoje atos de violência isolados e em pequena escala, como os praticados pelos Weathermen, não têm nenhuma chance contra o Estado trumpista e servem apenas às suas brutais medidas opressivas — esses atos servem como um chamado: “Por favor envie a Guarda Nacional para nossa cidade!” O foco agora deveria ser a sabotagem do controle corporativo digital sobre as nossas vidas.  

Em resumo, não há nada de revolucionário em Uma batalha após a outra. Hoje, a gente precisa de um homem do tempo para saber a direção em que o vento sopra. Paul Thomas Anderson retrata um grupo sem homens do tempo que lhe deem orientação. Com sua forma desgovernada, o filme celebra a desorientação em si mesma como liberdade radical.

* Tradução de João Navarro

Notas

  1. É impossível deixar passar um ótimo detalhe no enredo do filme: são as duas ex-Mulheres do Tempo [Weatherwomen] (interpretadas por Susan Sarandon e Julie Christie) que permanecem fiéis à sua antiga convicção, enquanto todos os ex-Homens do Tempo [Weathermen] assumiram um compromisso em nome das responsabilidades familiares — o que contraria o mito padrão de que mulheres são mais apegadas às suas famílias enquanto homens estão prontos a arriscar tudo pela Causa. Exatamente o mesmo ocorre em Uma batalha após a outra (com exceção da traição de Perfidia). ↩︎
  2. Disponível on-line aqui. ↩︎

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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015), O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016) e Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (2020).


João Navarro é psicólogo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como psicanalista em consultório particular e acompanhante terapêutico. É vinculado à República Grupo de Psicanálise


Vivendo no fim dos tempos, de Slavoj Žižek
Não deveria haver mais nenhuma dúvida: o capitalismo global está se aproximando rapidamente da sua crise final. Slavoj Žižek identifica neste livro os quatro cavaleiros deste apocalipse: a crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do próprio sistema (problemas de propriedade intelectual, a luta vindoura por matérias-primas, comida e água) e o crescimento explosivo de divisões e exclusões sociais. E pergunta: se o fim do capitalismo parece para muitos o fim do mundo, como é possível para a sociedade ocidental enfrentar o fim dos tempos?

O fato é que a verdade dói, e para explicar por que tentamos desesperadamente evitá-la, mesmo que os sinais da “grande desordem sob o céu” sejam abundantes em todos os campos. Žižek recorre a um guia inesperado: o famoso esquema de cinco estágios da perda pessoal catastrófica (doença terminal, desemprego, morte de entes queridos, divórcio, vício em drogas) proposto pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross, cuja teoria enfatiza também que esses estágios não aparecem necessariamente nessa ordem nem são todos vividos pelos pacientes.

De acordo com Žižek, podemos distinguir os mesmos cinco padrões no modo como nossa consciência social trata o apocalipse vindouro. A primeira reação é a negação ideológica de qualquer “desordem sob o céu”; a segunda aparece nas explosões de raiva contra as injustiças da nova ordem mundial; seguem-se tentativas de barganhar (“Se mudarmos aqui e ali, a vida talvez possa continuar como antes…”); quando a barganha fracassa, instalam-se a depressão e o afastamento; finalmente, depois de passar pelo ponto zero, não vemos mais as coisas como ameaças, mas como uma oportunidade de recomeçar. Ou, como Mao Tsé-Tung coloca: “Há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente”.


Bem-vindo ao deserto do Real! , de Slavoj Žižek
Cinco ensaios provocativos do filósofo esloveno analisando os desdobramentos pós-11 de Setembro. Navegando pela interseção de cultura, psicanálise e política, o autor confronta a polarização ideológica que sucedeu à tragédia, ressaltando a complexidade das decisões.

O absoluto frágil, de Slavoj Žižek
Crítica ousada, que explora o papel do cristianismo e do marxismo na luta contra o fundamentalismo. Combina filosofia, psicanálise e exemplos da cultura moderna para discutir conflitos culturais e religiosos, destacando a importância da tolerância na busca pela liberdade.

Lacrimae Rerum, de Slavoj Žižek
Coletânea de ensaios que explora o cinema contemporâneo, revelando conexões entre cineastas renomados e a psicanálise. Seus comentários lúdicos e imersão no universo das telas oferecem uma perspectiva única e cativante sobre o cinema, destacando a influência das narrativas na percepção da realidade.

Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek
Incursão nas “causas perdidas” da história, desafiando análises convencionais sobre políticas totalitárias passadas. Com base em Marx e Lacan, propõe uma reinvenção do terror revolucionário e da ditadura do proletariado, refletindo sobre o idealismo subjacente a eventos historicamente controversos.


Primeiro como tragédia, depois como farsa, de Slavoj Žižek
Um olhar crítico sobre o colapso financeiro global após o 11 de Setembro. Notório contestador do liberalismo contemporâneo, o autor analisa a morte do capitalismo, sustentando que vivemos uma farsa após a tragédia. Desafia o liberalismo e convoca a reinvenção da esquerda no século XXI.

Violência, de Slavoj Žižek
As raízes ocultas da violência moderna e seu impacto na sociedade global. O autor desafia as percepções convencionais, oferecendo novas perspectivas sobre a complexidade da violência contemporânea e seu contexto histórico. Abrange desde o capitalismo até a linguagem e o terrorismo fundamentalista.


O ano em que sonhamos perigosamente, de Slavoj Žižek
Análise arrebatadora de eventos marcantes, como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street, sob a lente crítica do filósofo esloveno. Ele desafia a ideologia hegemônica, apontando para um futuro incerto, e oferece um arsenal crítico para aqueles que buscam a mudança.

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, de Slavoj Žižek
Uma exploração abrangente da filosofia ocidental à sombra de Hegel. Em sua obra-prima, o autor desafia a tentativa de escapar da influência hegeliana. Com maestria, explora a transição à modernidade, dialoga com pensadores contemporâneos e propõe uma leitura anacrônica do idealismo alemão.

O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política, de Slavoj Žižek
O filósofo desconstrói o sujeito cartesiano, revelando seu potencial político radical. Confronta correntes pós-althusserianas, teoria de gênero e desafia a hegemonia multicultural. Com humor e rigor filosófico, é uma intervenção política vital para repensar a esquerda na era do capitalismo global.


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