Garçons do apocalipse? O destino trágico da classe profissional-gerencial em “Casa de dinamite”

Imagem: Divulgação.

por Daniel Cunha

⚠️ATENÇÃO! SPOILERS NA PISTA⚠️

O crítico de cinema da Folha de São Paulo qualificou o filme Casa de dinamite como “aborrecido” e caracterizado, formalmente, por “truques baratos”. De fato, mesmo com toda a tensão envolvida — e bem explorada — em um cenário de ataque nuclear contra os Estados Unidos, há algo de profundamente “aborrecedor” no filme: ele centra o foco em dezenas de técnicos, militares e burocratas que tratam de seguir procedimentos ensaiados previamente centenas de vezes, como repetem vários personagens. Confirmar localização do míssil, sua direção, acionar sistemas de defesa e hierarquias de comando, e assim por diante: nada é espontâneo, tudo é tecnocraticamente protocolar. Mas será apenas isso? 

A diretora do filme, Kathryn Bigelow, foi maoísta na sua juventude. Enquanto parafraseava Mao, recebeu instrução de figuras como Susan Sontag, e é capaz de discorrer fluentemente sobre a dialética da técnica cinematográfica que utiliza. Assim, os “truques” precisam ser considerados com cuidado. Aqui trato de explicar essa apoteose da protocolização tecnocrática e as escolhas formais da diretora, no contexto da historicização de sua obra. 

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O leitor talvez fique surpreso com o fato de que Bigelow também dirigiu Caçadores de emoção (1991), filme de surfistas nada protocolar estrelado por Keanu Reeves e Patrick Swayze que fez certo sucesso no Brasil. Pois bem, entre esses dois filmes aparentemente tão díspares há um elo de continuidade. Como procurei mostrar em detalhes apoiando-me em Lucien Goldmann, Frederic Jameson e na teoria psicanalítica, a filmografia de Bigelow, considerada como uma totalidade histórica, expressa a visão de mundo da classe profissional-gerencial (CPG). Essa é uma classe que não possui meios de produção, e faz a mediação entre o capital e o trabalho, em antagonismo com ambos, tendo por função reproduzir essa relação. Sua constituição depende de certo grau de desenvolvimento do capital, já que a CPG não é produtiva. Ela abarca grupos sociais como profissionais autônomos, militares e produtores culturais, que desenvolveram uma visão de mundo peculiar como agentes da modernização, cultivando valores de competência técnica, autonomia, meritocracia e padrões éticos.  

Numerosa nos Estados Unidos, onde se formou no início do século XX, ela foi a proponente da ideologia progressista e, nos anos 1960, foi ela quem forjou, a partir das universidades, a New Left, notória por seus protestos contra a Guerra do Vietnã. Sua radicalização ocorreu em contato com o movimento negro radical; entre suas figuras intelectuais destacadas estão Angela Davis e Herbert Marcuse. 

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 padrões detectáveis na filmografia da diretora, dos quais aqui destaco dois. Nos filmes iniciais, como Quando chega a escuridão (1987) e Caçadores de emoção (1991) há uma comunidade marginal de não conformistas pela qual um membro da CPG se sente atraído — no primeiro caso, uma gangue de vampiros que vive relações interpessoais e temporalidades alternativas; no segundo, um grupo de surfistas que financia o seu “verão infinito” através de assaltos a bancos. Na dinâmica dos filmes, o final é trágico: o membro da CPG acaba sempre por corromper ou destruir a comunidade marginal que o fascinou.  

Já nos filmes tardios, como Guerra ao terror (2008), o vencedor de vários Oscar, A hora mais escura (2012), as comunidades marginais desaparecem completamente (ao contrário do que diz o crítico da Folhaesses filmes não têm nada de otimistas). Os protagonistas da CPG aparecem como tecnocratas obsessivos com tendências narcísicas.  

Há, assim, uma trajetória que vai dos filmes iniciais, com comunidades marginais marcuseanas e protagonistas da CPG ambíguos, para filmes sem comunidades marginais e com protagonistas da CPG narcisistas. Entre os últimos estão o técnico em desarmamento de bombas, sargento James, de Guerra ao terror, que após passar temporada na guerra do Iraque, volta voluntariamente ao cenário do conflito mesmo tendo um filho pequeno em casa, já que o que mais ama na vida, ele confessa, não é o filho, mas a guerra. 

Em termos de forma, essa trajetória se materializa na transição de uma dialética sintética para uma dialética negativa. Tomo como exemplo Caçadores de emoção e seu final trágico: o agente do FBI (membro da CPG) que infiltrou a gangue permite ao surfista fugitivo pegar uma última e sonhada onda gigante para encontrar a morte certa, após o que ele próprio parece se tornará surfista, aparentemente desiludido com o FBI — mas surge como um sucessor bastante imperfeito da contracultura do surfe que ele ajudou a destruir. De todo modo, há uma síntese aqui, mesmo que parcial e marcada por sentido trágico. Já nos filmes mais recentes, a partir de Guerra ao terror, o que marca é a ausência de comunidade marginal, deixando uma cicatriz formal. Ao invés de síntese, há agora uma dialética negativa, onde a ausência dessas comunidades deixa resíduos, no sentido adorniano: em A hora mais escura (filme ambíguo e muito criticado por apresentar cenas cruas de tortura), Maya, a agente da CIA que obsessivamente persegue Bin Laden, triunfa ao final. A imagem derradeira, porém, é a do seu choro solitário a bordo de um avião militar. De fato, a trajetória da estrutura formal da filmografia de Bigelow acompanha aquela da própria CPG: da New Left que flertava com o radicalismo à adesão/cooptação pelo neoliberalismo — moldado e executado por ela própria a partir de seus postos no Estado e nas corporações.

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Aqui vem Casa de dinamite: como nos outros filmes tardios, não há nenhum traço de comunidade marcuseana não conformista, e há uma dialética negativa, já que a ausência de autor definido do ataque permite à diretora moldar a forma do filme: ao invés do foco no inimigo ou nos resultados do ataque, uma ênfase em níveis jamais vistos nos procedimentos, protocolos e virtuosismo técnico da classe profissional-gerencial. Mas também, e principalmente, no seu fracasso: apesar da tragédia da CPG percorrer toda a filmografia de Bigelow, é a primeira vez que ela fracassa completa e miseravelmente, mostrando-se incapaz de evitar um ataque nuclear aos EUA.  

Isso também aponta para o fato de que a grande ausência configurada no filme é a daquilo que realmente poderia evitar uma guerra mundial: um movimento de massas crítico e internacionalista, a boa e velha consciência de classe. No filme, as únicas instituições que aparecem são o Estado e, em flashes, as famílias. Não há nada no meio. Assim, o desaparecimento de comunidades alternativas e a tragédia da CPG que caracterizam a obra da diretora atingem o seu desfecho lógico: o holocausto nuclear.  

Tendo isso em mente, o que seriam os “truques baratos” apontados pelo crítico da Folha? O primeiro, a repetição da história de diferentes perspectivas, à la Roshomon — a clássica adaptação de Dentro de um bosque feita pelo diretor japonês Akira Kurosawa nos anos 1950. Mas isso é o que permite a Bigelow explorar um dos seus traços formais característicos, o da imersão e uso intensivo de câmeras subjetivas. Em Caçadores de emoção, as cenas imersivas servem, entre outras coisas, para dar corpo ao espírito de liberdade e harmonia com a natureza do surfe, um “sentimento oceânico”; já no recém-lançado Casa de dinamite, a imersão expõe os traços compulsivos da CPG como jamais visto. Os procedimentos de desativação do míssil levam não mais do que cerca de dezoito minutos, e a escolha “roshomônica” pela repetição permite que esses minutos sejam vivenciados imersivamente pelos espectadores, em tempo real. Ela também permite a emergência de padrões bastante significativos. Não há um protagonista claro no filme — de fato, o protagonismo, de maneira mais explícita do que nos filmes anteriores, é o do sujeito coletivo da CPG, representado exaustivamente pelo seu ethos: a protocolização tecnocrática dos seus procedimentos e o desamparo quando estes falham mesmo quando a CPG “faz tudo certo”, traços presentes em todos os personagens.  

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Deve-se também notar que essa estratégia formal não é simétrica: conforme as diferentes perspectivas se sucedem, temos acesso a um grau superior na escala hierárquica (cuja função podemos qualificar quanto ao nível de monitoramento, execução e político), mostrando que quanto mais alta a posição, maior o nível de desorientação. Os eventos se desenrolam rumo a uma bifurcação no nível intermediário entre o militarismo bruto do general que defende o bombardeamento coletivo de “todos os inimigos” e o habermasianismo ingênuo do secretário da Defesa adjunto que quer “convencer” os russos e seu próprio presidente a não se bombardearem mutuamente, sem garantias materiais. No momento decisivo, no mais alto escalão, onde ocorre inclusive um suicídio, o presidente busca orientação com sua esposa; ela se encontra em uma reserva ecológica no Quênia, e os dois perdem o contato. Ao final, é um representante da CPG, um jovem tenente de 32 anos, que, tal como um garçom, orienta o presidente a escolher, a partir de um menu de atrocidades preparado com o “tempo e perícia” da CPG, entre uma retaliação (ou carnificina) “mal passada, ao ponto, ou bem passada”. Fica sugerido que o tenente convencerá o presidente pela última opção. Uma escolha trágica entre “rendição e suicídio” deixada a um homem negro americano, que sabe bem o que é uma catástrofe, mas está enredado nas estruturas de poder de sempre — seria um índice da contenção neoliberal da rebelião contra o assassinato de George Floyd? — e sabe que o povo americano, formado historicamente pelo excepcionalismo, não aceitará a primeira opção.

Assim sendo, as escolhas formais (a ausência de um autor do ataque; a estrutura “roshomônica”) são na verdade grandes forças do filme, que permitem à diretora centrar foco na contradição: a impotência do “aborrecido” virtuosismo tecnocrático-protocolar da CPG para evitar um colapso sistêmico. Sem essa forma em sua relação com o conteúdo do filme, ele recairia na banalidade, com vilões e heróis bem definidos tendentes à identificação fácil e a um final tradicionalmente apaziguador ou espetacular. A estrutura do filme, como ocorre em Guerra ao terror e A hora mais escura, é novamente configurada como uma dialética negativa, com ausências — notadamente de comunidades não conformistas — e resíduos, que é estruturalmente homóloga à realidade social do capitalismo tardio demais e sem oposição. A cena final do vômito do major Gonzalez, um movimento convulsivo sinalizando a perda de agência, é uma reencenação em grau mais elevado da lágrima da obsessiva agente da CIA em A hora mais escura, um sintoma dos limites do conceito — neste caso, da sistematização dos protocolos tecnocráticos da CPG. Uma escolha ousada para um filme da indústria cultural, concluí-lo sem resolução clara com a cena de vômito de um personagem sem carisma. Mas não é uma reação adequada diante da ausência de organização não conformista capaz de evitar um apocalipse servido à la carte?

Baseado na análise da trajetória da obra da diretora, meu palpite era que Casa de dinamite representaria a “apoteose da CPG”, perdendo força crítica em relação a filmes anteriores. De fato, a “apoteose” ocorreu, mas contrariou minha previsão: na exposição exaustiva da fetichização tecnocrático-protocolar da CPG e do seu derradeiro fracasso, há o arremate da tragédia que se desenvolve desde os primeiros filmes. A filmografia de Bigelow, mesmo em suas ambiguidades e contradições, merece ser estudada com muita atenção, pois nela estão registrados em forma estética aspectos fundamentais da dinâmica do capitalismo nos últimos cinquenta anos, sedimentados na dialética de forma e conteúdo por uma cineasta de grande sensibilidade histórica. Como enuncia um diálogo-chave desse último filme entre o general belicista e o presidente enfrentando uma decisão trágica, o presente é marcado pela confluência de “realidade” e “insanidade”: em tempos de declínio da hegemonia dos Estados Unidos, retorno da great power competition e ausência de movimentos não conformistas, o filme de Bigelow nos lembra que as soluções técnicas oferecidas pela virtuosa classe profissional-gerencial não são suficientes para nos salvar de um apocalipse nuclear.

***
Daniel Cunha é doutor em Sociologia, mestre em Ciência Ambiental e engenheiro químico. Co-editor da revista Sinal de Menos desde 2009, publicou também nos periódicos Critical Historical Studies, Mediations, Journal of World-Systems Research, Emancipations, Revista Rosa e The Brooklyn Rail, entre outros. Trabalhou com defesa do meio ambiente no setor público, e lecionou as disciplinas de Sociologia, História e capitalismo, Teoria da informação e Escrita e composição nos Estados Unidos, onde viveu de 2016 a 2025 para a realização de doutorado e pós-doutorado. Atualmente prepara livro sobre a sociologia histórica da ciência climática.


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1 comentário em Garçons do apocalipse? O destino trágico da classe profissional-gerencial em “Casa de dinamite”

  1. O único consolo dessa catástrofe é que não sobrará pedra sobre pedra pra contar a história!

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