O fenômeno Milei e o peronismo no labirinto: um breve balanço da eleição legislativa argentina

Foto: Casa Rosada (via WikiCommons)
Por Rafael Rezende
Do otimismo à frustração
Assim como ocorre nos Estados Unidos, o sistema eleitoral argentino prevê a renovação de uma parcela do Parlamento a cada dois anos. No segundo ano do mandato presidencial, são substituídos um terço dos senadores, que possuem mandatos de seis anos, e metade dos deputados nacionais, cujo mandato é de quatro anos. Esse tipo de eleição geralmente funciona como um teste para o presidente, uma vez que a população é chamada a decidir se amplia ou reduz a bancada governista, conferindo, assim, mais ou menos poder ao chefe de governo.
No domingo, 26 de outubro, aproximadamente 68% dos eleitores argentinos aptos a votar compareceram às urnas. Trata-se do menor quorum desde o retorno da democracia no país, em 1983, revelando um dos pilares que sustentam o fenômeno político representado por Javier Milei: o ceticismo dos argentinos em relação ao sistema político. Tal ceticismo é alimentado por uma profunda crise econômica que já dura mais de uma década e atravessa governos de variados espectros ideológicos.
Entre as forças populares opositoras a Milei, a expectativa era grande. Após dois anos de furor em torno do novo presidente — um populista de extrema direita que prometia resolver os problemas econômicos da Argentina por meio da destruição do Estado e da aplicação da lógica de mercado às mais diversas esferas da vida —, o jogo parecia estar mudando. Apesar de ter obtido relativo sucesso na desaceleração da inflação, sua principal promessa de campanha, o custo foi alto: a deterioração do poder de compra da maioria das famílias argentinas. Atualmente, aproximadamente 15% das crianças do país vivem sob insegurança alimentar severa.
Além disso, dois escândalos de corrupção atingiram o entorno político do presidente. O primeiro envolveu seu ex-advogado e Karina Milei, sua irmã e principal conselheira política. Áudios vazados indicam que ambos estariam recebendo propina de indústrias farmacêuticas em troca de contratos com o governo. O segundo diz respeito a José Luis Espert, aliado próximo de Milei na província de Buenos Aires, que teria recebido financiamento de campanha e utilizado o avião particular de Federico Machado, empresário acusado de associação ao narcotráfico, lavagem de dinheiro e fraude nos Estados Unidos. Ironicamente, Espert é conhecido por debater segurança pública recorrendo ao jargão: “cadeia ou bala”.
Para completar o conjunto de fatores que alimentou o otimismo dos opositores de Milei, no início de setembro ocorreu uma eleição local na província de Buenos Aires, o maior colégio eleitoral da Argentina, que concentra mais de um terço do total de eleitores do país. Nessa disputa, a coalizão do presidente, A Liberdade Avança (LLA, na sigla em espanhol), ficou treze pontos atrás da Força Pátria (FP), coalizão peronista liderada, na referida província, pelo governador Axel Kicillof. Essa vitória peronista foi tão expressiva que alguns analistas levantaram a hipótese de que ela teria mobilizado os apoiadores de Milei a compareceram às urnas no último fim de semana.
Nada disso, contudo, foi suficiente para conter a expressiva vitória obtida pela coalizão do presidente, que alcançou cerca de 40% dos votos válidos, contra 31% dos peronistas. Até mesmo na província de Buenos Aires, pouco tempo depois de uma dura derrota, Milei conseguiu uma reviravolta e saiu vitorioso por meio ponto percentual. A despeito da pequena margem, essa conquista teve um sabor especial: LLA não apenas conseguiu reverter, em curto prazo, um resultado negativo, como o fez em um tradicional reduto peronista. Em Córdoba, a segunda maior província argentina, os peronistas não conseguiram eleger um deputado sequer.
Há consenso entre os analistas de que a vitória de Milei representou uma importante demonstração de força política, e acende um preocupante sinal de alerta para o peronismo. A questão que realmente suscita debate é: por que tantos argentinos continuam confiando em Milei, apesar da persistência da crise econômica, dos escândalos de corrupção e do uso de um discurso político violento, alheio ao consenso democrático que a Argentina construiu após sua última ditadura?
É a política, estúpido
Em 1992, durante a primeira eleição de Bill Clinton à presidência dos Estados Unidos, um de seus estrategistas de campanha explicou o sucesso do candidato democrata com uma frase que se tornaria célebre: It’s the economy, stupid! (“É a economia, estúpido!”). A intenção era evidenciar que os eleitores escolhiam Clinton por estarem insatisfeitos com os rumos da economia sob a administração anterior. No caso aqui abordado, contudo, faz-se necessária uma modificação: é a política, estúpido!
Com frequência, tanto no meio jornalístico quanto no acadêmico, observamos analistas resumindo os sucessos eleitorais de Milei como consequência direta da crise econômica argentina. Evidentemente, a economia desempenha um papel fundamental na explicação do fenômeno representado por ele. Ela está intrinsecamente vinculada ao desencantamento com a política e à indignação social que levam milhões a apoiar um projeto radical, ainda que reacionário. Não obstante, um fenômeno tão complexo e multifacetado não pode ser reduzido a uma única causa. A insistência, por vezes preguiçosa, de alguns em reduzir Milei a uma mera consequência da crise econômica oculta a forte dimensão política e ideológica desse fenômeno. Milei é, sem dúvida, fruto da crise econômica, mas também da internalização da racionalidade neoliberal nas massas, da conjuntura geopolítica global e da crise de liderança do peronismo.
É um equívoco supor que Milei mantém uma base fiel de apoiadores apenas porque prometeu pôr fim à crise econômica. Inúmeros políticos já fizeram a mesma promessa. Milei continua sendo apoiado porque conseguiu fazer com que as pessoas acreditassem que ele seria capaz de superar a crise não por ser melhor do que os demais, mas por ser diferente. Ele o faz vendendo um projeto radical, por meio de um discurso antissistêmico, que apresenta todos os indivíduos como potenciais empreendedores capitalistas, cujo insucesso decorreria unicamente da ação do Estado e de seus agentes parasitários. Trata-se de uma verdadeira oposição discursiva entre cidadania e empresariado: a primeira é associada à pobreza e à dependência; o segundo, à riqueza e à autonomia. Essa narrativa encaixou-se perfeitamente na experiência de uma multidão de superexplorados e desiludidos, que viram em Milei a esperança de prosperar.
Milei também se beneficiou de uma conjuntura internacional extremamente favorável. O mundo enfrenta uma onda de extrema direita cujos representantes nacionais, apesar de suas singularidades, estão unidos em uma verdadeira “internacional reacionária”. Donald Trump, pouco antes das eleições legislativas, concedeu um swap cambial de 20 bilhões de dólares à Argentina, prometendo um empréstimo adicional do mesmo valor em caso de sucesso eleitoral governista. Soma-se a isso a aliança dessas lideranças reacionárias com grandes empresários de tecnologia, que transformaram as redes sociais em vastas avenidas para o desfile de discursos extremistas de todos os tipos.
Por fim, é preciso ter em mente que ninguém senta sozinho ao tabuleiro. O sucesso eleitoral de Milei também se deve aos erros do peronismo. Sua última passagem pelo governo, com Alberto Fernández e Cristina Kirchner, foi desastrosa em muitos sentidos. Os Kirchner, embora ainda sejam figuras de grande relevância dentro e fora do peronismo, enfrentam a rejeição de uma parcela significativa do eleitorado. Além disso, a ex-presidenta responde a processos judiciais por corrupção, o que ela afirma ser um uso político dos instrumentos jurídicos.
O movimento peronista, conhecido historicamente por sua capacidade de se reinventar em condições adversas, é novamente desafiado a criar alternativas que apontem uma saída para o labirinto político em que o país se encontra. Por ora, suas lideranças parecem caminhar às cegas, esbarrando-se umas nas outras nos corredores desse labirinto.
O que muda?
Milei saiu da eleição legislativa fortalecido. Sua coalizão foi vitoriosa em 15 das 24 províncias argentinas (contando a capital federal). O presidente parece ter conseguido deixar para trás as dúvidas que surgiam sobre sua capacidade de conduzir o país.
Na Câmara dos Deputados, os peronistas seguem com os 99 assentos que já detinham. Já LLA passou a ter 80 assentos, 43 a mais do que no início do governo Milei. O Proposta Republicana (PRO), do ex-presidente Mauricio Macri, aliado de Milei, terá 24 assentos. Na Câmara Alta, os peronistas perderam 6 dos 34 senadores que tinham e LLA, que tinha 6 senadores, passou a ter três vezes mais.
Tais números não garantem a Milei a maioria necessária para aprovar as reformas mais importantes que prometeu. Por outro lado, a nova composição do Parlamento dificulta muito para os peronistas o bloqueio das iniciativas governistas. Sem sombra de dúvida, Milei agora possui mais força para negociar com a “casta política” que ele mesmo denunciou por anos e articular maiorias para aprovar seus projetos.
Do lado peronista, as dúvidas são muitas. Após governar duas vezes seguidas a província de Buenos Aires e liderar a vitória peronista na eleição local deste ano, Axel Kicillof despontava como o nome mais cotado da oposição para 2027. Após sair derrotado na eleição legislativa, começaram a surgir dúvidas sobre sua capacidade de mobilizar as bases peronistas para 2027.
Em suma: enganaram-se aqueles que, imbuídos de otimismo, acreditaram que o tempo de Milei já havia passado. A experiência brasileira com a extrema direita ensinou que a batalha contra as forças reacionárias contemporâneas é um conflito prolongado — uma guerra de posições que não se encerra com uma vitória eleitoral. Milei, enquanto fenômeno político e social, segue vivo e desafiando as forças democráticas e populares. Independentemente do que acontecer na eleição presidencial de 2027, a Argentina precisará de décadas para se livrar do legado perverso da extrema direita.
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Rafael Rezende é doutor em sociologia.
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