Literatura na escola: desafios e possibilidades na formação de leitores na Educação Básica
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Por Clara Rimkus Devus
“O prazer da leitura não é nada se não for compartilhado; construir uma hipótese de leitura só faz sentido se a hipótese puder ser confrontada com as dos outros ou submetida à sua avaliação. É no confronto com os outros que a leitura de cada um é pensada, refinada, corrigida ou reorientada, e é assim que as potencialidades do texto são liberadas.”
— F. Marcoin, A. Rouxel, C. Tauveron e P. Sève, La lecture et la culture litteraires au cycle des approfondissements, p. 24.
A literatura vem sendo objeto de estudo de diferentes campos ao longo de séculos. No Brasil, Antonio Candido, sociólogo, crítico literário e uma das grandes referências que temos, defendeu a literatura como direito básico, acrescentando que seria uma manifestação universal da humanidade em todos os tempos. Também afirmou que não há quem viva sem ela, isto é, “sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as 24 horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado”. É difícil não concordar com essa ideia. E no campo da educação isso se comprova: ao longo dos tempos, dadas as devidas diferenças referenciais, o ensino de literatura marca diferentes documentações oficiais que balizam as atuações voltadas à formação de leitores na escola.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), diretriz vigente, traça como objetivo central o envolvimento de estudantes em práticas de leitura literária de forma a desenvolver o senso estético e a valorização da literatura, bem como de outras manifestações artístico-culturais enquanto acesso às dimensões lúdicas, de imaginário e encantamento, e reconhece seu potencial de transformação e humanização. Parece não haver dissenso quanto a isso. No entanto, se o desafio não está na concepção da escola que queremos, por que a formação de leitores continua sendo uma questão de difícil solução?
Para além do senso comum de que “os jovens não leem”1, a última pesquisa promovida pelo Instituto Pró-Livro, a Retratos da Leitura no Brasil 2024, revelou um cenário mais amplo, que diz respeito não apenas a crianças e jovens, mas à população brasileira de forma geral: apenas 47% dos cidadãos são considerados leitores. Embora possa não soar tão alarmante, deve-se ressaltar o fato de que a pesquisa considera leitor “aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro de qualquer gênero, impresso ou digital, nos últimos três meses”. E nem estamos tratando especificamente da leitura de literatura – quando é esse o recorte, o número cai para 25%.
Ao olharmos para crianças e jovens, a informação é de que 77% dos leitores estão na escola, o que reforça o protagonismo que a instituição performa quando tratamos da formação de jovens leitores. Outro dado que chama atenção é o fato de que, ainda de acordo com a Retratos da leitura no Brasil, um estudante lê, em média, 1,27 livro de literatura no trimestre; tal número cai para 0,97 quando são considerados somente títulos indicados pela escola. Em um país tão desigual, se o acesso à literatura não for garantido a todos e todas por meio de políticas públicas educacionais, é difícil vislumbrar outro futuro.
Embora tal cenário seja fruto de múltiplos fatores — como a dificuldade de acesso a bons livros e a espaços adequados para a leitura, o escasso tempo didático para tratar do texto literário em sua complexidade, a influência da tecnologia ou até mesmo a formação docente (inicial e continuada) —, vale pensar sobre a leitura de literatura, especialmente em contexto escolar.
O tema da leitura é complexo, por se tratar de uma ação que não se limita à operação mecânico-cerebral de movimentação dos olhos e decodificação das letras, e, quando tratamos das especificidades da leitura literária, esbarramos em discussões antigas no campo da educação e que agravam seus entraves. Vincent Jouve, professor e pesquisador de literatura na França, afirma que toda leitura pressupõe a subjetividade de quem lê o texto e que cada leitor seria capaz de projetar-se em sua leitura: “A leitura de um texto é sempre a leitura do sujeito por ele mesmo”. É essa a concepção que nos interessa aqui, porque considera o sujeito como peça fundamental da leitura. No entanto, vale lembrar que ler não é natural, mas um ato que precisa ser ensinado.
Embora seja possível ler um romance da mesma forma que se lê uma notícia de jornal ou um texto informativo-expositivo, utilizando-o como um corpus qualquer, sem preocupação com a fruição ou o efeito estético que o texto provoca, isso não é desejável quando tratamos dos processos de ensino-aprendizagem de literatura na escola. Em lugar disso, se faz necessário buscar uma leitura que propõe um constante vaivém, ora de aproximação subjetiva com o texto, em que há projeção do sujeito, ora do distanciamento que o olhar analítico sobre o texto promove. Essa ação chamamos de leitura literária. O papel da escola reside, portanto, no desenvolvimento do leitor capaz de fazer ambos os movimentos com autonomia.
Mas, como formar leitores competentes e autônomos?
Um dos caminhos possíveis consiste na mediação de leitura. Michèle Petit, antropóloga francesa que se dedica a estudar a leitura, considera que a figura mediadora é portadora de certo poder em relação àquele jovem leitor: “Um mediador pode autorizar, legitimar um desejo inseguro de ler ou aprender, ou até mesmo revelar esse desejo”. Pode ser professor ou bibliotecário, mas também familiar, livreiro ou alguém com quem cruzamos: o bom mediador de leitura deve ser, antes de tudo, leitor.
Embora não haja manual que dê conta de sistematizar dicas de como ser um bom mediador de leituras, podemos nos aproximar de algumas pistas centrais: é necessário conhecer os livros propostos, assim como refletir sobre os temas por eles trazidos; é interessante se deter nos paratextos, nos contextos de publicação, estabelecer ou provocar relações com outras leituras e vivências, analisar as imagens e ilustrações (quando existem), ser capaz de assumir e validar o lugar da dúvida frente ao escrito – e, é claro, a boa mediação de leitura depende diretamente da escuta, que acaba por estabelecer uma relação de confiança entre os leitores. Mediar é, também, saber encarar contratempos, que, neste caso, podem ser situações inusitadas, compartilhamentos sensíveis ou íntimos, leituras delirantes ou equivocadas etc. que exigem atuações cuidadosas e respeitosas.
Na escola, é possível pensar um ensino de literatura para além da aprendizagem dos conhecidos movimentos literários, de um olhar sacralizado ou estruturalista ou até mesmo de seu uso como pretexto para tratar de certo assunto considerado importante para a infância ou adolescência. Ou seja, não precisa haver um ponto específico de chegada, mas um percurso negociado e processual: embora no chão da escola se considere o mediador um leitor experiente — ou, no caso de professores de literatura, um especialista —, ele não é detentor da única chave capaz de destravar e adentrar os sentidos do texto. É preciso ser generoso com os leitores e leitoras em formação, apontando caminhos que os ajudem a avançar em suas aprendizagens e ampliem suas “bibliotecas interiores”, ou seja, fortaleçam o conjunto de leituras a partir das quais suas personalidades se constroem e que organizam suas relações com outros textos e com os outros leitores. Para isso não basta discutir o texto em si, mas como tal texto foi recebido pelo leitor.
Círculos de leitura, clubes de leitura ou salas de aula e todo espaço que se estrutura com o objetivo de ler e discutir coletivamente um texto literário podem ser uma oportunidade de ampliação de repertório e de aprendizagem sobre si e sobre os outros (sejam os outros livros, colegas e até mesmo o mundo). São momentos em que constatamos que aquilo que nos toca pode ser interpretado pelo outro de maneira bastante diferente. Entretanto, embora os textos apresentem lacunas a serem preenchidas pelo leitor, há também os “direitos do texto”, elementos estruturados pelo autor e que precisam ser respeitados. A isso, o mediador precisa se ater constantemente, uma vez que há que se garantir certo entendimento comum entre os presentes, fruto da percepção dos limites impostos pelo próprio texto: não é possível modificar acontecimentos explícitos, datas, nomes de lugares ou personagens, por exemplo. A negociação de sentidos entre leitores, embora comumente inconclusiva — porque não há desejo ou possibilidade de decifrar e esgotar por completo um texto literário, tampouco uma verdade única a ser alcançada —, é, também, um aspecto fundamental.
No Ensino Médio, em que predominam abordagens mais distanciadas sobre literatura em vez da leitura de literatura, ou seja, sobre a experiência estética que só se estabelece em contato com o texto literário, os círculos de leitura se consolidam como estratégia didática importante, uma vez que é um espaço que conta com leitores diversos, inclusive alguns mais competentes e, logo, capazes de fazerem contribuições profundas sobre elementos que ultrapassam abordagem técnica (tempo, espaço, personagens e voz narradora), de compartilhar a experiência individual de recepção, bem como os modos de enfrentamento do texto.
Com estudantes mais novos, da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, as rodas de leitura ajudam a estabelecer uma cultura literária desde cedo, promovendo contato com os livros, discussões sobre leituras, troca de impressões e negociação de sentidos criada sistemática e intencionalmente pela equipe docente.
Para reverter esse quadro, é preciso, portanto, garantir aos profissionais responsáveis tempo para exercitarem suas próprias leituras literárias, para ampliarem seus repertórios e trocarem experiências com outros leitores, ou seja, para que eles também possam formarem-se como leitores literários. É como diz Petit: “para transmitir o amor pela leitura, e acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que se tenha experimentado esse amor.” Também é urgente o acesso desses profissionais a uma formação de qualidade, tanto inicial quanto continuada, o que se sabe ser um problema educacional importante no Brasil. Um retrato disso é o fato de que a Universidade de São Paulo (USP), uma das maiores universidades da América Latina, oferece no curso de Pedagogia apenas uma disciplina optativa voltada ao ensino de literatura na escola, com duração de um semestre. Ou seja, muitos jovens professores lecionam nas escolas sem nenhuma bagagem teórica sobre a formação de leitores.
Sem uma preocupação coletiva, pautada no investimento de políticas públicas efetivas para a formação de leitores na escola, dificilmente veremos avanços. Embora o caminho seja longo e sinuoso, há de haver esperança e teimosia em realizar, na prática, um mundo mais justo e crítico — esse sim, mais facilmente sonhado pela literatura.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2017.
CANDIDO, A. “O direito à literatura”, em Vários escritos (São Paulo, Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 1995).
INSTITUTO PRÓ-LIVRO, Retratos da Leitura no Brasil (6. ed. São Paulo, IPL, 2024).
JOUVE, V. “O leitor real”, em A leitura (São Paulo, Editora da Unesp, 2002).
JOUVE, V. “A leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógico das leituras subjetivas”, em A leitura subjetiva e ensino de literatura (São Paulo, Alameda, 2013).
MARCOIN, F.; ROUXEL, A.; TAUVERON, C.; SÈVE, P. La lecture et la culture litteraires au cycle des approfondissements: Acte de l’université d’automne Clermont-Ferrand – Royat, 28 au 31 octobre 2002 Broché – 1 mars 2004.
OLIVEIRA, Gabriela Rodella de. As práticas de leitura literária de adolescentes e a escola: tensões e influências. Tese de doutorado em educação, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. (2. ed. São Paulo, Editora 34, 2009).
REZENDE, N. “O ensino de literatura e a leitura literária”, em Leitura de literatura na escola (São Paulo, Parábola, 2013).
***
Clara Rimkus Devus é formada em Letras pela FFLCH (USP) e mestranda na área de Educação, Linguagem e Psicologia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde pesquisa avaliação e leitura literária nos anos finais do Ensino Fundamental. Participa, desde 2021, do Grupo de Pesquisa Linguagens na Educação. Atuou como professora polivalente desde 2013 e atualmente é Coordenadora da Área de Língua Portuguesa na Escola Vera Cruz, em São Paulo.
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A educação ambiental anticapitalista: produção destrutiva, trabalho associativo e agroecologia, de Henrique Tahan Novaes
Com uma visão abrangente, a obra apresenta as ideias mais importantes sobre agroecologia, produção associada, ecossocialismo e pedagogia socialista no Brasil e no mundo, juntamente com práticas de movimentos sociais, enfatizando o trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.
A escola e a letra, organizado por Flávio Aguiar e Og Doria
Grandes autores brasileiros compartilham suas experiências escolares, revelando influências e memórias em uma coletânea cativante de contos e crônicas. Uma exploração única das relações entre educação e literatura, lançando um olhar inédito sobre o impacto da educação em suas criações.



Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar, de Fernando Cássio (org.)
Fernando Cássio, organizador da obra e especialista em políticas públicas de educação, convidou mais de vinte autores para propor um debate franco e corajoso sobre as principais ameaças à educação pública, gratuita e para todas e todos: o discurso empresarial, focado em atender seus próprios interesses; a perseguição à atividade docente e à auto-organização dos estudantes; e o conservadorismo que ameaça o caráter laico, livre e científico do ambiente escolar.
A escola não é uma empresa, de Christian Laval
Com uma abordagem pioneira na discussão educacional, trata da influência do neoliberalismo na escola, destacando como as instituições de ensino se moldam às necessidades do capitalismo contemporâneo. Análise crítica sobre a transformação da educação em mercadoria, com Prefácio inédito do autor.
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