“Máscaras de oxigênio não cairão automaticamente”: a força de uma comunidade que nunca cansou de apostar na vida

Imagem: Divulgação.

Por Cauana Mestre

Máscaras de oxigênio não cairão automaticamente é uma produção da HBO, e uma das melhores coisas que eu vi esse ano. Idealizada por Thiago Pimentel, Mariza Leão e Tiago Rezende, a série resgata o Brasil do final dos anos 1980 para recriar a tragédia da AIDS e o impacto da doença na comunidade LGBTQIAPN+. No entanto, diferentemente de outras produções que tratam do tema — como a ótima Pose, por exemplo — essa série amplia o olhar e nos faz ver além do véu do preconceito. Não estamos diante de personagens cuja complexidade fica escamoteada pela tragédia, ao contrário, o que vemos na tela é a mais profunda e complexa humanidade atingida pelo vírus. 

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No centro da trama está o comissário de bordo Nando, vivido por Johnny Massaro. Depois de receber o diagnóstico, ele decide contrabandear o AZT (única medicação então disponível capaz de combater o vírus HIV, mas que era proibida no Brasil). Ao longo de alguns episódios acompanhamos a luta incessante de Nando, sua amiga Lea (Bruna Linzmeyer) e outros funcionários da aviação para trazer a medicação para uma comunidade vítima de um vírus e do descaso do Estado. 

Para além da letalidade do vírus arrebatador, nos chocamos com a verdade que sempre tentamos ignorar no campo coletivo: aquilo que fere um de nós, fere a todos. Quando achamos que o feminismo já nos ensinou o bastante a respeito disso — ao provar que, enquanto uma mulher não estiver livre, nenhuma mulher estará — somos de novo e de novo assombrados pelas violências coletivas que a segregação é capaz de produzir. A série triunfa ao revelar que o maior inimigo (e aquilo que mata o traço humano de forma mais feroz, pois atinge diretamente nossa dignidade) é sempre o desamparo da solidão e do descaso. Apreendemos essa verdade sempre tarde demais, num tempo em que o olhar retrospectivo já não repara mais nada, nem é capaz de salvar as vidas que perdemos pelo caminho.

Como escreveu o jornalista Omar El Akkad sobre o genocídio em Gaza: “um dia, quando for seguro, quando não houver consequências pessoais por chamar as coisas pelos nomes, quando for demasiado tarde para responsabilizar quem quer que seja, todos teremos sido contra isso”. 

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No entanto, no Brasil, que segue matando a população queer como nenhum outro país do mundo, precisamos recontar cada vez com maior amplitude as histórias que nos envergonham e que nos lembram de que um Estado sensível só é possível quando entendemos que nenhuma comunidade pode estar à margem, que não existe o “eles” e o “nós” que sustenta os muros que levantamos. Nando, Lea, Raul (Ícaro Silva), Paloma (Kika Sena) e todo o grande elenco da série conseguem traduzir o que poucas produções sobre a AIDS puderam fazer. Não é um documentário sobre a morte, mas um tratado sobre a força de uma comunidade que nunca se cansou de apostar na vida. É com essa comunidade, sim, que a gente aprende a continuar dançando mesmo quando a música termina. E aprende que, para isso, precisamos ter a coragem de enfrentar as armas que silenciam os corpos, mantendo o desejo até o fim. Como diz Nando, do começo ao último som: eu não vou parar de voar

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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.


Margem Esquerda #33 | Marxismo e lutas LGBT
Com dossiê de capa sobre “Marxismo e lutas LGBT”, coordenado por Lucas Bulgareli, com textos de Amanda Palha, Renan Quinalha, Rafael Dias Toitio e Isadora Lins França, a edição abre com uma entrevista exclusiva com a filósofa e ativista Judith Butler, e traz ainda textos de Angela Davis, Mario Mieli e Clara Zetkin, entre outros. O ensaio visual é do artista plástico Carlos Motta.

Por um comunismo transexual, de Mario Mieli
Considerado um dos precursores da teoria queer, explora a relação entre homossexualidade, homofobia e marxismo. Tradução direta do italiano e com apêndice crítico, é um texto essencial para compreender a luta pela libertação sexual e a necessidade de desconstruir a “Norma” heterossexual.

Quem tem medo do gênero?, de Judith Butler
Neste seu primeiro livro não acadêmico, Judith Butler analisa como o “gênero” se tornou central em discursos conservadores e reacionários, um fantasma com o objetivo de criar pânico moral e angariar apoio popular a projetos políticos fascistas, autoritários e excludentes. Intervindo em uma das questões mais inflamadas da atualidade, a obra é uma convocatória arrojada a construir uma coalizão ampla contra as novas formas do fascismo. “É  crucial que a política de gênero se oponha ao neoliberalismo e a outras formas de devastação capitalista e não se torne seu instrumento”, insiste a autora.



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