“Uma batalha após a outra” e as verdades que só a ficção revela

Imagem: Divulgação.
SEM SPOILERS
Por Cauana Mestre
Na primeira vez que visitei a escola de minha filha, encontrei um mapa fictício desenhado em papel e colado numa imensa parede. Todo feito à mão, era dividido em territórios de nomes inventados e organizado segundo uma estratégia de poder e transações. O professor de Geografia, responsável pela atividade, não parecia surpreso com a habilidade dos alunos do quinto ano, pelo contrário — sua naturalidade me provava que eu tinha mesmo perdido meu idealismo. “A ideia era mostrar a eles que um território começa com uma narrativa, e as explorações também”, explicou. Até então eu nunca tinha pensado verdadeiramente nesse fato humano: todo mapa é fictício porque toda fronteira é uma ficção.
Ao assistir a Uma batalha após a outra, obra prima de Paul Thomas Anderson, isso não me saiu da cabeça. O longa tem muitas camadas, mas se eu precisasse determinar seu tema, diria que o filme trata do perigo de acreditarmos demais nas coisas que inventamos para organizar o mundo e, além disso, dos riscos que corremos quando não levamos a sério uma coisa que se aprende na crítica literária, mas que é, também, psicanalítica e sociológica: a ficção não é oposta à verdade, mas sim à mentira, e o que difere uma da outra é, sobretudo, o pacto. Enquanto, na ficção, fazemos um pacto com o outro — ambos topando a suspensão da descrença —, na mentira, exploramos a crença ou a vulnerabilidade alheia, tentando impor uma verdade mentirosa. É o que distingue a fronteira, que criamos para organizar o mundo e as relações, do muro, que levantamos para segregar.

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Anderson leva isso à sério ao construir sua versão de Vineland, livro de Thomas Pynchon. Leonardo DiCaprio é Bob Fergunson, revolucionário de uma organização que ataca as prisões de migrantes nas fronteiras com o México, libertando centenas de pessoas. Sua companheira, Perfídia Beverly (interpretada de forma brilhante por Teyana Taylor), líder das maiores operações, não é movida apenas por idealismo, mas por um prazer que não demora muito a escancarar seu excesso e colocar tudo a perder. Depois que as coisas saem do controle, vemos um Bob preguiçoso e que se concentra em criar a filha sendo ativista de sofá.
Outro personagem central é Steven Lockjaw (deixo para vocês traduzirem e interpretarem a pérola desse nome), vivido de forma magistral por um dos melhores atores de todos os tempos, sem discussão: Sean Penn. Ele é a personificação do carrasco da extrema direita, aquele que acredita demais na própria virilidade para realmente saber de que matéria se faz um homem. Uma mistura de insegurança, violência e imbecilidade que a gente conhece tão bem, e que mostra que a raiz da segregação reside na profunda ignorância das próprias entranhas subjetivas. Uma das melhores cenas do filme mostra Willa Fergunson (filha de Bob e Perfídia, interpretada por Chase Infiniti) perguntando ao coronel Lockjaw por que sua camiseta é tão apertada. Uma frase simples — mas que expressa anos de teoria feminista e explicações psicanalíticas sobre a violência masculina — revela a genialidade do roteiro e o poder que o cinema tem de nos fazer experimentar aquilo que já sabemos no mundo das ideias.

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Como se não bastassem já todas essas atuações impecáveis, de repente vemos Benício Del Toro no papel do sensei Sergio Carlos. Ele abriga migrantes mexicanos e, na hora da batida policial, se lembra de respirar e tomar cerveja enquanto assistimos a um DiCaprio desgrenhado, de roupão, brigando com a organização revolucionária por uma senha de acesso da qual não se lembra há 16 anos.
O humor parece um elemento secundário no filme, já que é difícil rir das verdades ali escancaradas sobre a nossa tragédia em curso, mas sua função talvez não seja exatamente a de nos divertir e sim mostrar o quanto somos patéticos, como é tragicômica essa nossa guerra cultural sem fim enquanto o mundo acaba à nossa volta. E ao lado dessa acidez está a vertiginosa trilha sonora de Jonny Greenwood, que atinge seu ápice numa cena palpitante de perseguição em que a estrada se transforma em um labirinto hipnótico.

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Na mesma água suja, Anderson afoga a mentira do sonho americano e o perigo do idealismo de paixões ao direcionar o filme para a batalha entre dois homens, nada mais banal do que isso. Perfídia, ao contrário, uma Medéia contemporânea, radicaliza, para além de qualquer moralismo, a força que uma mulher precisa ter para ser antes mulher que mãe.
Como eu disse, é uma obra prima. Das poucas coisas que não conhecem fronteiras, talvez o cinema seja a maior delas. Saí do cinema eletrizada e só queria perguntar aos quatro cantos: homens, por que a camiseta de vocês é tão apertada?
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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.
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