O que é saúde mental?

“O Beijo”, de Gustav Klimt. Imagem: Wikimedia Commons
Por Maria Rita Kehl
Começo com Freud, que era médico mas não tratava da saúde física. A definição de Freud quanto a esse tema é sucinta e (a meu ver), certeira. A saúde mental de uma pessoa pode ser resumida como a sua capacidade de amar e trabalhar. São duas ações muito diferentes, não acham? Mas entre elas há um ponto em comum: Tanto no amor quanto no trabalho, o sujeito, forçosamente, sai um pouco de si mesmo — de sua solidão, de suas ruminações estéreis, de sua vã vaidade — e se entrega a predisposições psíquicas que transcendem o ego.
Não que o ego seja supérfluo em nossas aventuras amorosas ou em nosso empenho profissional. O ego é nosso sustentáculo. Mas amor e trabalho nos forçam a ceder espaço psíquico para além dele. O ego nos estrutura, enquanto sujeitos, mas não é tão soberano quanto gostaríamos de acreditar. Quando amamos alguém, por exemplo: uma parte da satisfação que sentimos ao sermos correspondidos no amor é puramente egóica. A proposta freudiana, de que a saúde mental se define pela capacidade de amar e trabalhar, pode ser entendida também desta forma: amor e trabalho produzem saúde mental. Tanto um quanto o outro nos ajudam a dar sentido à vida porque forçosamente abrem brechas no rochedo que nos protege da castração.
Para os leigos em psicanálise (o que não é vergonha pra ninguém) vale esclarecer que “castração” é a metáfora com que Freud tenta explicar nossa incompletude — a qual, aliás, é condição para a saúde mental. A incompletude humana pode ser traduzida como “a falta que move”. É o que nos faz desejantes. Somos sujeitos, por definição, incompletos — por isso mesmo, a falta nos move. Nos move a quê? A criar. E a amar.
Em contrapartida, quando o outro deixa de nos amar, o ego, frequentemente, fica mais ferido do que o “coração”. Nessas horas, para quem for capaz disso, vale a pena entregar-se novamente a algum projeto de trabalho que talvez não traga de volta o ser amado, mas, sim, renova a auto estima.
Além disso, tanto o amor quanto o labor exigem que saibamos encarar nossas insuficiências: tanto um quanto o outro são incompatíveis com excessos narcísicos. Explico: o sujeito que se considera perfeito, ou completo, dificilmente vai conseguir abrir mão dessa agradável fantasia para se arriscar em alguma empreitada na qual pode tanto ter sucesso quanto fracassar. Por outro lado… se não nos arriscamos em empreitadas interessantes (e, se possível, bem-sucedidas), nosso ego se empobrece e deixa de atender a nosso ideais narcísicos.
Sim: algum narcisismo (vale simplificar aqui e traduzir por autoestima) é necessário. Quem não tem nenhum amor por si mesmo tende à depressão. Em situações em que o sujeito não encontra — ou não produz — nada que alimente sua auto estima, ele se deprime. Deixa de amar a si mesmo. Em casos extremos, essa falta de auto estima pode levar a tentativas de suicídio. Eu diria que o bom amor de si mesmo — que nada tem a ver com exageros de vaidade — se alimenta tanto das realizações que o sujeito se empenha em conquistar quanto da estima e do reconhecimento do outro. Mais, ainda: nossa auto estima também é acionada quando, além de receber admiração do outro, somos também capazes de dar o que ele necessita. Sermos solidários nos faz bem. Isso nada tem a ver com uma tendência sacrifical: quem se sacrifica por vaidade (“vejam como sou bom!”) corre o risco de se tornar ressentido: “fiz tanto por ele, mas ele não me agradeceu à altura”… Se você quer fazer algo pelo outro, faça de coração aberto, não como quem investe em uma futura medalha de bom comportamento. Fazer pelo outro, com gosto, nos alegra. “Saúde mental” (o tema desta coluna) tem mais a ver com alegria do que com vaidade.
Se for o caso de sacrificar alguma coisa, sacrifiquemos nosso egoísmo… mas não todo, ok? Vale guardar um pouco de egoísmo para conquistar, e desfrutar de coisas que nos fazem bem!
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Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisito, Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos do feminino, Bovarismo brasileiro e Ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! e O disco-pizza.
CONHEÇA A OBRA DE MARIA RITA KEHL


Bovarismo brasileiro, de Maria Rita Kehl
Conjunto de ensaios marcantes sobre temas que abarcam desde a literatura de Machado de Assis até um estudo de caso, passando por reflexões acerca das origens do samba, do manguebeat, do período de expansão da rede Globo e da primeira campanha de Lula. Para dar liga às suas análises, a autora vale-se do conceito de bovarismo, cunhado pelo filósofo e psicólogo Jules de Gaultier com base na personagem Emma Bovary, de Gustave Flaubert, uma ambiciosa e sonhadora pequeno-burguesa de província que, à força de ter alimentado sua imaginação adolescente com literatura romanesca, ambicionou ‘tornar-se outra’ em relação ao destino que lhe era predestinado.
Ressentimento, de Maria Rita Kehl
O livro aborda a conceitualização do ressentimento a partir de quatro pontos de vista: a clínica psicanalítica, a filosofia de Nietzsche e Espinosa, a produção literária e o campo político. O ressentimento não é um conceito clássico da psicanálise; assim, Maria Rita Kehl mobiliza tanto as suas observações clínicas quanto conhecimentos de outras áreas para definir e explicar a constelação afetiva que forma o ressentimento.
Tempo esquisito, de Maria Rita Kehl
A coletânea de ensaios traz para o leitor um conjunto de reflexões e análises feitas durante o período da quarentena da covid-19: “Diante de tanta tristeza, escrever foi uma forma de ocupar o espaço do debate público sem romper o isolamento físico. Uma forma de estar com os outros”, conta a autora no prólogo. Nos textos, além da questão da saúde pública, Kehl aborda temas recorrentes desde 2019 – início do mandato de Jair Bolsonaro na presidência –, como violência policial, desigualdade social e outros. Há artigos, por exemplo, sobre o linchamento do congolês Moïse Kabagambe, no Rio de Janeiro, em 2021, e também sobre o assassinato de Genivaldo dos Santos, morto pela Polícia Rodoviária Federal, em 2022, em Sergipe. Além, é claro, do olhar sempre voltado à psicanálise, campo principal de atuação da autora.



Videologias: ensaios sobre televisão, de Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl
Com pouco mais de 50 anos de existência, é onipresente. É impossível ignorá-la ou pensar o mundo hoje sem considerá-la. É a televisão. O livro de Maria Rita Kehl e Eugênio Bucci, é, desde o trocadilho no título com a célebre obra Mitologias, de Roland Barthes, uma obra que une visão crítica e psicanálise para dissecar as relações entre mitologias, ideologias e televisão.
O tempo e o cão: a atualidade das depressões, de Maria Rita Kehl
Escrito a partir de experiências e reflexões sobre o contato com pacientes depressivos, o livro aborda um tema que, apesar de muito comentado, é pouco compreendido e menos ainda aceito atualmente. Para abordá-lo, Maria Rita faz um apanhado do lugar simbólico ocupado pela melancolia, desde a antiguidade clássica até meados do século XX, quando Freud trouxe esse significante do campo das representações estéticas para o da clínica psicanalítica.
Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, de Maria Rita Kehl
A obra questiona as relações que se estabelecem entre a mulher, a posição feminina e a feminilidade na clínica psicanalítica. Existe uma diferença irredutível entre homens e mulheres, afinal? Partindo da defesa de uma ‘mínima diferença’, um modo de ser e de desejar através do qual homens e mulheres assumem papéis distintos na sociedade, a autora investiga o campo a partir do qual as mulheres se constituem como sujeitos, de modo a contribuir para ampliá-lo.
PARA TODAS AS IDADES


Neném outra vez!, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
A divertida incursão de Maria Rita Kehl na literatura infantil aborda o ciúme entre irmãos como pretexto para falar sobre questões mais profundas com as crianças, como o poder da vontade, o amor próprio e aceitação de mudanças na vida. O livro é ilustrado pela cartunista Laerte Coutinho.
O disco-pizza, de Maria Rita Kehl e Laerte Coutinho
Gil é um garotinho de sete anos que tem muita vontade de comemorar o Natal. Sua família diz que é uma data comercial e, por isso, eles nunca fazem os tradicionais festejos em casa. O menino até concorda com a decisão, mas pensa que seria bacana uma árvore cheia de bolas coloridas e luzinhas, presentes ao pé da cama e muita coisa gostosa para comer. Maria Rita Kehl e Laerte trazem ao leitor essa nova obra cheia de criatividade e ressignificação de tradições.
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