Uma ficção eletricamente política: conheça “A cicatriz”, de China Miélville
Foto: Wikimedia Commons
Por Felipe Castilho
Tudo começa no breu das profundezas do oceano, de onde coisas absurdas e amedrontadoras podem emergir — e que não seria grosseria apresentar como uma passagem possível para a mente de China Miéville.
É assim que me sinto a cada trabalho que conheço do autor: estou no meu “mundo comum”, e um conhecido acena para mim com urgência. Ele pede que eu o siga. “Te explico no caminho”, diz, simplesmente. E eu concordo, porque sei que as curvas e a estranheza da jornada percorrida são certeiras. Com Miéville, não preciso saber de antemão do que se trata o livro, posso começar sem receios e seguir ao longo das páginas.
Assim como o autor permeia seus textos de não ficção com a mais pura noção narrativa de quem sabe contar uma boa história, sua ficção é repleta da eletricidade política. China é um antropólogo e militante que enxerga na fantasia, no horror e na ficção científica todo o aspecto popular e coletivo implicado. É um autor que ressignifica fronteiras, e os limiares entre o levemente familiar e o absurdo rotineiro são onde suas histórias se passam. E onde se dá A cicatriz.
Uma história com piratas e contrabandistas. Uma história de espionagem, uma história sobre encontrar seu lugar num mundo onde tudo é dualidade. Nela, Bellis Vinhofrio está a bordo de Terpsichoria, grande nau de ferro que tem carregamento e destino escusos, mas que pode levar essa mulher a seus objetivos secretos. A embarcação, porém, leva a uma situação que vai muito além do simplesmente “diplomático” — e é aí que somos apresentados a ações cruas que explodem sem sobreaviso em cenários de tirar o fôlego. Prepare-se para visitar conveses que remetem a barcos já cantados por Hemingway e Herman Melville, assim como ruas sujas e industriais povoadas por raças e criaturas únicas. Prepare-se para uma viagem do urbano ao mágico, na qual essas duas coisas se confundem o tempo todo.
Essas características de A cicatriz já indicam o tom de new weird, gênero dentro do insólito literário que China representa tão bem, a ponto de tornar-se referência máxima. Não bastasse tudo isso, jogo uma isca: um submarino chamado Philip K. Dick desliza próximo a praias de um continente chamado H. P. Lovecraft. Mas esse continente é banhado por um oceano único chamado China Miéville. E tudo começa no breu das profundezas do oceano.
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Felipe Castilho é escritor e roteirista. Foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2017 pelo quadrinho Savana de Pedra e, em 2020, pelo romance Serpentário. Escreve principalmente ficção especulativa, Fantasia e quadrinhos.
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A cidade e a cidade, de China Miéville
Duas cidades ocupam o mesmo espaço geográfico. Rígidas normas sociais de governos autoritários impedem quem mora em uma delas de enxergar as pessoas que vivem na outra. Vencedor de premiações como Arthur C. Clarke e Hugo Award, A cidade e a cidade, de China Miéville, expõe e discute invisibilidades sociais a partir de um thriller de ficção científica que inspirou série produzida pela BBC em 2018.
Estação Perdido, de China Miéville
Amor entre espécies, mulheres poderosas, conflitos raciais e de gênero, criaturas horripilantes, pactos demoníacos, tráfico de drogas, inteligência artificial, caos, dialética, greve geral, violência policial e estado de exceção são alguns dos elementos que aparecem em Estação Perdido, considerada a obra-prima do inglês China Miéville. Publicado originalmente em 2000, o livro foi vencedor dos prêmios Arthur C. Clarke e da British Fantasy Society, consolidando o autor como um dos principais nomes da literatura de gênero no século XXI.
Outubro, de China Miéville
Em fevereiro de 1917, a Rússia era uma monarquia atrasada e autocrática chafurdada em uma guerra impopular. Em outubro, depois não apenas de uma, mas de duas revoluções, ela havia se tornado o primeiro Estado de trabalhadores do mundo, empenhando-se para estar na vanguarda da revolução global. Como se deu essa transformação inimaginável? Fazendo um giro panorâmico que nos leva de São Petersburgo e Moscou às vilas mais remotas de um império que se alastrava, Miéville revela as catástrofes, intrigas e inspirações de 1917, em toda sua paixão, drama e estranheza. O autor intervém com maestria em debates historiográficos de longa data, mas sua narrativa tem em mente especialmente o leitor não especializado, que busca uma noção abrangente dos fatos daquele ano que mudou todo o século XX.
Leia também o artigo “Marxismo e fantasia”, de China Miélville, publicado na revista Margem Esquerda #23.

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