Pensamento-ação: 100 anos de Frantz Fanon

Frantz Fanon durante o Congresso de Escritores em Tunis, 1959. Imagem: Wikimedia Commons

Por Ronaldo Tadeu de Souza

“[os] objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente. Que as classes dominantes [brancas e racistas] tremam à ideia de uma revolução […] Nela os proletários [negros] nada tem a perder a não ser os seus grilhões [e o chicote]. Tem um mundo a ganhar.”
— Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista

No momento em que no Brasil as forças de segurança do Estado burguês, como a Polícia Militar, agem em “contraofensiva” intencional para exterminar a população negra e pobre das periferias pelo país, a questão sobre o pardo ganha espaço no debate público, e um humorista, mesmo sendo processado, “reivindica” o racismo como artifício de comédia; quando também, internacionalmente, Gaza se transforma em símbolo de resistência contra o colonialismo, completam-se 100 anos do nascimento de um dos maiores intelectuais do século XX, que dedicou sua vida a desvendar tais fenômenos políticos, sociais, culturais e psíquicos.

Frantz Omar Fanon nasceu em 20 de julho de 1925 na Martinica, pequena ilha da região do Caribe. Proveniente de uma família negra de classe média, Fanon se educou na França dos anos 1950. Sem nunca ter deixado de meditar sobre a situação dos negros martinicanos, foi influenciado pelas filosofias hegeliana, marxista e existencialista; na ocasião, Alexander Kojève, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty despontavam como os grandes nomes do pensamento francês. O poeta e ensaísta Aimé Césaire foi outra de suas estrelas-guia, na compreensão do racismo.

Na curta passagem entre os vivos, o psiquiatra, que morreu nos Estados Unidos em 6 de dezembro de 1961, aos 36 anos, vitimado pela leucemia, deixou um legado que está contido, fundamentalmente, em duas obras: Pele negra, máscaras brancas (1952) e Os condenados da Terra (1961).

Fanon não é um autor óbvio. Mesmo analisando o evidente padecimento e flagelo dos negros, tanto os que viviam no coração das sociedades brancas, a França, por exemplo, como os dos países colonizados, as elaborações propostas nos referidos livros exigem do leitor esforço árduo para compreender o que Fanon disse e quis dizer. A composição dos seus textos, afinal, combina erudição na cultura europeia (psicanálise, filosofia, teoria social, literatura, medicina), indignação negra diante das múltiplas expressões do racismo e exposições hermenêuticas sobre o problema da raça. Por isso, a popularidade que adquiriu ao longo tempo é tão paradoxal, ocasionando algo que acontece com alguns pensadores críticos: ser mais citado que estudado, mais amado que entendido, mais incensado que debatido.  

Muitas discussões, controvérsias e releituras ocorrem e ocorrerão em torno das reflexões e ações de Fanon, cem anos depois. Neste aspecto, três temas merecem destaque em sua obra: a civilização branco-burguesa; a violência colonialista perpetrada pelos Impérios Ocidentais; e a necessidade de transformação radical, a derrubada revolucionária de toda ordem racista para erigir o humanismo autêntico.

Civilização branco-burguesa. Se nos contentarmos com a superfície das frases e parágrafos que compõem os capítulos dos livros citados, estaremos a presenciar apenas mais um escritor negro, crítico do controle exercido pelas sociedades organizadas em torno da raça e do comportamento daqueles e daquelas que, supostamente, são desviantes da norma. Contudo, no palimpsesto que constitui Pele negra, máscaras brancas, uma das preocupações centrais é com a linguagem e o modo como ela se desdobra na formação psíquica do negro. Ocorre que, para Fanon ela não é meramente o instrumento humano de comunicação, ou seja, um mecanismo utilizado pelos indivíduos para se dirigirem uns aos outros, com o objetivo de estabelecer momentos de interação social. Na linguagem, estão sedimentados elementos simbólicos que formam a civilização e a cultura — “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura”— no caso, a cultura branca Ocidental. E, nessa medida, o estudo da linguagem é fundamental, aponta Fanon, para entender os aspectos mais importantes do racismo.  

Dentre esses aspectos está o modo pelo qual se impõem ao negro afetos que arrebatam sua personalidade. Pois, diante da linguagem branca da civilização Ocidental, o negro “deve se apresentar de determinada maneira”, o que implicaria na destituição de sua subjetividade como pessoa humana — ou seja, a ordem cultural branca tem de vigiá-lo, reeducá-lo e puni-lo. E mais: se por diversos expedientes da existência (biológicos, genéticos, fenotípicos, estéticos, morais) um negro não pode, infelizmente, ser branco, dele “se exige” ao menos “que seja um bom negro”, a fim de que possa fazer parte constitutiva da civilização branca Ocidental — do contrário pode-se mesmo exterminá-lo. 

A fortuna do pensamento fanoniano ao tratar com extrema densidade crítica a civilização Ocidental (e as maneiras como se expressa na linguagem) reside na busca por entender as repercussões dessa civilização na psique do negro. Formado no ambiente hegeliano e marxista francês, entretanto, Fanon via o impacto do racismo não apenas na esfera da psicologia individual, mas sim de modo articulado, conformando estruturas abrangentes de relações sociais que se elevam pelas costas das pessoas negras. Deve-se chamar a atenção do leitor brasileiro, sobretudo no contexto da discussão acerca do pardo, para a abordagem feita em Pele negra, máscaras brancas do problema afetivo inter-racial. Em “Mulher de cor e homem branco” e “O homem de cor e a branca”, Fanon demonstra que não se trata meramente de um desejo sexual pela “carne” branca que toda negra e todo negro possuiriam, uma espécie simplória de fetiche pela loira, pelo olho azul, pela pele clara, pelo cabelo longo e liso. Polêmico, o psiquiatra argumentava que, na incessante procura angustiada pelo afeto e pelo sexo com a pessoa branca, o negro estava, na verdade, em busca de sua autodestruição; um procedimento que para ele (negro) era irremediável se quisesse adentrar na civilização branca e na língua em que essa civilização se exprimia. Desse modo, “no dia em que o branco declarou seu amor à mulata, algo de extraordinário deve ter ocorrido […] houve reconhecimento […] ela foi recompensada”, culturalmente, “por seu comportamento”. Por sua vez, nos olhos da mulher branca, olhos da sociedade branca civilizada, o homem negro quer a “tranquilidade, a permissão” para se tornar humano.

Em coerência — e se estivermos de acordo — com o pensamento fanoniano, o pardo (que grosso modo é fruto de relacionamento inter-racial entre um negro e uma branca ou vice-versa), pode-se dizer, é consequência direta do “desejo” concretizado do negro por civilização, antes de qualquer outra coisa. O branqueamento da pele preta para a descendência é a negação de si do negro (o escape da realidade do sofrimento) e a possibilidade de apropriação da linguagem humana Ocidental. 

O que acontece na psique do negro, e que Fanon expôs em Pele negra, máscaras brancas, não pode ser de nenhum modo dissociado da violência colonialista. Em toda sua trajetória, Frantz Fanon lutou com ousadia e tenacidade contra essas formas de vida racializadas. Em Os condenados da Terra, escrito já no momento final de sua vida, ele demonstraria toda a indignação intelectual diante da colonização do Terceiro Mundo pelos Impérios Ocidentais e suas classes dominantes.

O estilo de o Os condenados da Terra é mais direto, além de politicamente orientado, pois reflete as experiências de Fanon como teórico comprometido, intelectual engajado, militante e revolucionário. Testamento final do martinicano, representa a síntese de suas intervenções na luta anticolonial dos argelinos (e de outros povos terceiro-mundistas), na Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN) e nos dois Congressos de Escritores e Artistas Negros de que participou no final dos anos 1950. 

Trabalhando em hospitais psiquiátricos na colônia, presenciou in loco a opressão desabrida contra os não-brancos. Fanon explicou a intensidade da violência na Argélia pela razão de que a França, no ápice da sua condição de potência imperial, considerava o país africano não apenas como uma colônia — mas sim uma ampliação legítima do espaço territorial francês. Muito distante das agendas de pesquisa da decolonialidade (em boa parte constituídas nos departamentos de Letras nos Estados Unidos a partir de figuras como Gayatri Spivak, Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel e Enrique Dussel), preocupadas com questões exclusivamente simbólico-culturais e com o tipo de literatura acadêmica que circula nas humanidades (os cânones seriam os adversários a serem enfrentados por serem os instrumentos do epistemicídio), Fanon investigou a prática da violência física empreendida pelos colonizadores contra os negros e outras raças nas colônias. Em nenhum instante de seu pensamento e ação ele deixou de compreender que:

“O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quarteis e delegacias de polícia. Nas colônias o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é gendarme ou o soldado.”

Ora, é um erro fatal, cometido por muitos leitores e pesquisadores da obra fanoniana na contemporaneidade, que na busca por transformar o psiquiatra em tema de investigação acadêmica se atribua o problema da violência ao famoso prefácio de Os condenados da Terra, escrito por Jean-Paul Sartre em setembro de 1961. Frantz Fanon foi um intelectual da práxis coerente e convicto das posições teóricas e políticas que defendeu. Para ele, a vida dos colonizados resumia-se na decisão (e era o que acontecia na maioria das vezes) dos agentes do império em acionar ou não as “metralhadoras portáteis”. 

Transformação radical-revolucionária e humanismo autêntico. Com esse quadro estabelecido em Pele negra, máscaras brancas e Os condenados da Terra, o que Fanon postulou para solucionar a opressão vivida por milhares de negros nas metrópoles e nas colônias? Este é o ponto, talvez, mais controvertido da obra teórica e prática do intelectual martinicano – e exige um trabalho interpretativo mais textual e esmerado. A originalidade dos estudos de Fanon são as marcas distintivas de sua trajetória, mas ele, ainda assim, era um homem de seu tempo. Hegeliano, marxista e existencialista; um escritor negro que teve de enfrentar ele mesmo as múltiplas violências do racismo — o desejo de transformação radical de toda ordem social racializada existente constituiu o conjunto fundamental de toda sua obra. 

A utopia concreta do humanismo autêntico, a ideia acalentada por Fanon de liberdade para a totalidade dos indivíduos, sobretudo para os negros desvalidos, que sofriam na carne as consequências do racismo, só poderia ser realizada sob a condição de abolir concretamente as sociedades colonizadas pela ação revolucionária e violenta dos explorados e oprimidos das colônias. São passagens célebres e memoráveis que lemos em Os condenados da Terra, nas quais Frantz Fanon expõe suas considerações políticas;  assim, “a discussão do mundo colonial não é um confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma singularidade admitida como absoluta”. Pois, como afirma Fanon, a colonização age “sob o signo da violência […] ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões”.

Com efeito, o fundamento mesmo do racismo contra negros, tem sua expressão concreta na mais absoluta violência utilizada pelos dominantes brancos-burgueses. Por outras palavras, em circunstâncias coloniais, os não-brancos vivem sob condições de cruéis mecanismos de agressão física, psíquica e cultural. Trata-se de processos sistemáticos de hostilidade branca, perpetrada pelas sociedades burguesas Ocidentais, contra aqueles que são com intenção sórdida identitarizados; nesse mundo, “morre-se não importa onde, não importa de quê”, seja de fome, seja pelas balas das pistolas e rifles, seja pela ausência de cuidados básicos de saúde — o real é que o negro, o pardo e o nativo são, rigorosamente, “assassinados” nas mais diversas manifestações da sua existência.

O que fazer? Essa indagação latente, que atravessa e estabelece a constelação imanente da teoria-ação presente em Fanon, é respondida como segue em Os condenados da Terra: “não se desorganiza [e transforma] uma sociedade, por mais primitiva que seja […] [sem] destruir todos os obstáculos encontrados no caminho. O colonizado que resolve cumprir este programa, torna-se o motor que impulsiona, está prepara sempre para violência”. E mais à frente: é preciso “fazer explodir o mundo colonial” — pois somente dessa maneira é que irão surgir, afirma Frantz Fanon, “homens [e mulheres] novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade”.

Textualmente, não se pode tergiversar em termos interpretativos acerca das fidelidades políticas e intelectuais do autor de O Ano V da Revolução Argelina e Alienação e liberdade: o fim do colonialismo é um ato, um acontecimento de insurreição violenta dos e pelos colonizados não-brancos — em nosso caso brasileiro, de colonizados de pele preta-parda. (Ora, a certeza e a certificação da humanidade — negra e branca — livre do desesperado sofrimento, para o martinicano, se situava na temporalidade presente da crítica, da rebeldia e da prática política radical: a possibilidade mesma da universalidade autêntica, da liberdade efetiva para desfrute e proveito de todos os indivíduos, e do reconhecimento material-afetivo de si-na-outridade se situava, para Fanon, na destruição violenta e revolucionária agora de toda a ordem branco-burguesa Ocidental pela ação dos de baixo.)  

Assim, nestes cem anos de seu nascimento, no contexto que presenciamos de variadas lutas por libertação, igualdade, justiça social e desabamento da civilização branco-burguesa, do capital imperialista e dependente, e seus múltiplos katechons, é pertinente o entendimento do que o pensamento-ação de Frantz Omar Fanon legou, e que o exercício ingênuo de atribuir coincidência entre “determinado filósofo negro e Platão […]” não fará “a menor diferença na situação de meninos [e meninas] de oito anos que trabalham nos canaviais […]” pelo mundo afora. 

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Ronaldo Tadeu de Souza é professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. Realizou pesquisa de pós-doutorado junto ao Departamento de Ciência Política da USP, e é pesquisador do Centro de Estudos em Cultura Contemporânea-Cedec (Círculo de Leituras Florestan Fernandes), do GPDET-UFRJ/CNPq, e do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Política e Pensamento Crítico do DCP-UFRJ. 



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