“Amores materialistas”: na encruzilhada entre o ideal romântico e a segurança de classe

Imagem: Divulgação
SEM SPOILERS
Por Cauana Mestre
É uma bifurcação comum da comédia romântica: a princesa, adorável, entre um homem rico que não a emociona e o pobre que a faz flutuar. Amores materialistas parte dessa coordenada, mas aposta na tentativa de criticá-la, pois a princesa não precisa de um homem (tampouco parece flutuar).
Depois do sucesso de Vidas passadas, a diretora Celine Song reúne um elenco invejável e localiza a pergunta pós-moderna sobre o tema: entre o ideal de amor romântico, nascido na virada do século XIX, e o amor evaporado, efeito das demandas neoliberais de felicidade e performance, o que se sustenta?

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Pedro Pascal interpreta Harry, um homem que atende às exigências da masculinidade atual, mas que também apresenta uma das faces do homem em crise. Ele é rico, importante, sedutor e confiante — mas apenas até a segunda página, quando descobrimos o segredo que ele esconde por trás do semblante irrepreensível. O que ele oferece é uma operação financeira que, por sorte, poderá incluir ternura e sensualidade.

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Já John, interpretado por Chris Evans, é o outro lado da moeda da mesma crise da masculinidade: ele é terno, generoso e disposto ao amor, mas teve os sonhos demolidos pelo capital. Não tem dinheiro, divide com amigos um apartamento caótico e sua torneira não funciona.
Lucy, vivida pela belíssima Dakota Johnson, é, por sua vez, a mulher contemporânea por excelência. Muito à frente dos homens na obstinação pela carreira, decidida sobre o futuro e dona de suas próprias contas, ela encarna as dificuldades constantemente relatadas por mulheres heterossexuais no campo do amor, que poderiam ser resumidas na alternativa: há romance e mais nada ou há várias coisas, menos romance.

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O filme de Song revela várias das nossas resistências atuais e expõe toda a problemática e os perigos dos amores de aplicativo, mas talvez a decisão mais subversiva seja a de não colocar os homens um contra o outro, e sim uma mulher dividida entre dois homens; uma mulher entre dois mundos, na encruzilhada entre o amor idealista e a segurança de classe.
Na atmosfera de drama delicado e direto — que parece se tornar uma marca registrada da diretora —, devo dizer que, para mim, diferentemente de Vidas passadas, que me tocou profundamente, Amores materialistas erra ao renunciar completamente à emoção.

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Se esperamos que o idealismo supere o materialismo, será que podemos apostar em ideais sem paixão? Teria sido essa a intenção do filme, mostrar que os millenials abandonaram as paixões idealistas da juventude em troca de uma estabilidade que recusa o sonho impossível? Ou mostrar que os amores realistas são esses que não se realizam loucamente, ignorando o mundo destruído em que todos vivemos?
Pode ser, e isso é um trunfo. Ainda assim, como reservo à arte meu idealismo, sempre acho que é possível que a ficção aponte os furos sociais sem recuar da faísca da emoção. Não precisamos mais das princesas flutuando e muito menos sendo salvas pelo amor romântico, mas se for pra vivermos vidas médias em um mundo que nos cobra a assepsia das emoções com coisas como Café com Deus pai e O milagre da manhã, que pelo menos os amores sejam grandes e os filmes maiores ainda.
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Cauana Mestre é psicanalista, mestre em Literatura pela UFPR.
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Sobre o amor, de Leandro Konder
O amor através dos olhos dos grandes pensadores e escritores. O filósofo brasileiro explora as múltiplas facetas desse sentimento, desafiando convenções e expondo suas complexidades com erudição, clareza e humor fino.
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