Os jeans de Sydney Sweeney: reabilitando o eugenismo?

Imagem: WikiCommons
Por Ruy Braga
No final de julho, a empresa American Eagle lançou uma campanha publicitária estrelada pela atriz Sydney Sweeney que rapidamente se tornou objeto de muita controvérsia. O slogan “great jeans” explorava a ambiguidade resultante da homofonia com “great genes”, insinuando não apenas a relação da atriz com a marca, mas também a ideia de que ela possuiria “genes superiores”. A associação entre beleza, juventude e “boa genética” em torno de uma mulher branca e de olhos azuis foi amplamente criticada por reforçar valores supremacistas. Para muitos analistas, a peça publicitária sinalizava, ainda que de forma ambivalente, a reabilitação de discursos eugenistas em um cenário político atravessado pela ascensão do nacionalismo autoritário de viés fascista.
Nas redes sociais, setores progressistas denunciaram a campanha como ressonante de imaginários historicamente eugênicos, enquanto políticos e comentaristas conservadores a defenderam como reação contra o que chamam de “excessos da esquerda woke”. Não demorou muito para que Donald Trump elogiasse a propaganda como “a mais quente” (“the HOTTEST ad out there”), coroando a apropriação política do episódio pela extrema direita. Sua declaração teve impacto direto no mercado financeiro: as ações da American Eagle se valorizaram cerca de 24% nas horas seguintes. O caso revelou, assim, não apenas os riscos envolvidos em campanhas que evocam referências racializadas, mas também como essas controvérsias podem ser rapidamente instrumentalizadas por interesses políticos e convertidas em lucro para as empresas.
A publicidade em torno de Sydney Sweeney demonstra que a exploração das hierarquias raciais não se restringe à violência política direta: ela pode ser mercantilizada e ressignificada culturalmente, transformando-se em um poderoso instrumento de acumulação econômica. Trata-se de uma ressignificação que revela o endurecimento do capitalismo racial em um momento de refluxo global das lutas dos povos oprimidos e racializados.
Após a Segunda Guerra Mundial, a vibrante onda de descolonização anti-imperialista que atravessou África e Ásia, somada às revoluções chinesa e cubana, impôs ao racismo um recuo estratégico. A hereditariedade biológica, radicalmente deslegitimada após os horrores do nazismo, foi substituída pelo discurso da irredutibilidade das diferenças culturais. Esse deslocamento foi analisado por Étienne Balibar por meio do conceito de racismo diferencialista:
“(…) um racismo cujo tema dominante não é a hereditariedade biológica, mas a irredutibilidade das diferenças culturais; um racismo que, à primeira vista, não postula a superioridade de alguns grupos ou povos em relação a outros, mas ‘somente’ o caráter nocivo da destruição das fronteiras, a incompatibilidade dos gêneros de vida e das tradições –— o que se pôde chamar, com toda razão, de racismo diferencialista”.1
Em suma, ao invés de se sustentar numa suposta inferioridade biológica, o racismo passou a se fundamentar na ideia de que culturas distintas seriam, ao fim e ao cabo, incomunicáveis, incompatíveis e, por isso, deveriam permanecer separadas. O efeito, contudo, é o mesmo: a reprodução das hierarquias raciais, agora sob o manto da “defesa da identidade cultural”.
Nesse cenário, o papel de “vanguarda do atraso” foi assumido pelo mais abertamente racista dos regimes políticos do pós-guerra: o apartheid sul-africano. No final dos anos 1940, esse regime institucionalizou a segregação sob o pretexto da preservação de “comunidades ancestrais”, atualizando a lógica do racismo em plena onda de descolonização africana. Como destacou o sociólogo marxista Harold Wolpe, o apartheid não podia ser compreendido apenas como expressão ideológica do supremacismo africâner, mas como um arranjo político-econômico indispensável à reprodução do capitalismo racial na África do Sul durante o período fordista.
A separação rígida entre “comunidades étnicas” não era meramente cultural ou simbólica: constituía o mecanismo por meio do qual o Estado garantia aos setores capitalistas o acesso controlado e barato à força de trabalho negra. A criação dos “bantustões”, pequenos Estados subordinados ao Partido Nacionalista, transformou territórios reservados aos povos africanos em espaços onde os custos de reprodução da força de trabalho recaíam sobre as famílias e as comunidades, em vez de sobre o Estado ou as empresas.
Dessa forma, a segregação racial e espacial permitia combinar a superexploração da força de trabalho nas minas, fazendas e indústrias fordistas com a ideologia racista que se legitimava ao defender a “irredutibilidade das diferenças culturais” (Balibar) das várias etnias do país. O apartheid, portanto, longe de ser um anacronismo meramente reacionário, representava, segundo Wolpe, uma forma moderna e racionalizada de organizar a acumulação capitalista em um contexto marcado tanto pela transição ao fordismo periférico quanto pelas lutas de descolonização anti-imperialista.
O elogio aos genes de Sydney Sweeney é um sintoma que sugere que a era do racismo diferencialista pode estar se esgotando. Depois de substituir a essência biológica pela essência cultural como fundamento da opressão e da exploração racializadas, o capitalismo parece agora reconciliar-se com seu passado eugenista, anunciando uma nova etapa marcada por agressivos nacionalismos autoritários, genocídios, guerras e perseguições sistemáticas a povos e grupos sociais inteiros.
Nesse “novo-velho mundo”, o trilionário sul-africano Elon Musk sente-se à vontade para lamentar a aparente baixa taxa de fertilidade entre “mulheres muito inteligentes”: “Se cada geração de pessoas inteligentes tem menos filhos, isso provavelmente é algo ruim… Pessoas inteligentes deveriam ter filhos… muitos observam que mulheres muito inteligentes têm zero ou um filho. Isso não é bom”.2
Para enfrentar esses desafios, os setores sociais progressistas e democráticos devem ser capazes de superar a defesa renhida de identidades culturais essencializadas, frequentemente transformadas em barreiras à construção de redes de solidariedade mais amplas. Isso não significa negar a importância das lutas por reconhecimento de grupos sociais oprimidos, mas driblar o risco de que elas se convertam em enclaves políticos isolados, facilmente instrumentalizados pelo próprio capitalismo em crise.
Torna-se, assim, cada dia mais urgente buscar inspiração na tradição socialista que impulsionou as revoluções chinesa, cubana e africanas, não para repeti-las mecanicamente, mas para atualizar seus métodos e refletir criticamente sobre seus alcances e seus limites. Essas experiências demostraram que a combinação entre auto-organização popular, programa anticapitalista e internacionalismo solidário é necessária para ampliar as possibilidades da emancipação social. Em um momento marcado pelo ressurgimento de discursos e práticas abertamente eugenistas e racistas, retomar criticamente a tradição socialista é condição indispensável para projetar alternativas emancipatórias à altura da encruzilhada civilizatória em que nos metemos.
Notas
- Étienne Balibar, “O ‘racismo de classe’”, em Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Raça, nação, classe: as identidades ambíguas (trad. Heci Regina Candiani, São Paulo, Boitempo, 2021), p. 55-56. ↩︎
- Elon Musk apud Ashlee Vance, Elon Musk: como o CEO bilionário da SpaceX e da Tesla está moldando o nosso futuro, São Paulo, Intrínseca, 2015, p. 133. ↩︎
***
Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da USP (Cenedic). É autor de A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista (2012), A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global (2017) e A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial (2023), todos publicados pela Boitempo.
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O autor, que também coordena a coleção, inicia destacando as teses que identificam o racismo como o principal motor das relações de dominação e exploração ocidentais e capitalistas. A obra segue apresentando e discutindo autores que estudaram a articulação entre acumulação econômica e opressão racial, como Frantz Fanon, Walter Rodney, Cedric J. Robinson, W. E. B. Du Bois, C. L. R. James e outros. A comparação entre os três países no contexto do capitalismo racial é tema da terceira parte e se dá por meio de uma análise comparativa das três diferentes trajetórias históricas nacionais.
“Compreender a articulação entre acumulação econômica e opressão racial é indispensável para a construção de uma autêntica unidade internacionalista da classe trabalhadora. E assumir uma perspectiva comparativa e internacionalista permite iluminar não apenas as formas de dominação, mas também as trajetórias de resistência, solidariedade e articulação política entre as diversas lutas dos povos e grupos sociais racializados ao redor do mundo”, escreve.

“A ascensão de lideranças como Donald Trump revela a atualidade da relação entre racismo e imperialismo. O político republicano, ao buscar elevar o antagonismo racial à condição de principal motor dos conflitos sociais nos Estados Unidos, também usou o racismo como pano de fundo para sua guerra comercial com a China. Infelizmente, essa realidade não é exclusiva dos Estados Unidos. Em diferentes contextos históricos, a ascensão do nacionalismo autoritário e as ameaças à democracia muitas vezes assumem uma forma xenofóbica ou abertamente racista.
Ideologicamente, a opressão racial no Brasil foi associada à suposta incapacidade da massa negra em se integrar ao modo de vida moderno. Daí chegou-se à naturalização da condição marginal do negro e à necessidade de submeter suas comunidades ao assédio policial constante. Ainda hoje, cobra-se ao trabalhador negro um comportamento submisso, equivalente àquele que o senhor exigia do escravizado. Afinal, a morte do trabalhador negro continua dependendo da decisão autocrática do braço armado do Estado. Diante de tamanha opressão, quais seriam as principais características da resistência negra no país?”
— Ruy Braga

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